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Foto: Mídia Ninja / Flickr

Racismo e mídia hegemônica: combater problema exige mais que “imagens fortes” nas redes

A negação, a minimização e a reprodução de lógicas racistas teve, e ainda tem, uma contribuição significativa da mídia nacional, isenta de representatividade e diversidade
Verbena Córdula
Diálogos do Sul
Salvador (BA)

Tradução:

O descaso da mídia nacional em relação ao racismo é um problema grave e merecedor da nossa reflexão e repúdio. Enquanto essa mazela continua a afetar milhões de brasileiros, tanto em níveis estruturais quanto interpessoais, a cobertura midiática deixa muito a desejar, pois prefere se ater a situações pontuais, que proporcionam likes e milhares (ou até milhões) de visualizações, ao tempo em que negligencia a profundidade e a necessidade de se debater seriamente esse problema. Ultimamente, o UOL no YouTube tem se destacado em mostrar situações de racismo, sem, contudo, demonstrar qualquer disposição para discutir o assunto e assim mostrar o valor que pode ter um bom jornalismo para a sociedade.

O racismo é uma realidade que não dá para mascarar na sociedade brasileira. Apesar de que, durante muito tempo, o discurso de uma suposta democracia racial andou protagonizando a realidade nacional. Felizmente, essa narrativa tem sido contundentemente desconstruída, tanto pelo movimento negro organizado, como também pelo trabalho desenvolvido por intelectuais negros e negras que têm buscado, de diversas formas, mostrar como essa mazela tão destrutiva tem se perpetuado em nosso país, sobretudo em consequência da negação de sua existência.

E considerando que os meios de comunicação desempenham papel preponderante no que se refere à construção do imaginário social e à formação das concepções de mundo de uma expressiva quantidade de pessoas, não é exagero afirmar que essa tentativa de negação, ou mesmo a própria minimização do racismo e, logicamente, a reprodução de lógicas racistas teve, e ainda tem, uma contribuição significativa da mídia nacional. 

Comunicação limitada do UOL

É verdade que a mídia brasileira tem evoluído um pouco em relação ao racismo, sobretudo em consequência das pressões exercidas pela população negra, principalmente a mais jovem, que, em grande medida, já não aceita mais o velho modus operandi levado a cabo pelos grupos midiáticos hegemônicos que, contumazmente, reproduziam o racimo sem nenhum tipo de parcimônia. Era assim nas publicidades, nas telenovelas, nos programas ditos humorísticos e no próprio jornalismo. Apesar de ainda presenciarmos situações nas quais o racismo persiste, temos que admitir que houve certa evolução em algumas abordagens. 

Entretanto, ainda vemos a manutenção da ordem racista através dessa mídia hegemônica, cuja falta de representatividade e diversidade em seu universo ajudam consideravelmente. As redações dos principais veículos de imprensa carecem, na maioria das vezes, de profissionais negros e negras em posições de destaque, fato que certamente contribui a uma perspectiva limitada e pouco sensível em relação às questões raciais. E os resultados disso podem ser (e muitas vezes o são) histórias sobre racismo minimizadas, distorcidas e até mesmo ignoradas, o que contribui para a não reflexão adequada, necessária e também ansiada população negra brasileira, que historicamente sofre em consequência dessa mazela.  

Quando o racismo é abordado pela mídia, muitas vezes é de maneira superficial e sensacionalista. Incidentes isolados de discriminação recebem destaque temporário, mas raramente são contextualizados dentro de um quadro mais amplo de desigualdade racial sistêmica. Existe uma carência de análise das raízes históricas e estruturais do racismo no Brasil, e de suas manifestações. 

Somente para exemplificar, o canal da UOL na plataforma YouTube tem sido contumaz nesse sentido. Quase todas as semanas essa mídia reproduz casos específicos de racismo que acontecem em território nacional. Nos últimos dois meses, podemos citar alguns: o enfermeiro que sofreu racismo de um paciente que recusou-se a ser atendido por ele; a bailarina do programa do Ratinho que pediu demissão por questões raciais, mais precisamente por seus cabelos; o professor de Educação Física preso por engano; o policial que recebeu ofensas raciais e homofóbicas; a médica que precisou se identificar profissionalmente durante um atendimento, porque o paciente queria “validar” seu registro.

Ato Unificado Contra o Racismo e em Defesa da Democracia, em 7 de junho de 2020, em Brasília/DF (Foto: Mídia Ninja / Flickr)

Na maioria dos casos, esse meio de comunicação se limita a reproduzir vídeos, ou a narrar os acontecimentos ao público com pequenos textos em tela, sem quaisquer discussões, reflexões, abordagens mais críticas e profundas acerca dos fatos ocorridos. A meu ver, um jornalismo completamente equivocado, sobretudo em situações como essas (mas não somente essas) que permeiam o cotidiano de milhões de pessoas no País. Nesses casos, não vale aquela máxima de que “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Decididamente, não! Até porque esse tipo de “abordagem” serve para banalizar uma questão profunda e séria, que violenta a vida de milhões de seres humanos, e que precisa ser compreendida como violência, como desumanização. Mas UOL prefere ater-se à questão factual. Ao se centrar em casos isolados, este meio de comunicação deixa de abordar as questões subjacentes e os padrões mais amplos que contribuem para essa mazela, o que pode conduzir o público a uma compreensão superficial e incompleta da temática racismo. Essa repetição de fatos isolados sem contextualização pode reforçar os preconceitos existentes; reforçar o ciclo de discriminação e estigmatização que torna ainda mais difícil para nós, pessoas negras, enfrentarmos os obstáculos proporcionados pelo racismo. A repetição constante de situações isoladas de racismo pode levar as pessoas a naturalizar uma violência, que precisa ser combativa e neutralizada socialmente. 

Sendo assim, reproduzir cenas de racismo, sem as devidas discussões, pode proporcionar likes e visualizações, mas, sem dúvida, não proporciona ao consumidor da informação compreender que o racismo refere-se a padrões de discriminação incorporados nas estruturas e instituições da nossa sociedade, como o sistema educacional, o mercado de trabalho, o sistema de justiça criminal, entre outras; estruturas que perpetuam as desigualdades raciais de forma sistêmica, independentemente das intenções individuais. É isso que o jornalismo precisa repetir, de formas distintas, incansavelmente, a fim de contribuir com o combate ao racismo. E não reproduzir cenas de racismo, isoladamente. Se assim o fizesse, aqui neste texto, em vez de criticar, estaria elogiando o jornalismo feito pelo UOL. Mas, infelizmente, seria ingenuidade da minha parte esperar algo assim de uma imprensa eurocentrada, branca, burguesa, que infelizmente para nós, pessoas negras, não tem qualquer compromisso em contribuir para combater as mazelas sociais, entre elas o racismo.   

Seria muita ingenuidade esperar que a mídia hegemônica nacional enfrente seu próprio descaso em relação ao racismo e passe a abordar essa questão de forma mais séria, sensível e contextualizada. E é por esse e outros motivos que precisamos, enquanto sociedade, reivindicar outra estrutura de sistema de comunicação. O Brasil carece de uma nova política de comunicação. E o governo precisa voltar sua atenção para isso. 

Não reivindico o controle da comunicação pelo Estado, pois estamos no sistema capitalista, e não sou ingênua a esse ponto. Mas reivindico, pelo menos, a criação de um sistema público de comunicação nacional, bem estruturado, para fazer frente ao sistema vigente, que apesar de depender das concessões públicas, agem como se não dependessem, uma vez que as outorgas são dadas sem quaisquer critérios que considerem a necessidade real de diversidade na produção e no consumo de informação.  Esta é uma das dívidas que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem com povo brasileiro. Não dá mais para protelarmos essa questão.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Verbena Córdula Graduada em História, Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporânea pela Universidad Complutense de Madrid e Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA.

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