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Racismo, perseguição ou má interpretação? Entenda cassação do vereador Tiago Costa

Político pediu a retirada de um monumento da Câmara de Mogi-Mirim (SP) por ser racista, mas acabou acusado de racismo; foi liberado, mas perdeu mandato
George Ricardo Guariento
Diálogos do Sul
Taboão da Serra

Tradução:

Um homem amarra a uma pilastra um boneco preto feito de sacos de lixo e, ao ser confrontado, acusa homens e mulheres pretas de “passarem pano” para o racismo. Qual nome você daria a essa cena sem saber o contexto?

A Câmara Municipal de Mogi Mirim, no interior de São Paulo, está passando por um período turbulento. Ações controversas do vereador Tiago César Costa (MDB) lhe renderam acusações de racismo, ganharam destaque nacional e levaram o político a perder o cargo. 

Em 14 de setembro, o vereador convocou uma audiência pública para debater a possível remoção do Pelourinho, um monumento instalado desde 1969 em frente ao prédio da Câmara Municipal.

Leia aqui o documento apresentado pelo vereador.

O ponto de animosidade se dá quando Tiago Costa amarra um boneco feito de sacos de lixo preto no pelourinho, simbolizando pessoas negras. Essa atitude é indiscutivelmente lida como racista por muitos presentes, incluindo membros da Associação Cultural Afro Guaçuana (Acag), que pedem a retirada do boneco.

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Político pediu a retirada de um monumento da Câmara de Mogi-Mirim (SP) por ser racista, mas acabou acusado de racismo; foi liberado, mas perdeu mandato

Foto: Reprodução
Vereadores destacam a conduta de Tiago em audiência, acusando-o de desrespeitar e silenciar os participantes negros

Tiago recusou-se a remover a peça, argumentando que buscava provocar reflexões. Durante o embate, o vereador manteve sua convicção de que não estava ofendendo os negros, enquanto a maioria se sentiu profundamente ofendida. Costa os rotulou de “radicais”.

Segundo o vereador, o monumento foi escolhido na época devido à tradição de erguer um Pelourinho durante a fundação de uma localidade, de acordo com a cultura urbanística portuguesa. No entanto, com o passar do tempo, tornou-se também um local para a punição daqueles que violassem a lei. “Dado o contexto racista, colonial e escravocrata da construção do Brasil, os negros escravizados foram os mais afetados por essas punições durante o período colonial” declarou o vereador durante sua fala na sessão da câmara.

Ele argumenta ainda que o obelisco evoca lembranças de locais públicos onde criminosos eram expostos ou punidos, especialmente negros escravizados, violentados nessas áreas de tortura. No entanto, essa perspectiva foi contestada durante a sessão por cidadãos ligados a movimentos negros.

Assista à audiência completa:

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Ao final da sessão, o vereador Tiago Costa foi levado por agentes da polícia até a Central de Polícia Judiciária de Mogi Guaçu para prestar esclarecimentos ao delegado de plantão após a solicitação do advogado Paulo Mena Barreto

O delegado de plantão, Rubens Luiz Fonseca Melo, argumenta que, diante das circunstâncias e das diferentes interpretações apresentadas pelas partes envolvidas, “não é possível vislumbrar o dolo de racismo acerca do caso. Todavia, é de se destacar que também não vislumbrei dolo de constrangimento ilegal”.

O Advogado Paulo Mena Barreto, autor do pedido de prisão, deu a seguinte  declaração ao canal do YouTube Portal Portal da Cidade:  “eu entendo que você usar sacos de lixo para representar a raça negra, (…) é mais do que evidente que se trata de um crime de racismo”

 

Movimento negro e Lei 4.735/2009

A educadora social Érica Cândido, presente na audiência, relatou ao G1: “ele [Tiago] convocou as pessoas para discutir a situação do Pelourinho e nos deparamos com um boneco preto, de lixo. Isso me doeu totalmente. Eu falei que ele não nos representa, que não passa por metade do que o povo preto passa. E pedi para ele tirar o boneco, mas ele não tirou”.

Um dos argumentos apresentados pelo movimento negro para manter o Pelourinho foi a existência do projeto de Lei Municipal nº 4.735/2009, que tombou o prédio da Câmara, o Paço Municipal e o próprio artefato, impedindo sua remoção por razões históricas. Além disso, destacou-se que a peça de 1969 foi um presente em comemoração aos 200 anos de emancipação político-administrativa da cidade, sem conexão direta com os Pelourinhos usados para castigar corpos negros escravizados ao longo dos séculos.

Conforme a referida lei, um prédio ou monumento tombado é um edifício ou estrutura que recebeu proteção legal devido ao seu valor histórico, cultural, arquitetônico ou ambiental. O tombamento é uma medida adotada pelo poder público para preservar bens que são considerados patrimônio cultural e que têm importância para a identidade de uma região, cidade ou país.


Opinião do especialista

Para sanar dúvidas sobre o ocorrido, conversamos com o professor, historiador formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ) e especializado em cultura negra pela faculdade Unyleya, Murilo Rodrigues. Indagado sobre se é possível dissociar o monumento em Mogi Mirim do seu significado histórico, retrato do racismo, ele explica que não:

“O Pelourinho, infelizmente, não é apenas uma estrutura física, mas um símbolo de opressão, crueldade e desumanidade. Era nesses lugares que nossos antepassados negros eram acorrentados, submetidos à mais brutal das violências, perdendo não apenas a liberdade, mas também a dignidade. Este monumento, longe de representar qualquer forma de glória, é um testemunho mudo de um passado de sofrimento que não pode ser esquecido”, afirma.

Rodrigues se mostra a favor da preservação do Pelourinho, mas em lugares adequados, como museus. 

“Contudo, ao mesmo tempo, em que encaramos esse monumento como um doloroso lembrete do que aconteceu, também devemos enxergá-lo como uma oportunidade de educar e conscientizar as gerações futuras. A preservação do Pelourinho não deve ser apenas física, mas também histórica, para que as histórias de resistência, luta e resiliência que emergem desse período sombrio sejam contadas e nunca mais se repitam. O que me causa estranheza é esse monumento viver em frente a uma casa que deveria ser do povo, ao invés de um museu temático, que sirva ao proposito de educar e não nos deixar esquecer”, observa.

Sobre o ocorrido com o deputado Tiago Costa, o historiador lamenta pela falta de educação, e assevera que, em sua opinião, o ato em si foi racista. 

“As ações recentes do vereador são lamentáveis e ilustram, mais uma vez, a urgência de um entendimento mais profundo sobre a história e as sensibilidades da comunidade negra. Sem conhecê-lo pessoalmente, sou levado a acreditar que se trata de alguém mal-informado, cuja ânsia por ressaltar a importância de uma causa específica o levou a cometer um gesto profundamente racista”, aponta.

Ainda segundo Murilo, ao prender um boneco negro a um pelourinho, o Tiago Costa não apenas desrespeitou a memória de um passado doloroso, mas também ignorou a voz da comunidade negra que manifestou seu descontentamento. É lamentável ver que, em vez de reconhecer o erro e buscar a reconciliação, o vereador optou por ignorar as legítimas preocupações e sentimentos daqueles que foram diretamente afetados por suas ações.

“Esse incidente ressalta a necessidade premente de uma educação mais abrangente sobre a história e as questões raciais, não apenas para prevenir gestos ignorantes como esse, mas também para fomentar o entendimento mútuo e promover a verdadeira igualdade. Neste momento, é crucial que a comunidade negra seja ouvida, respeitada e que suas experiências sejam levadas a sério, em um esforço coletivo para construir uma sociedade mais justa e inclusiva para todos”, finaliza.

 

As consequências do ato e a defesa do vereador

A atitude do vereador teve como resposta a convocação, nesta segunda-feira (4), de uma nova audiência pública, desta vez convocada pelo coletivo Afrocaipiras, com objetivo de cassar o mandato de Thiago Costa.

No final, Tiago Costa, que já estava com seu mandato suspenso por 90 dias, tentou, sem sucesso, anular a votação, alegando perseguição politica.

Em suas redes sociais, Costa postou um vídeo acusando a esquerda local de fabricar acusações de racismo contra ele: “nunca houve racismo, inclusive o próprio delegado no Boletim de ocorrência não viu qualquer ato racista de minha parte”. 

“Racismo há no PELOURINHO, o TRONCO em frente à Câmara Municipal. A audiência pública foi aberta para o debate, mas alguns foram pagos e contratados para tumultuar”, afirmou em sua conta do Facebook.


Resultado do julgamento

Na segunda-feira (4), a Câmara de Mogi-Mirim decidiu pela cassação do mandato do vereador Tiago César Costa (MDB) com uma votação de 14 a 2, fundamentada na quebra de decoro parlamentar.

(Foto: amaramogimirim.sp.gov.br)

O relatório, elaborado pela vereadora Lúcia Tenório (Cidadania), recomendou a cassação e o julgamento ocorreu em um plenário repleto de membros da comunidade negra, que apoiaram a perda do mandato do vereador. Durante os discursos, os vereadores destacaram a conduta de Tiago na audiência, acusando-o de desrespeitar e silenciar os participantes negros.

Tiago Costa teve duas horas para sua defesa, na qual destacou sua trajetória de superação pessoal, argumentando não ser racista e apresentando trechos de vídeos da audiência que considera como defesa antirracista. Apesar disso, a cassação foi aprovada, e agora Tiago tem a opção de buscar reverter a decisão judicialmente para poder concorrer nas eleições de 2024.

(Foto: amaramogimirim.sp.gov.br)

A vereadora Joelma Franco (PTB) foi a única a manifestar publicamente apoio a Tiago Costa, argumentando que questões de suposto racismo deveriam ser tratadas nas esferas policiais e do Tribunal de Justiça, e não no âmbito político.

O presidente da Câmara, Dirceu Paulino (Solidariedade), afirmou que não houve crime de racismo, mas sim quebra de decoro quando Tiago se recusou a retirar um boneco representando um escravo negro durante a audiência pública.

Os 14 votos favoráveis à cassação foram dos vereadores Ademir Júnior, Alexandre Cintra, Cinoê Duzo, Dirceu Paulino, Geraldo Bertanha, João Victor Gasparini, Lúcia Tenório, Luiz Roberto Tavares, Luzia Cortes Nogueira, Mara Choqueta, Márcio Ribeiro, Marcos Antonio Franco, Marcos Cegatti e Orivaldo Magalhães. Os votos contrários foram de Luiz Fernando Saviano e Joelma Franco.

Com a cassação do agora ex-vereador, assume o mandato, de forma definitiva, o primeiro suplente do MDB, o vereador Moacir Genuário.

Veja as falas completas aqui:

George Ricardo Guariento | Jornalista e colaborador da Diálogos do Sul.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
George Ricardo Guariento Graduado em jornalismo com especialização em locução radiofônica e experiência na gestão de redes sociais para a revista Diálogos do Sul. Apresentador do Podcast Conexão Geek, apaixonado por contar histórias e conectar com o público através do mundo da cultura pop e tecnologia.

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