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Lula não pode ser comparado a Milei. Nem de longe! (Montagem: Diálogos do Sul Global*)

Recado à grande mídia brasileira: Lula não tem o que aprender com Milei

Narrativa de que Lula deveria aplicar no Brasil o mesmo desmonte operado por Milei na Argentina mostra como o jornalismo pode ser raso, perverso e um perigo social
Verbena Córdula
Diálogos do Sul Global
Ilhéus

Tradução:

O jornalismo brasileiro, na maioria dos casos, tem-se limitado ao factual, privando o público de obter informações necessárias para a construção de uma opinião consistente acerca dos inúmeros acontecimentos e/ou fenômenos que acontecem diariamente. Levando-se em conta que a atividade jornalística deve ter como principal objetivo informar, torna-se perigoso veicular uma cobertura, um comentário, sem considerar as cinco perguntas básicas que uma matéria jornalística deveria responder: o quê?, quem?, onde?, quando?, por quê?. Na semana passada, desconsiderando essas questões, a comentarista de Economia da CNN Brasil, Rita Mundim, sugeriu que o Presidente Lula deveria fazer o mesmo que seu homólogo argentino Javier Milei. Isso foi, no mínimo, perverso. 

No pequeno (mas significativo) livro intitulado “O que é Jornalismo”, publicado pela Coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, o jornalista Clóvis Rossi afirma que “[…] o porquê de um determinado fato envolve uma investigação profunda sobre seus antecedentes e consequências, e uma razoável soma de conhecimentos sobre o tema que está sendo tratado”. Dessa forma, a recepção encontrará, de fato, informações, a fim de processar e, posteriormente, formar sua opinião acerca daquilo que foi veiculado. Mas parece que esse princípio fundamental foi deixado de lado, o que pode ser bastante perigoso socialmente.

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Quando me refiro ao perigo, quero chamar a atenção para o fato de que, conforme ressalta o sociólogo J. B. Thompson, “em um mundo cada vez mais rodeado pelos produtos da indústria da mídia, uma nova e maior arena foi criada para o processo de autoformação”. As pessoas têm-se autoformado através das mídias. E é por isso que o jornalismo raso representa um perigo social. A autoformação requer informações consistentes, amplas, sob pena de estarmos nos nutrindo de distorções a respeito de fatos/acontecimentos/fenômenos, que vão interferir negativamente no processo de construção daquilo que chamamos de opinião.

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Ao considerarmos essa perspectiva, devemos esperar — e também cobrar — que as notícias não se reduzam à narração de acontecimentos, de fatos, de fenômenos, principalmente quando estes são consequência de outros acontecimentos, de contextos, etc., como foi o caso da suposta queda da pobreza na Argentina, noticiada amplamente pela mídia hegemônica nacional — e também mundial. Em alguns meios, inclusive, foi dito que o Brasil deveria seguir o exemplo da Argentina. Foi o caso na CNN Brasil, através da comentarista de Economia, Rita Mundim.

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Ao repercutir os números publicados pelo país vizinho, Mundim afirmou, categoricamente, que o presidente Javier Milei havia feito “a lição de casa”, pois, de acordo com ela, além de ter conseguido baixar a pobreza no país, alcançou o superavit fiscal. No entanto, a comentarista “esqueceu-se” de contextualizar a informação e sugeriu que Lula faça o mesmo que fez Milei.

Duas horas após as falas de Mundim, ao se referir à mesma notícia (redução da pobreza na Argentina), a analista de Economia Thais Herédia foi menos tendenciosa (e menos perversa também). Ressaltou que o feito de Milei ainda não pode ser comemorado. No entanto, chamou as medidas do governante rio-platense de “terapia de choque”, um eufemismo para não dizer que, de fato, Javier Milei foi perverso com a população mais vulnerabilizada de seu país. Diferentemente de Mundim, Herédia destacou que muitas argentinas e argentinos não conseguem pagar contas de água e de energia elétrica, salientando ainda a grande quantidade de pessoas em situação de rua no país vizinho.

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Embora o discurso de Mundim tenha sido mais perigoso, nenhuma das duas se referiu concretamente às medidas adotadas por Javier Milei nos primeiros dias de seu governo, iniciado em dezembro de 2023, as quais impactaram profundamente a vida da população mais vulnerabilizada: a desvalorização do peso argentino em quase 120%, com a fixação do dólar oficial em 800 pesos; os cortes no orçamento público, com redução nos investimentos, tais como suspensão de obras públicas e a redução de subsídios, por exemplo, que resultaram no aumento dos custos desses serviços para a população; os cortes em programas sociais — com reduções de 45,6% — que afetaram diretamente as populações mais empobrecidas; as alterações nos benefícios previdenciários, que acarretaram enormes perdas em aposentadorias e pensões, devido à falta de reajustes compatíveis com a inflação, o que resultou em uma diminuição de 21% no poder de compra dos aposentados

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Superavit sustentado pela fome

Essas intervenções do governo de Milei, aliadas a outras, fizeram aumentar a pobreza, colocando a Argentina com uma taxa que atingiu 55,5%, em 2024, um aumento significativo em comparação aos 44,7% do terceiro trimestre de 2023. Ou seja, no ano em que assumiu o governo, Javier Milei fez disparar o custo de vida devido à alta da inflação e à desvalorização da moeda nacional, levando milhões de pessoas à pobreza extrema. A perda de poder aquisitivo levou muitas famílias a reduzir a compra de carne, de laticínios e até mesmo de medicamentos essenciais. Não foi à toa que, desde os primeiros meses de 2024, aposentada(o)s e trabalhadora(e)s organizam protestos contra as políticas do “Presidente da motosserra”, denunciando a deterioração de suas condições de vida.

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Porém, tudo isso não foi sequer mencionado, nem pela comentarista, nem pela analista de Economia da CNN Brasil. Ao dizer que “A Argentina é um exemplo a ser seguido”, ou que “o sucesso já está aí”, Rita Mundim omitiu também que o mandatário do país vizinho deixou de prover medicamentos a pacientes com câncer, devido aos cortes orçamentários levados a cabo. Por outro lado, a comentarista salientou que Milei “pegou uma inflação de cerca de 280% ao ano, e a inflação está em 66% ao ano”, acrescentando que a Argentina “está trilhando pelo caminho certo: da austeridade, da responsabilidade fiscal”. No entanto, em agosto de 2024, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) publicou relatório dando conta de que mais de 1 milhão de crianças e adolescentes dormiam com fome na Argentina de Milei.

Diferentemente de Milei, Lula demonstra empatia com relação às situações de vulnerabilidade social que afetam milhões de brasileiras e brasileiros (Montagem: Diálogos do Sul Global*)

É lógico que, tendo proporcionado toda essa escassez, o governo de Javier Milei pode se vangloriar do superavit fiscal tão comemorado por Mundim e da redução da inflação também ressaltada pela comunicadora — que reiteradas vezes sugeriu que o Presidente Lula faça o mesmo. A comentarista é tão perversa, o jornalismo da CNN Brasil é tão raso, e as análises são tão superficiais, que não se dignaram a dizer, por exemplo, que os cofres argentinos estão quase vazios, a ponto de o ministro de Economia do país, Luis Caputo, ter que ir aos Estados Unidos com a “cuia na mão” para pedir dinheiro ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Não é uma contradição que um governo que fez “o dever de casa” — conforme assinalou Mundim — tenha que mendigar ao FMI?

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Comunicação democrática — e coerente

Embora tenha muitas críticas a fazer ao Governo Lula — de fato já fiz muitas aqui na Diálogos do Sul Global —, não posso concordar com essa sugestão perversa (e ridícula) feita pela CNN Brasil, através de sua comentarista de economia, de que o nosso Presidente deveria fazer o mesmo que seu homólogo argentino. Tampouco com a comparação feita a respeito das capacidades de gestão de ambos, com destaque para o “libertário”. Mais perverso que isso, impossível! Javier Milei mostra, através de sua administração, que odeia pobres — diferentemente de Lula, que demonstra empatia com relação às situações de vulnerabilidade social que afetam milhões de brasileiras e brasileiros. Por mais que possamos criticá-lo por não adotar medidas estruturais de combate à pobreza, Lula não pode ser comparado a Milei. Nem de longe!

E voltando à questão da incipiência do jornalismo — e ao perigo que isso pode representar à autoformação do público —, ressalto a falta que faz um sistema público de comunicação. A comunicação pública, calcada no conceito de direito à comunicação, com ênfase em valores verdadeiramente democráticos, certamente contribuiria para contrapor esses discursos aqui mencionados. O sistema privado de comunicação em nosso país, marcado pela concentração da propriedade, dificulta que a sociedade compreenda que está permeada por estruturas de poder, a partir das quais os interesses dos grupos dominantes se sobrepõem aos demais. 

Enquanto não tivermos uma comunicação democrática, mídias como a CNN Brasil — assim como as demais que constituem a comunicação hegemônica do país — continuarão apostando no jornalismo raso, no comentário tendencioso e na análise superficial, que mantêm a sociedade desinformada, com poucas possibilidades de questionar situações que cotidianamente interferem na formação de uma opinião pública sólida, não guiada por interesses antagônicos aos da maioria da sociedade.

* Imagens na capa:
– Presidente Lula: Ricardo Stuckert / PR
– Javier Milei: Gage Skidmore / Flickr


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Verbena Córdula Graduada em História, Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporânea pela Universidad Complutense de Madrid e Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA.

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