A reforma da previdência é a bola da vez do debate político brasileiro. É o tema que tem mobilizado trabalhadores do campo e da cidade, ao mesmo tempo em que é apresentado como trunfo e urgência incontornável pelo governo de Jair Bolsonaro.
Apesar de estar na ordem do dia, não é de hoje que são alardeados os déficits insustentáveis na previdência social. Dos argumentos que costumam fundamentar a retórica do rombo previdenciário, dois deles merecem nossa atenção. O primeiro está ligado ao modelo de financiamento do sistema da seguridade social – composto pela saúde (SUS), pela assistência social (SUAS) e pela previdência –, fruto da escolha constituinte de 1988. Nosso sistema é tripartite, financiado pelos trabalhadores, seus empregadores e pelo Estado. Por isso, não há que se falar em autofinanciamento da previdência somente a partir das receitas da contribuição previdenciária. Aqueles que não podem contribuir ou que podem contribuir menos, devem, portanto, receber.
O segundo argumento tem a ver com as previsões que sustentam as projeções atuariais da previdência. Todo e qualquer apontamento de déficit futuro deriva de projeções de receitas e despesas. O lado das despesas constitui-se dos pagamentos de benefícios de aposentadorias, assim como as desonerações, sonegações das contribuições e seus refis, os gastos com a dívida ativa previdenciária, dentre outros. Já o lado da receita é composto pelas fontes de arrecadação, que são tanto maiores quanto maiores os níveis de emprego formal, de renda e de eficiência na gestão. Isso faz com o que o resultado das contas da previdência seja dinâmico, respondendo aos estímulos macroeconômicos.
Assim como a reforma proposta por Michel Temer (PEC 287/2016), a proposta atual, da Medida Provisória 871/219, é, na realidade, uma contrarreforma, que tem dois objetivos principais: i) desativar ou enfraquecer a função distributiva do Estado; e ii) aquecer os mercados de previdência privada. As medidas propostas vão à contramão dos direitos garantidos na Constituição Federal de 1988, construídos a partir de amplo processo de diálogo e de participação popular. Entre os direitos ameaçados pela MP 871 encontram-se os direitos previdenciários da população rural.
Há que se lembrar que, diferentemente dos trabalhadores urbanos que tiveram seu sistema previdenciário garantido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) na década de 1940, os trabalhadores rurais só vieram a ter direito à previdência social em 1971, quando foi criado o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural). E somente com a CF/88, seus benefícios foram equiparados aos benefícios dos trabalhadores urbanos. De lá para cá se tem constituído enorme esforço para a formalização desses trabalhadores e para sua inclusão no sistema de seguridade social.
As particularidades no desenho previdenciário rural advêm das próprias características do trabalho no campo, via de regra muito mais penoso que as modalidades de trabalho urbano – o que faz com que a expectativa de vida dos trabalhadores rurais seja inferior à dos trabalhadores urbanos – e orientado pela dinâmica sazonal das safras agrícolas. Por conta disso, a CF/88 garantiu a idade mínima para a aposentadoria de 55 e 60 anos, para mulheres e homens respectivamente, com a comprovação de ao menos 15 anos de trabalho rural. A alíquota de contribuição dos trabalhadores rurais segue as mesmas regras dos trabalhadores da iniciativa privada. No que diz respeito à agricultura familiar, vigora contribuição de 2,1% do valor da produção comercializada (excedente), em formato familiar e sazonal.
Reforma da previdência é a bola da vez do debate político brasileiro
As alterações propostas pela contrarreforma da previdência alteram tais especificidades. Na prática, portanto, levam à extinção da previdência social rural. Propõem a equiparação da idade mínima para a aposentadoria de mulheres e homens em 60 anos, desconhecendo as desigualdades que marcam o trabalho feminino e masculino no campo. Outra mudança tem a ver com a comprovação do tempo de trabalho. Passa-se a exigir contribuição com o INSS (e não apenas a comprovação do trabalho) por pelo menos 20 anos, o que dará o direito a uma aposentadoria equivalente a60% da média de todas as suas contribuições.
As famílias agricultoras deverão contribuir com o mínimo de R$ 600/ano (ao invés de 2,1% da produção comercializada), mesmo a despeito de comprometimentos climáticos e financeiros. Se aprovadas, as mudanças são aplicadas para aqueles que começarem a trabalhar após a entrada em vigor das regras. Pessoas entre 16 e 35 anos serão incorporadas em critérios de transição.
É importante atentar que as injustiças desta reforma não dizem respeito somente a quem estão direcionadas as medidas recessivas, ou seja, de quem está sendo cobrada a conta do ordenamento fiscal do país. O argumento de que esta seria uma tarefa de todos é facilmente desmontado quando investigamos onde estão e onde não estão os cortes orçamentários e tributários.
No que tem relação direta com o tema da previdência social rural há duas questões que merecem destaque. A primeira delas se refere à EC 33/2001, que alterou o art. 149 da CF/88, isentando do pagamento de contribuições sociais as receitas decorrentes de exportação. Desde então, é isento do pagamento de contribuições sociais o agronegócio exportador. A segunda questão diz respeito aos processos periódicos de refis (programas de refinanciamento de dívidas tributárias) que perdoam as dívidas de devedores da previdência social e acabam por tornar aceitável a sonegação da contribuição previdenciária – e das demais contribuições sociais.
Recordamos aqui o refis do Funrural (MP 793/2017), medida bastante elucidativa das escolhas sobre onde cortar e de quem cobrar os esforços pela austeridade. Quando discutia sua reforma da previdência, o então presidente Temer aprovou o perdão da dívida dos empregadores rurais com o Funrural e a eliminação das multas devidas. Uma renúncia fiscal de cerca de R$ 18 bilhões, sendo que os R$ 2 bilhões a serem pagos foram negociados em até 20 anos.
O cenário da seguridade é ainda agravado quando consideramos a aprovação da reforma (anti)trabalhista (Lei. 13.467/2017) e da terceirização irrestrita (Lei. 13.429/2017), as quais reforçam a mesma lógica de desregulamentação do mercado de trabalho e acentuam os impactos sobre as receitas da previdência social. As novas legislações estimulam formas de contratação de tipo informal, algumas das quais sequer preveem recolhimento previdenciário – o que significa queda nas receitas. Tais formas de contratação são bastante afeitas às sazonalidades das safras agrícolas e devem ampliar-se cada vez mais nos espaços rurais, solapando os esforços pela formalização e pela proteção laboral e social do Brasil das últimas décadas.
Também no campo, os efeitos de medidas como a desvinculação do Benefício de Prestação Continuada (BPC) do valor do salário mínimo seriam drásticos, uma vez que para muitos idosos (e suas famílias) esta é uma das poucas fontes monetárias correntes. Sua retirada compromete não somente a vida das famílias, mas também a dinâmica econômica dos pequenos municípios brasileiros. Lembramos que dos 5.553 municípios do país, mais de 70% (cerca de 3.900) possuem menos de 20 mil habitantes. Neles, as interações e os traços sociais são fortemente marcados pela ruralidade, assim como são expressivas as parcelas do PIB advindas das atividades agrícolas e/ou correlatas. Ou seja, campo e cidade são afetados pelas contrarreformas que, somadas à extinção das políticas de desenvolvimento rural e ao aumento da violência no campo, vêm acompanhadas do aumento do êxodo rural, em especial da juventude.