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Renovação da esquerda brasileira pode ter se iniciado nas manifestações deste domingo

Os manifestantes eram, em sua maioria, jovens negros, trabalhadores da limpeza urbana, do pequeno comércio (farmácias, padarias), moradores das periferias
Rudá Ricci
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Bom dia. Prometi que escreveria sobre a possível renovação da esquerda brasileira a partir do que foi domingo. 

Começo resumindo o que foi domingo. Domingo tivemos manifestações fortes em muitas capitais do país. Os manifestantes eram, em sua maioria, jovens negros, trabalhadores da limpeza urbana, do pequeno comércio (farmácias, padarias), moradores das periferias.

Não foi significativo o número dos que portavam bandeiras de partidos (havia as do PSTU, PSOL, UP e PCB, mas também alguns militantes assustados do PCdoB e PT), mas todos foram acolhidos pelos que protestavam. As falas e palavras de ordem eram novas, mais agressivas.

Colhi vários depoimentos e falas de gente que andava nas ruas. Convergiam para aquele orgulho meio irônico dos jovens da periferia dos grandes centros urbanos. Sempre que falo para gente da periferia, ouço o mesmo: “somos perifa, aqui não entra qualquer um”. Pois bem, esse discurso estava nas ruas do domingo. Eles diziam que apanham da polícia toda semana e que não tiveram como se esconder do Covid19 porque pegam ônibus diariamente para poder trabalhar. Não há como fugir da realidade para esse pessoal. O mais interessante é que ironizavam o que chamavam de “esquerda branca de classe média”. Muitos diziam que somos covardes ou “preguiçosos” (este adjetivo leva a ironia fina dos negros da periferia, gente que fala com um sorrisinho irônico no canto da boca).

Os manifestantes eram, em sua maioria, jovens negros, trabalhadores da limpeza urbana, do pequeno comércio (farmácias, padarias), moradores das periferias

Reprodução: Twitter
Jovens, saíram às ruas porque saem todos os dias. E continuarão saindo. Eles enfrentam a PM há tempos, nos seus bairros

São jovens, saíram às ruas porque saem todos os dias. E continuarão saindo. Eles enfrentam a PM há tempos, nos seus bairros, no morro, nos jogos de futebol. Conhecem esta violência institucional desde crianças. Parte deles está chegando na política por esses dias. Começaram a perceber que os ataques ao bolsonarismo não eram discurso despeitado de quem perdeu as eleições. Nem gente que quer a ter uma boquinha. Começaram a perguntar o que é ditadura.

Vários vieram pelo chamado das torcidas organizadas. Que decidiram se unir para enfrentar esse pessoal que conhecem bem: a repressão das policiais militarizadas que perseguem pretos pobres. Já havia visto essa reação dos jovens da periferia em 26 de junho de 2013.

Mas, e a esquerda tradicional? Como agiu? Com covardia extrema. Trata-se de uma esquerda desconectada do mundo real, focada em valores da época do lulismo. PT, PCdoB, PSB, PSOL e PDT possuem um quinto dos vereadores e prefeitos do país. É um exército político sem generais. O PSOL foi à guerra, mas os outros 4 partidos que citei ficaram no muro. Em Belém do Pará, os 5 se uniram para não apoiar as manifestações. Algo raro na última década. Quais os motivos deste pânico? A leitura parlamentar do jogo político que os engoliu.

A lógica parlamentar é marcada por uma estética da fala: discursos épicos, definitivos, muitas vezes, de confronto. Porém, a prática é cândida, de longas e permanentes negociações com seus pares no parlamento. Jogam em espaços curtos fazendo jogadas capciosas. A esquerda tradicional brasileira é dominada por este estilo parlamentar, discursivo, de pouca prática incisiva no mundo real. Fazem notas públicas, petições online, distribuem números de whatsapp e email de autoridades públicas para serem pressionadas via internet. Esse jogo estético que leva a quase nada.

Pior: desde o impeachment de Dilma, destilam um discurso defensivo e medroso. Vários expoentes desta esquerda de tipo parlamentar – que muito fala e pouco faz – começaram a bradar que o golpe está perto, que não haverá eleição, que o apocalipse é “now”. Já sugeri que se trata de uma faceta do transtorno do estresse pós-traumático. O impeachment de Dilma, a prisão de Lula e os absurdos votados pelo Congresso Nacional se somaram às eleições de alguns governadores e um presidente de extrema-direita. Arriaram. A esquerda acometida por transtorno do estresse pós-traumático teme a extrema-direita. Acredita que formaram um bloco poderoso, articulado aos interesses dos EUA, fechado no apoio das FFAA e das PMs estaduais, com um núcleo de apoio social estabilizado ao redor de 30%.

Essa leitura enviesada acaba invariavelmente sugerindo que já vivemos uma espécie de ditadura velada. A construção discursiva é absolutamente subjetiva, sem base na realidade concreta, um rebaixamento conceitual e político que raramente presenciamos na história da esquerda.

O medo e a baixa autoestima começaram a derrotar moralmente esta esquerda de tipo parlamentar. Anda como siri; corre como siri para dar impressão de movimento, aquele jogo do Dunga para inglês ver. Não poderia dar em outra: condenaram a saída às ruas. Sair às ruas, disseram, seria dar pretexto para uma intervenção militar. Não importavam a queda de popularidade de Bolsonaro e seu governo, os rachas no interior do governo, o enfrentamento sóbrio do STF aos desmandos do governo, as reações de jovens nas redes sociais. Não importaram os dados sobre aumento estratosférico dos índices de desemprego, as ações de solidariedade envolvendo muitas organizações populares, a queda vertiginosa de renda dos pobres, as mortes diárias por Covid19. 

Para a esquerda parlamentarizada, os dados são adornos. Enfim, a esquerda parlamentarizada é aquela que não consegue utilizar os dados objetivos da realidade e não conseguem enxergar os sinais da subjetividade popular. Porque está sempre na tribuna. Esta esquerda parece envelhecida precocemente, embebida em formol.

Mas, no confronto com o que ocorreu domingo, esta esquerda deixou estampada a diferença dos ambientes em que ficou paralisada neste domingo e o ambiente para onde foram os jovens negros das periferias. Um apartheid comportamental de grande envergadura.

O discurso de muitos jovens que domingo estavam nas ruas era irônico, forte, de esquerda ou flertando com os valores de esquerda. Nenhum de direita. Todos falavam do enfrentamento de classe. Sim, usavam o termo classe social. Não estavam para brincadeira.

Então, aqui vai minha percepção: ali pode estar a renovação da esquerda brasileira. A de um novo ciclo, mais pujante, com menos vícios institucionais. Talvez, esteja apontando o começo do ocaso do lulismo. Um bastão repassado em que o corredor de antes já cumpriu seu papel.

Esta possível renovação das esquerdas é mais ousada, mais curtida pela vida, menos classe média, menos branca, menos masculina. Aprenderá a lidar com o jogo de xadrez, mas, agora, prefere boxe. Se puder mesclar os dois tipos de jogo, será mais preparada que a esquerda atual.

Aguardo confirmação. Sociólogo é preparado para ler tendências. Algumas se realizam, outras minguam no desenrolar dos acontecimentos. Sociólogo não prevê, mas treina seu olhar para enxergar tendências. Esta é uma: a esquerda acovardada deu lugar aos jovens da periferia.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Rudá Ricci

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