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República Guarani: Ascensão e queda

Amaro Augusto Dornelles

Tradução:

Amaro Dorneles*

Ruínas de São Miguel das Missoes Ruínas de São Miguel das Missoes

República Guarani: Como indígenas e jesuítas conseguem construir uma sociedade democrática e socialista em plena selva do ‘fim do mundo’ –  entre os séculos XVII e XVIII – e ninguém neste país dá a devida importância. 

A história da aventura humana no planeta ainda é contada pelos vencedores. Mas a própria evolução dos acontecimentos, a capacidade de reinterpretação de fatos históricos, além do aprofundamento da pesquisa e o surgimento de novas informações, oferecem a oportunidade para que se chegue mais perto do que realmente possa ter acontecido no passado.

Os currículos escolares brasileiros, no entanto, reproduzem uma visão estreita da história nacional. E praticamente ignoram a história pré colombo-cabraliana.

Uma das passagens mais importantes na formação do estado brasileiro omite para a maioria da população: a ascensão e a queda das Missões Jesuíticas no Sul, berço da República Guarani.

Entre 1609 e 1768, padres jesuítas e índios construíram um novo caminho para a humanidade. Eles fundaram uma Província Modelo, com cerca de 30 Reduções*, distribuídas, inicialmente, pelas áreas fronteiriças entre Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul). Na fase final eles se concentraram no Rio Grande do Sul, para se proteger dos ataques dos “valentes” bandeirantes.  

Os guarani viviam em pequenas comunidades, mas também exercitavam a vida nômade, dependendo das condições da região e do clima. Cultivavam a terra que, assim como a água e o céu, não tinha dono. O fruto do trabalho de cada um era dividido entre todos, segundo a necessidade de cada núcleo familiar. A rivalidade com outras tribos e etnias existia, assim como as guerras. Mas eram considerados pacíficos.

Menos que animal

Uma após outra, as tribos que entravam em contato com brancos e mamelucos foram sendo dominadas e escravizadas. Os nativos morriam como moscas, vítimas não só das armas, mas muito mais de doenças e pragas desembarcadas com os europeus.

A falta de alimentação também ajudou a dizimar os guarani. Para os portugueses – assim como para os demais colonizadores das Américas – um índio valia menos que um animal. Eram forçados a trabalhar de sol a sol, geralmente sem água ou qualquer tipo de alimento. A população brasileira é levada a pensar que os nativos entregaram suas riquezas – e a própria cultura – sem resistir. Mas a história não é bem assim.

Quando portugueses e espanhóis chegaram aqui os nativos viviam na Idade da Pedra Polida (Neolítico), desconheciam a pólvora. Nunca tinham visto revólver, rifle – muito menos canhão – com que os invasores se apresentaram para deixar bem claras suas intenções. Naquela época, o Papa era chamado para resolver os conflitos entre as nações poderosas. Em 1494, o chefe da Igreja de Roma assinou o Tratado de Tordesilhas, dividindo o mundo, praticamente, entre Portugal e Espanha.

Democracia indígena

vieiraEra uma espécie de carta de salvo conduto antecipado para tudo o que portugueses e espanhóis fizessem na América. Coube à Espanha tomar as terras habitadas pelos guarani da região onde hoje ficam Paraguai, Argentina e parte do Brasil. A Portugal tocavam as terras à direita da linha de Laguna-Santa Catarina, até Ilha do Marajó, menos de 30% do Brasil que conhecemos hoje.

Neste cenário conturbado, onde portugueses queriam os índios como escravos e os espanhóis como encomendados (o mesmo que escravizados), os Jesuítas foram convocados pela coroa espanhola para tornar menos cruel essa relação. Assim começou a experiência das missões jesuíticas na América do Sul.  No começo eram pequenas vilas, que foram crescendo até virar cidades. Os índios aprenderam a identificar a cruz como símbolo do Evangelho. E também da organização.

Os jesuítas planejavam a vida nas comunidades, cada vez mais prósperas. Esses povoamentos desenvolveram sob todos os aspectos, inclusive no político. Nas Missões se praticava o “ods”, método milenar guarani de escolher seus chefes. Enquanto a poder político na Europa era exercido por  reis, rainhas por herança de família, na República Guarani todo cidadão tinha o direito de eleger, por voto direto, de prefeito a juiz de direito, passando pelo chefe de polícia e demais cargos importantes.

Escravizando trabalhadores

guaraniOs primeiros jesuítas chegaram em 1626 ao território do que atualmente se conhece como Sete Povos das Missões. Mas enquanto a experiência social dava seus frutos e conquistava adeptos e inimigos, os interesses econômicos lusitanos e espanhóis se alteravam.

Diante do alto custo da ”importação” de escravos da África, e a baixa lucratividade da produção rural em São Paulo, Raposo Tavares, foi buscar indígenas para escraviza-los nas Missões, incendiando os povoados, destruindo as plantações. Questionados por essas bárbaras práticas, respondiam que estavam apenas cumprindo determinações da Bíblia ao combater as nações pagãs.

Como se observa, religião de conveniência é pratica muito mais antiga do que se poderia imaginar.  Mas se não fosse o bom lucro dessas incursões, certamente os mercadores seguramente não fariam. Raposo Tavares – que já havia dizimado uma Redução guarani no Paraná, obrigando a comunidade a fugir ainda mais para o sul – voltou às Missões.

Nesta época, Porto Alegre era um entreposto de índios escravos. O historiador, teatrólogo e escritor Alcy Cheuche*, admite: “É vergonha para nós, mas temos que dizer a verdade. Raramente se ve historiadores relatarem como foi o primeiro núcleo de gente branca em Porto Alegre. Era o lugar onde encostavam navios para levar escravos. Desciam a Lagoa dos Patos e faziam a volta pelo mar, porque era difícil levar “a mercadoria” por terra até São Paulo. Como ele gosta de dizer, o início da nossa civilização foi muito pouco civilizada.

Canhão de taquara 

Os sobreviventes desses primeiros povos  (18 Reduções da primeira fase) estabelecidos em território sulista tiveram de passar para a margem direita do rio Uruguai – atual Argentina – para se ver a salvo da barbárie bandeirante. Entretanto, pouco a pouco as coisas foram voltando ao normal. Entre l640 e 1641pequenas cidades foram erguidas.

Foi quando uma nova bandeira desceu o rio Uruguai, através do rio Ijuí. Os novos expedicionários, bandeirantes e indígenas escravizados, vinham em canoas. “Neste momento aconteceu o que gostaria que todos os livros colocassem ao alcance de todos: a Batalha de Mbororé”, brada Alcy Cheuíche.

Imagine a cena: bandeirantes com armas de fogo se deparam com índios munidos de flechas e lanças. Não obstante, dois irmãos jesuítas – ex-soldados na Europa ande de se converter – sabiam como fazer canhão e pólvora de forma alternativa. Ali mesmo eles puseram mãos à obra. E inventaram  o canhão de taquara. Este é, na opinião de Alcy Cheuiche, o maior símbolo da resistência guarani: uma taquara grossa, chamada Taquaruçu.

Fuga do bandeirante

O miolo do pedaço de cana era retirado. Depois de forrado e costurado com couro molhado de touro, deixavam o material secar ao sol. “Pronto, aquilo ficava que era um aço”. Dentro colocavam a pólvora e por cima uma pedra de formato arredondado.

– Agora vou contar o que aconteceu com os valentes bandeirantes: Quando eles desciam o rio, encontraram as canoas dos índios. Antes que atirassem com os mosquetes, receberam o primeiro tiro do canhão de couro de touro que, evidentemente estourou. Mas a bala atingiu os bandeirantes. E logo troaram o segundo e o terceiro canhões. O que os valentes invasores fizeram? Fugiram e nunca mais voltaram.

– A última vez que os bandeirantes entraram no território do Rio Grande do Sul foi em 1641, porque eles não estavam conquistando território nenhum para o Brasil, como a história oficial registra. Como Erico Veríssimo escreveu, de maneira crua, mas verdadeira, eles estavam preando índios e emprenhando índias. Veríssimo diz isso, eles estavam roubando índios para escravizá-los e se aproveitando das mulheres. Essa a única verdade – relata o estudioso, para concluir:

Tratado de Madri e rebelião

– A batalha de 1641 representa o início do período áureo dos Sete Povos das Missões, que floresceram até a morte do Sepé, um século e 15 anos depois. O período de 1641 a 1756, foi o auge da República Guarani, não só em território do Rio Grande do Sul, onde voltaram a partir de 1682, mas também em solo argentino e paraguaio. Eram ao todo 30 cidades missioneiras.**

O interesse de Portugal e Espanha no sul do sul, as terras do “fim do mundo” só cresciam. Em 1750, Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Madri, acertando a troca dos Sete Povos das Missões pela Colônia do Sacramento, possessão portuguesa no atual Uruguai. Neste contexto histórico desponta a figura de Sepé Tiaraju – “Facho de Luz” em guarani – à época corregedor, prefeito, da Redução de São Miguel. Eleito pelo voto direto dos concidadãos guaranis, levou até as últimas conseqüências a missão de representar os interesses de seu povo.

Pelo acordo selado entre as duas maiores potências do planeta – sob os auspícios do Papa – cerca de 50 mil guarani cristãos eram obrigados a abandonar suas cidades, igrejas, lavouras, fazendas e começar tudo de novo do outro lado do rio Uruguai.  Calcula-se, por baixo, em mais de dois milhões de cabeças o rebanho que eles foram obrigados a deixar para trás.

“Esta terra tem dono”

Mas além das perdas materiais, tinha a questão cultural e espiritual, já que a ordem obrigava abandonar a terra de seus ancestrais. Insurgindo-se contra esse tratado infame, Sepé Tiaraju liderou a resistência dos guarani, pronunciando a famosa frase, decantada até hoje no Rio Grande do Sul: “Alto lá. Esta terra tem dono”.

Sepé Tiaraju morreu em combate a 7 de fevereiro de 1756, junto a seus melhores guerreiros, enfrentando as tropas portuguesas e espanholas no local chamado Batovi, hoje a cidade de São Gabriel. Três dias depois, a 10 de fevereiro, mil e quinhentos índios foram trucidados na Batalha do Caiboaté.

Não houve nenhuma baixa nos exércitos invasores segundo os registros. Bastaram alguns meses para que nada mais restasse do sonho missioneiro. Mas, como lembra Alcy Cheuíche, “o povo do Rio Grande do Sul, por sua própria conta, santificou o herói guarani missioneiro como São Sepé – nome dado ao arroio, à margem do qual o herói passou a última noite, e à atual cidade de São Sepé”.

Em busca da ‘terra sem males’

A Epopéia do povo Guarani em busca da realização de seus ideais. 

A teoria mais aceita sobre o aparecimento do Povo Guarani na América entende que eles chegaram procedentes da Polinésia, através das águas quentes do Pacífico. Há vestígios de que há cerca de 8.000 anos eles ocupavam as margens do rio Madeira, em plena floresta amazônica. Com o passar do tempo foram se deslocando ao leste e ao sul, descendo no mapa do Brasil em busca de clima mais ameno. Estudos especializados comprovam a ascendência do tronco asiático mongólico no sangue guarani, com possíveis componentes polinésios”.

O guarani era de estatura média, compleição robusta, cabeça grande, rosto largo e ovalado, olhos pequenos e vivos, com nariz levemente achatado, dizem os estudiosos. Dentadura firme e sem cárie, tez bronzeada, barba rala, cabelos pretos e lisos, além do rápido andar, faziam o perfil deles..

Quanto aos meios de comunicação, entre as comunidades guaranis, já antes do “descobrimento”, mantinham uma rede de informações permanente. Para tanto valiam-se de visitações intragrupais ou de mensageiros. A informação fluía rapidamente. Os caminhos ligavam as aldeias e mesmo as regiões mais distantes. Tais passagens geralmente eram trilhas dentro da mata, conhecida apenas pelos nativos, que as demarcavam para reconhecimento posterior.

O povo guarani chegou à região hoje pertencente às áreas fronteiriças do Mercosul há cerca de 2.500 anos, indicam as evidência históricas. Eles ocupam os espaços de outras nações nativas que viviam no território há mais de 10 mil anos. Muitos ficaram pelo caminho. Assim como outros preferiram se fixar na região litorânea do sudeste para o sul do Brasil, entre os estados do Espírito Santo e Rio Grande do Sul.

Valores sociais

A maior parte das comunidades se instalou no estuário do Rio da Prata, às margens do Rio Paraná, em territórios de Brasil, Paraguai, Argentina, Uruguai e Bolívia. Segundo o historiador e pesquisador José Roberto de Oliveira, os guarani buscavam a “terra sem males”, um espaço social, onde a abundância que a terra proporciona permitia o livre exercício dos valores sociais, no qual a fartura da terra é o meio, e não o fim, para a continuidade do “ñande reko”, modo de ser.

Bartomeu Merià, jesuíta e antropólogo espanhol, especialista no tema, sustenta que o máximo valor cultural dos guaranis é sua religião, uma religião da palavra inspirada, “sonhada”, pelos xamãs e “rezada” em prolongadas danças rituais. A missão jesuítica que se seguiria, portanto, não realizaria uma conversão da religião guarani, mas sim uma substituição”.

Herói emblemático

Sepé Tiaraju veio ao mundo em 1722, na atual cidade de São Luiz Gonzaga. Foi batizado José, mas desde cedo foi Sepé. Na época, uma epidemia de escarlatina – doença que matava milhares de pessoas ao redor do mundo – ceifou a vida dos pais de Sepé. Órfão, estivesse  numa grande cidade nem é bom pensar qual poderia ser o seu destino. Mas em uma Missão Guarani, o costume era proteger a vida de órfãos, dos idosos e necessitados. É emblemático o fato do jovem crescer, chegar a ser prefeito e herói de seu povo.

Por ocasião das comemorações dos 200 anos de sua morte, alguns historiadores tentaram reduzir a figura do herói, argumentando que teria lutado contra o Brasil. Que Brasil seria esse? Afinal, o país só se tornou independente como República em 1889, quando Sepé já era pó debaixo da terra.

Socialismo cristão no século XVII

José Roberto Oliveira com um anjo barroco de origem paraguaia José Roberto Oliveira com um anjo barroco de origem paraguaia

Para Voltaire, a República Guarani foi um ‘triunfo da Humanidade’.

O sucesso da experiência guarani e jesuítica nas Missões – região estabelecida nas atuais áreas fronteiriças do sul do Mercosul – teve e tem profunda repercussão no pensamento moderno. A avaliação é de ***José Roberto de Oliveira, pesquisador e historiador, que cita texto de Voltaire, que qualifica a experiência como “triunfo da humanidade”. E Montesquieu que chamou de “primeiro estado industrial da América”.

Especialista no tema, o estudioso estabelece um elo entre a Utopia, de Tomás Morus, e o “modo de ser” dos guarani, em sua “busca da terra sem males”. Ele destaca a profunda espiritualidade guarani, que concebe o pensamento natural de se estar vivo mesmo depois da morte física.

Entre capitalismo e socialismo

Os jesuítas das Missões priorizavam um cristão ativo e integrado com o mundo. Em conjunto com a comunidade guarani, eles construíram as reduções, que correspondiam a um plano uniforme, estabelecido e seguido à risca. A produção era maior que as necessidades, exportavam para as maiores cidades da América e Europa, os campos estavam bem repartidos, sem proprietários.

Nenhuma comunidade devia diminuir excessivamente sua população, e tampouco ser superpovoada. A virtude era a vida de acordo com a natureza. Não havia indigentes, ninguém possuía nada, todos eram ricos. Para Oliveira, as Reduções propõem um caminho intermediário entre o capitalismo e o socialismo: “Conclui-se que o planeta só será sustentável com uma sociedade fraternal e igualitária”.

As relíquias e as lições destas experiências podem ser visitadas hoje por turistas no território do Circuito Internacional das Missões Jesuíticas, entre Brasil, Argentina e Paraguai. A Unesco reconhece os Sete Povos como Patrimônios da Humanidade. No Brasil, a Redução de São Miguel é o principal monumento. Recebe visitantes, especialmente da Europa, conhecedores da importância da experiência na formação do cooperativismo, Revolução Francesa, comunismo e socialismo. Para o Oliveira, “o Brasil precisa abrir os olhos para que a população – e as novas gerações em especial – conheçam esta experiência que encanta cada vez mais os filósofos do mundo”.

*Amaro Dornelles, jornalista e diretor da Gênese Consultoria Em Comunicação Social, colabora com Diálogos do Sul

*Do latim reduccio , na América Latina, reduzir  indígenas que estavam em amplos territórios,  confinando-os em comunidades pela autoridade eclesiástica ou real para facilitar a colonização. 

**In Sepé Tiaraju – 250 Anos Depois’, editora Expressão Popular, 2005 – Alcy José de Vargas Cheuiche.

***Mestre em Desenvolvimento pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Especialista em Administração e Engenheiro.  Foi diretor de Desenvolvimento do Turismo do RS e Adjunto da Secretaria Nacional de Políticas do Turismo do Ministério do Turismo.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Amaro Augusto Dornelles

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