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Toggle*Atualizado em 25/04/2022 às 16h05.
Sucessivas gerações de jovens aprenderam, nos bancos das escolas, que ao libertador 25 de Abril se seguiu um período de excessos revolucionários em que a tentação de um regime totalitário de esquerda pairou sobre Portugal. O 25 de Novembro teria sido feito para afastar esse perigo e restituído a democracia portuguesa à sua pulsão original. Deste movimento, a democracia portuguesa, tal como a conhecemos, seria a mais direta herdeira, expressando os anseios da maioria do povo e não da minoria revolucionária que teria “usurpado” o poder no Processo Revolucionário em Curso de 1975.
Abril/Abril
A permanente colaboração do “arco de governação” do regime — como se autodesignaram o Partido Socialista (PS), o Partido Social Democrata (PPD/PSD) e o Partido Popular (CDS/PP) — foi tão estreita, durante quase 40 anos, que a simples perspectiva dos acordos de incidência parlamentar entre o PS e os partidos das bancadas à esquerda no Parlamento — Partido Comunista Português (PCP), Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV) — deixou a direita portuguesa (incluindo a que se encontra na orla do PS) em estado de choque, predestinando catástrofes e demônios (o “diabo” que aí vinha e que se perdeu no caminho), no que foi acompanhada pelos meios de comunicação de referência — habituados e adequados ao “centrão” — nos quais se desencadeou uma virulenta campanha contra a nova solução política.
Dois anos depois, com muito ainda para fazer, o país confirma aquilo que os opositores à política de direita vinham há muito afirmando e defendendo: que governar com a esquerda (mesmo se o governo não é de esquerda mas apenas unicolor do PS) é possível, necessário e benéfico não só para os trabalhadores como para os interesses do povo português. E que quanto mais forte for a esquerda consequente menos vacilante será a tentação de direita do governo PS, após ter ultrapassado o jejum de governação de vários anos.
Um mito que se desmorona
A “narrativa tradicional” foi desde sempre negada por aqueles que se afirmaram, ao longo destes anos, em teoria e na prática, herdeiros e defensores das conquistas revolucionárias obtidas pelos trabalhadores e pelo povo português com a Revolução de Abril, mas era aceito por todo o restante espectro político e de opinião.
Recentemente, fruto do novo quadro político, têm surgido publicações que contestam a “narrativa tradicional” em vários aspectos. É o caso dos livros de Ribeiro Cardoso, “O 25 de Novembro e os media estatizados”, e de Miguel Carvalho, “Quando Portugal ardeu”, ambos publicados em 2017.
No primeiro é posto em causa o pretenso “assalto aos meios de comunicação” que teria sido feito em 1975 por militantes revolucionários e exposto o violento processo de saneamentos e apropriação dos meios de comunicação que se seguiu ao 25 de Novembro. No segundo é o combate da direita (por vezes até ao PS, como fica claro) contra a pretensa “tentativa de sovietização” da sociedade portuguesa que se desmascara como não tendo passado de um pretexto invocado pela contrarrevolução para desencadear uma campanha de violência contra civis e associações políticas que os seus representantes no atual parlamento sempre esquecem quando se trata de invocar os seus pergaminhos democráticos.
É também o caso do, e mais recente, Diário da Contrarrevolução, apresentado ao público no passado dia 12 de Abril pela Associação Conquistas da Revolução (ACR). Para falar sobre o livro, que se publica por ocasião do 44.º aniversário do 25 de Abril de 1974, o AbrilAbril falou com dois dos fundadores e dirigentes da associação que tão firmemente tem pugnado pela conservação da memória da Revolução de Abril e dos revolucionários que a protagonizaram.
Uma associação para a memória de Abril
A Associação Conquistas da Revolução (ACR) tem por mote “Defender Abril | Construir o Futuro”. Criada em 2011, o seu objetivo é “preservar, divulgar e promover o apoio dos cidadãos aos valores e ideais da Revolução, iniciada em 25 de Abril de 1974, esse que foi o momento mais luminoso da História de Portugal, cultivando o espírito revolucionário e a consciência social progressista, com a construção de uma democracia política, econômica, social e cultural amplamente participada, que a Constituição da República Portuguesa, aprovada em 2 de Abril de 1976, viria a consagrar”.
Além das diversas iniciativas que tem promovido e das edições que tem vindo a publicar, um dos pontos altos da sua atividade foi a realização, em 2014, do Congresso Conquistas da Revolução, por ocasião do 40.º aniversário da Revolução de Abril.
Fomos recebidos pelo comandante Manuel Begonha e pelo coronel Baptista Alves, pouco antes do jantar comemorativo anual dos associados e amigos da ACR.
Manuel Gastão Nunes Bacelar Begonha, capitão-de-mar-e-guerra engenheiro mecânico, teve uma participação destacada no chamado Processo Revolucionário em Curso (PREC), designadamente como membro do Conselho de Classes da Armada e da Assembleia do Movimento das Forças Armadas (MFA), Delegado do Conselho da Revolução e como coordenador da Comissão Dinamizadora Central (CODICE) da 5ª Divisão do EMGFA, sendo responsável pelas Campanhas de Dinamização Cultural e Ação Cívica.
José Manuel da Costa Baptista Alves, coronel engenheiro eletrotécnico da Força Aérea, regressou de uma comissão de serviço em Angola para integrar uma comissão civil no extinto Fundo de Fomento de Habitação durante os IV, V e VI governos provisórios, além de ter exercido diversos cargos militares no âmbito da sua especialidade.
Manuel Begonha esteve à frente da direção durante os primeiros mandatos dos corpos gerentes e é o presidente da Mesa da Assembleia-geral para o período de 2018 a 20121. Baptista Alves é o Presidente da Direção no mesmo mandato.
Contra o esquecimento do que verdadeiramente foi o 25 de Abril
A associação propõe-se “preservar a memória de Vasco Gonçalves” e dos militares e civis que participaram no processo revolucionário, recolhendo os testemunhos dos que viveram e protagonizaram esse período extraordinário da nossa história. “Sem deixar testemunhos”, refere Manuel Begonha, “outros podem dizer o que quiserem” sobre os eventos desse período e as figuras revolucionárias que incorporaram a vontade de libertação do povo português, as quais, tendo responsabilidades no Estado saído da Revolução de Abril, se colocaram ao serviço das populações e da esperança destas num Portugal democrático e socialista.
O 25 de Abril “começou por ser um golpe de Estado a que se seguiu uma revolução” protagonizada pelo povo, e é sob o impulso deste que as leis são criadas. Por essa razão — considera Manuel Begonha — “os decretos-lei publicados — sobretudo a partir do Segundo Governo Provisório, chefiado por Vasco Gonçalves — refletem com veracidade o andamento da revolução”. Aponta também que “a maior parte dos decretos-lei revolucionários, ao contrário do que se pensa, foi publicado durante a vigência deste governo”, entre Setembro de 1974 e Março de 1975, e não depois da tentativa de golpe de 11 de Março.
Wikimedia Commons
"Narrativa tradicional” foi desde sempre negada por aqueles que se afirmaram herdeiros e defensores das conquistas revolucionárias
Os decretos-lei, afirma Manuel Begonha, “constituem um importante instrumento de consulta” para quem queira conhecer e compreender a verdadeira história da Revolução de Abril na sua fase ascendente e foi essa noção que impulsionou as primeiras publicações da Associação Conquistas da Revolução (ACR).
Em 2014, marcando o 40º aniversário do 25 de Abril, a ACR publicou “Vasco: nome de Abril e Conquistas da Revolução”.
O primeiro livro é dedicado ao militar que, à frente de quatro governos provisórios, entre Julho de 1974 e Setembro de 1975, desempenhou “um papel determinante” durante o período “mais exaltante, inovador e criativo da revolução portuguesa”. O livro reúne os “depoimentos de 72 pessoas com conhecimento direto de Vasco Gonçalves” e ajuda a compreender melhor a personalidade do homem cujo nome se liga indissoluvelmente ao processo revolucionário e libertador em Portugal
Conquistas da Revolução reúne os decretos-lei que plasmam “os históricos avanços sociais, políticos, económicos e culturais” decorrentes da aliança entre o movimento operário e popular e os militares revolucionários do Movimento das Forças Armadas (MFA), que se traduziram em “profundas transformações revolucionárias (liberdade; paz; direitos trabalhistas, sociais e culturais; nacionalizações; reforma agrária; descolonização; independência nacional)” que viriam a ser consagradas na Constituição da República Portuguesa de 1976. A legislação é dividida por dois capítulos, “Liberdades de Abril” e “Processo revolucionário”, sendo completada por depoimentos de Duran Clemente, Manuel Begonha e Modesto Navarro, e de um conjunto de anexos explicativos.
Tratou-se de um “trabalho exaustivo de seleção sobre os decretos-lei representativos do período”, em que, por vezes, “os preâmbulos eram mais importantes” do que os conteúdos legislativos. O coronel Baptista Alves foi o impulsionador do projeto editorial e, desde o início, previu a sua continuidade, desta vez historiando a contrarrevolução legislativa que se desenvolveu a partir do Primeiro Governo Constitucional.
A contrarrevolução legislativa contra o 25 de Abril
O Diário da Contrarrevolução cobre, com metodologia igual à do precedente volume, os decretos-lei publicados entre 1976 e 1982, do primeiro ao oitavo governos constitucionais. A ordem cronológica dos decretos-lei mantém-se, sendo completada por uma série de “textos temáticos, testemunhos de revolucionários”, abordando os direitos atingidos pela ação legislativa contrarrevolucionária dos sucessivos governos nesse período. Colaboram na edição Abílio Fernandes, Américo Nunes, Avelãs Nunes, António Gervásio, Modesto Navarro, António Quintas, Carlos Carvalho, Carlos Silva Santos, Fernando Correia, Jorge Sarabando, José Ernesto Cartaxo, Lino Paulo, Maria José Maurício, Mário Nogueira, Marques Pinto, Nuno Lopes e Ribeiro Cardoso.
Aí se coloca o “25 de Novembro como ponto de partida para a contrarrevolução” que atingiu a economia (nacionalizações, reforma agrária), os direitos trabalhistas (unidade sindical, controle operário, contratos de trabalho), os direitos sociais (educação, saúde, habitação, direitos das mulheres, cultura, comunicação social) e mesmo as relações internacionais (integração europeia, relações entre Portugal e Angola). Os decretos-lei demonstram — afirma Baptista Alves — que “o 25 de Novembro esteve na origem da destruição das conquistas da revolução”, sobretudo naquela operada durante os dois primeiros governos constitucionais, em que foram “tomadas as medidas mais destruidoras”.
O livro termina com a primeira revisão constitucional, em 30 de Setembro de 1982, na qual é extinto o Conselho da Revolução, e anuncia volumes posteriores, que prosseguirão a inventariação da contrarrevolução legislativa — com particular atenção à que decorreu durante o período que ficou conhecido como do “cavaquismo” — até à derrota do governo PSD/CDS em 2015 e da criação de um novo quadro legislativo parlamentar.
Em jeito de balanço, Baptista Alves distingue os dois períodos legislativos, o revolucionário e o contrarrevolucionário, pela diferença da interação entre as autoridades (governos e Estado) e o povo: no primeiro período “é o povo que faz a revolução e os decretos-lei andam atrás do povo”; no segundo período é “a contrarrevolução” assente nos governos e no Estado que “pretende vergar o povo pela lei”, recorrendo à repressão mais violenta sempre que necessário — como foi o caso dos assassínios de defensores da Reforma Agrária, no Alentejo, e de sindicalistas durante o 1º de Maio de 1982, no Porto.
Também afirma ser fácil distinguir os revolucionários dos contrarrevolucionários na atividade legislativa realizada até à primeira revisão constitucional: enquanto “os primeiros afirmam as suas convicções claramente” nos preâmbulos que justificam a legislação produzida, os segundos alteram essa legislação dizendo-se, inicialmente, seus partidários, para “apenas mais tarde se assumirem como na realidade são: seus opositores” — é o caso, flagrante, da lei que a pretexto da unidade sindical combateu, efetivamente, esta.
Ao despedirem-se, os dois militares chamaram a atenção para a frase de Vasco Gonçalves que encerra o livro: “O futuro com que sonhei não é cada vez mais saudade, é, sim, cada vez mais, necessidade imperiosa. Assim o povo o compreenda”.
É desta necessidade imperiosa, que a inversão de um longo processo contrarrevolucionário vem de novo alimentar de esperança o povo português, que se construirão os caminhos do futuro.
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