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Roberto Amaral: O poder do Judiciário e os dias piores que virão

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

O Judiciário concorre para o perigoso esvaziamento da democracia representativa e se transforma em instrumento de insegurança jurídica

Enquanto Cármen Lúcia discursava na abertura do ano Judiciário, do lado de fora colegas magistrados protestavam por aumentos salariais.

A velha direita pelos seus jornalões, e esses pelos seus editoriais e colunistas, revela-se, assim de repente, assustada com sinais de desobediência civil que seus sismógrafos estariam captando nas hostes da oposição e com o que identificam como “ameaças à ordem jurídica”.
Em ambos os casos, trata-se de puro cinismo, pois nossa gárrula imprensa está comprometida até o gogó com todas as violências à ordem constitucional impostas pelos golpes militares e os golpes de Estado não militares (todos de direita), dos quais foi parte decisiva e beneficiária, como demonstra a história do maior conglomerado de comunicação do país.
O comentário ficaria por aqui se, com esse pano de fundo e atendendo a essa pauta, a ministra Carmem Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça — cuja função é realizar o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes — não tivesse escolhido como tema de seu discurso, na abertura do “ano judiciário” a defesa corporativa do Poder Judiciário, isentando-o das criticas que vem recebendo, em um crescendo, pela sua politização e partidarização, por agir como se Poder Moderador fora, intervindo nas atribuições dos demais poderes, legislando mesmo, a partir, até, de decisões de juízes de piso.
Enquanto a ministra perorava no plenário da Casa, ao lado do que ainda se chama de “demais autoridades da República” (todas em graus diversos respondendo a processos criminais por corrupção), lá fora, em frente ao Tribunal, em ato significativo da crise ética em que o país está engolfado, um magote de colegas magistrados e procuradores, com faixas, cartazes, gritos e conclamações, cegos diante das agruras da sociedade brasileira, protestavam por mais vantagens pecuniárias e aumentos salariais.
Sem se darem conta, os amotinados e amotinadas de gravata e salto alto, que, com aquele ato, ilustravam uma das críticas da sociedade, incomodada com o monturo de vantagens, penduricalhos e mais isso e mais aquilo que faz de magistrados e procuradores príncipes de um funcionalismo público que teve seus reajustes salariais suspensos pelo governo federal.
Proclamou a ministra-presidente: “Pode-se ser favorável ou desfavorável à decisão judicial pela qual se aplica o direito. Pode-se buscar reformá-la, pelos meios legais e nos juízos competentes. O que é inadmissível e inaceitável é desacatar a Justiça, agravá-la ou agredi-la”.
Ora, a ministra, que já lecionou Direito Constitucional, sabe que é direito do súdito resistir à opressão legal, porque nem sempre o que é legal — e a legalidade depende do poder reinante — é legítimo.
Porque a legitimidade decorre de vários intervenientes a começar pela legitimidade do órgão editor. Muitos dos que ainda estão vivos resistiram, por considerá-la ilegítima, à ordem legal da ditadura (que o STF e o Poder Judiciário de um modo geral subsumiram) e essa resistência foi o aríete que rompendo com a lei da masmorra abriu caminho para a democratização.
Ora, ministra-presidente, foi a desobediência civil de Mahatma Gandhi que levou a Índia à libertação do jugo colonialista. E os brasileiros de um modo geral e os mineiros de forma ainda mais orgulhosa festejam a memória do Alferes porque heroicamente enfrentou o direito ilegítimo de D. Maria, a louca.
Ora, o STF “agrava a Justiça” quando adota decisões inconstitucionais, e as mais evidentes são aquelas que ofendem o equilíbrio dos poderes, e invadem o campo da competência do Executivo ou do Legislativo.
O Supremo não tem competência para impedir a nomeação de um ministro de Estado, nem tem competência para destituir o presidente de uma Casa legislativa, nem para suspender, por decisão monocrática, a eficácia do indulto de Natal decretado pelo  presidente da República, mesmo sendo ele o sr. Michel Temer.
O STF renuncia à sua imparcialidade, ofendendo à sua própria legitimidade, quando julga com dois pesos e uma medida a mesma questão, quando, de novo em decisão monocrática, impede, sob a alegação de “desvio de finalidade” a nomeação pela presidente Dilma Rousseff do ex-presidente Lula, para o cargo de ministro Chefe da Casa Civil, e, de novo por decisão monocrática, não vê esse desvio quando o atual locatário do Jaburu converte em ministro chefe da Secretaria Geral da Presidência (ostensivamente protegendo-o com o manto do foro privilegiado) o assessor Moreira Franco, ameaçado por processos na primeira instância. E nenhuma dessas decisões segue para uma Turma ou para o Plenário.
O STF desserve à Justiça quando esvazia o Plenário e seus onze ministros se transformam em onze tribunais, mais poderosos que o coletivo que não se anima a revisar as decisões monocráticas de ministros que não dialogam entre si (alguns se odeiam), e cujas sentenças brigam entre si ao sabor de interesses e oportunismos muitas vezes negociados nos bastidores e nos palácios, bem como disputas de vaidades sem fundamento.
O STF desserve à Justiça quando permite que seus membros descumpram seu regimento e manobrem com “pedidos de vista”. Diante de um julgamento no qual fora vencido, o inefável ministro Gilmar Mendes segurou por mais de dois anos a decisão que impedia o financiamento das eleições por empresas privadas.
Por nada haver sido feito para coibir tal abuso, o ministro Dias Toffoli, que logo mais assumirá a presidência do STF, pediu vista em julgamento já praticamente decidido (oito votos contra um em um coletivo de 11), sob a bizarra alegativa de que o Congresso iria disciplinar a matéria.
E assim a pauta do STF é manipulada por liminares monocráticas e pedidos de vista, ao arrepio de seu Regimento e, principalmente, ao arrepio dos interesses da sociedade que reclama por uma Justiça mais transparente, menos lerda e menos envolvida com os interesses que subjazem às causas sob seu crivo.
O STF não tem competência para revogar o princípio secular da presunção da inocência e rasgar o inciso LVII do artigo 5º da Constituição (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), violência que, aliás, dependeu do voto de minerva da ministra  presidente.
E o Poder Judiciário não pode transformar em traficância processual o pleito eleitoral (o momento mais significativo de uma democracia representativa), e muito menos transferir para seu âmbito, seja um juiz primário, sejam três ou mais desembargadores, a competência e a legitimidade que pertencem com exclusividade à soberania popular, poder que, aliás, está acima de todos os demais, dele decorrentes.
Um dos mais graves problemas do STF foi apontado por Sérgio Sérvulo em seu Recurso extraordinário, cuja leitura ouso sugerir. Trata-se do fato, observa o constitucionalista, de o Supremo considerar-se exonerado de fundamentar juridicamente as suas decisões; com isso, para decidir, ele deixa de invocar a Constituição e a lei, e seus julgamentos passam a ter fundamentação política: a conveniência e a oportunidade.
Esse desvio faz escola no juizado de primeira instância, com decisões sem o anúncio de seu amparo legal, fundadas em suposições, em conjecturas políticas — em “convicções”, em suma.
Desserve à Justiça, e desgasta a imagem do Poder Judiciário, o voluntarismo e a incontinência verbal,  fora dos autos, de ministros e  juízes de piso, antecipando opiniões (e votos) sobre matérias que mais tarde julgarão; desserve à Justiça dos amores da ministra o protagonismo judicial, coletivo e individual, cada julgador adaptando a lei à sentença que decidiu prolatar, por vezes mesmo antes de examinar os autos, como fez o desembargador presidente do TRF-4 apreciando a sentença do juiz Sérgio Moro condenatória do ex-presidente Lula, e como faz usualmente, o ministro Gilmar Mendes, o mais boquirroto de todos.
Desservem à Justiça os conceitos públicos do inexcedível ministro Gilmar Mendes proferidos, sem reação da Casa, sobre seus colegas Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio Mello e Luiz Fux.
O mais doloroso, porém, é ter que registrar desvios éticos pretensamente absolvidos pelo mandato legal que não cura o ato eivado de ilegitimidade. Como justificar que o juiz Moro, morando em Curitiba em imóvel próprio, casado com uma juíza, receba auxílio moradia, tendo salário mensal final (a soma dos salários com os penduricalhos) em torno de 54 mil reais (dados de 2015)?
Como explicar que a esposa do meritíssimo ministro Marco Aurélio Mello, que mora em amplo apartamento funcional, receba (diz o Estadão de 4/2/2018) auxílio-moradia de R$ 4.377,73 mensais? Sandra de Santis, a esposa, é desembargadora no TJ-DF.
Como explicar que o juiz Marcelo Bretas, que cuida dos processos da Lava Jato no Rio, e sua esposa, que também é juíza, recebam auxílio-moradia, quando moram juntos, em apartamento próprio no Rio de Janeiro?
Quanto recebe de auxílio-moradia o fiscal da Funai deslocado para o interior da Amazônia?
Há razões para explicar o abismo cavado entre o povo e o Judiciário e uma dentre muitas é a dificuldade de o cidadão compreender e aceitar práticas que sua ética, a ética da média do brasileiro comum, não aprova: os altos salários (altíssimos em face do que percebem os demais funcionários públicos federais), as vantagens, os auxílios diversos, auxilio moradia e auxílio livro, auxílio representação, concessão de diárias sem critério expresso, e mais isso e mais aquilo. Lamentavelmente, atrás de todas essas distorções está o colendo STF.
Há três anos o ministro Luiz Fux, de novo uma decisão monocrática, de novo concedendo liminar, estendeu o escabroso auxílio moradia (para quem ganha mais de 30 mil reais e muitas vezes mora na mesma cidade) para todos os desembargadores, todos os juízes do país, todos os procuradores do Ministério Publico da União e todos os promotores dos ministérios públicos estaduais.
Duas questões relevantes: a imoralidade do privilégio e a gastança anual de centenas de milhões de reais por ano. Mas não é só isso. Pergunto à ministra presidente: por que até hoje, passados três anos, repetimos, não foi julgado o mérito da liminar? O que se espera para que ela entre em pauta?
Assim, por tudo isso e pelo mais que não se contêm em um só artigo, o Poder Judiciário, sob a liderança do STF, concorre para o perigoso esvaziamento da democracia representativa e se transforma em instrumento de insegurança jurídica.
Dias piores virão.

(*) Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de Socialismo, morte e ressurreição (ed. Vozes)

 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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