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Roger Ceccon: “Fim do fascismo é apenas discurso decorativo de alguns livros de história”

Não há na história recente da humanidade uma catástrofe de tamanhas proporções como a que estamos vivendo ao longo deste ano pandêmico
Roger Flores Ceccon
Diplomatique Brasil
Florianópolis (SC)

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Dois mil e vinte. Paralisados, estamos sobrevivendo naufragados à catástrofe e nenhum outro termo me parece mais adequado para ilustrar a situação atual. A catástrofe era, na lógica da tragédia clássica, os eventos dolorosos e funestos que aconteciam em cena, correspondendo a ferimentos ou mortes cruéis e nefastas.

A catástrofe, conceituada no domínio da tragédia grega, gênero que deixou de existir após o Renascimento, tem, entretanto, representação em formas artísticas recentes, como no romance, no cinema e na pintura, que também recorrem à imitação ou à reconstrução verosímil de atos hostis.

Os Retirantes, obra de Cândido Portinari, é a expressão da luta ancestral humana após a catástrofe da seca, a catástrofe da fome, da vida severina.

Este conceito, na “vida real’, diz respeito a graves acontecimentos políticos, econômicos, sociais, culturais, éticos ou sanitários de grandes proporções que comprometem o direito à vida e ultrapassam a fronteira do aceitável. É a metáfora da destruição, a tônica do exagero. Portanto, a catástrofe produz a vida ao avesso.

Não há na história recente da humanidade uma catástrofe de tamanhas proporções como a que estamos vivendo ao longo deste ano. No instante que escrevo este texto, são mais de 750 mil mortes no mundo e 100 mil no Brasil em decorrência de uma única doença, a Covid-19. Isso tudo em pouco mais de oito meses.

A pandemia avança com força, e com ela a incerteza do que acontecerá em um futuro à médio e longo prazo. Quem dera fosse “apenas” a doença. Junto dela, sobrevém a pobreza e a miséria, o desemprego e a violência, o racismo e a homofobia, o desprezo à vida.

Portanto, a catástrofe, embora se constitua sob o dogma da morte, também se ocupa da vida, da vida docilizada, enclausurada, repreendida, violentada e oprimida. Da vida desprovida de condições de existência. Destituída da mínima proteção, exposta à sorte. É a vida ao avesso que foge da morte.

Mas essa catástrofe, embora tenha atingido a população mundial abruptamente, não se trata de um evento inesperado ou de um cataclisma repentino, criação divina ou acidente natural.

Ela foi, ao contrário, produzida ao longo dos últimos anos por um conjunto de fatores que condicionaram à situação catastrófica que nos encontramos. Sem dúvida, é resultado do sistema capitalista-racista-patriarcal vivenciado pelas sociedades modernas em muitos países nos últimos séculos, que produzem regimes de exploração, opressão e violência a grupos sociais discriminados.

Não há na história recente da humanidade uma catástrofe de tamanhas proporções como a que estamos vivendo ao longo deste ano pandêmico

Wikimedia Commons
Integralistas retornam a cena política no Brasil

Fascismo Social

Mas aqui quero chamar atenção a um conceito cunhado pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos, que nos ajuda a compreender os meandros da ferida, o que existe por debaixo da pele que sangra, a determinação social dessa catástrofe, cujo fenômeno é denominado de Fascismo Social.

A aparição do fascismo como força política dominante ocorreu em 1922, com a emergência do Partido Nacional Fascista italiano e “terminou” em 1945, com a derrota e morte de Benito Mussolini e Adolf Hitler.

Além da Itália e da Alemanha, há registros de movimentos fascistas na Áustria, Bélgica, Grã-Bretanha, Finlândia, Hungria, Romênia, Espanha, África do Sul e Brasil1.

Sabemos que o “fim do fascismo” é apenas um discurso decorativo de alguns livros de história, pois ainda a sociedade contemporânea ocidental caracteriza-se por um sistema de distinções estabelecido por linhas radicais que dividem a população em dois grupos: os deste lado e os do outro lado da linha.

O “outro lado” desaparece como realidade, tornando-se inexistente, irrelevante e incompreensível. Além do mais, é impossível a presença simultânea de um indivíduo nos dois lados, sendo o outro lado um universo onde não há legalidade e humanidade.

O outro lado é o cenário da sub-humanidade moderna, onde vivem os excluídos. A exclusão, por meio de práticas fascistas, se torna radical, uma vez que algumas pessoas não são consideradas sequer candidatas à inclusão social, já que a sociedade moderna separa os grupos por apartheids.

Há, portanto, uma sub-humanidade destinada ao sacrifício, vítima fatal do fascismo social2,3,4.

O fascismo social é caracterizado como um regime de relações de poder exercidas no âmbito da sociedade que concede à parte mais forte a prerrogativa de veto sobre a vida do outro e decide o modo de existência dos mais fracos. Autoriza, portanto, a violência, como nos tantos casos de violência policial contra pessoas negras que temos assistido nos últimos anos.

Não é um regime político, mas um sistema social e civilizacional, que não sacrifica a democracia às exigências do capitalismo, mas a trivializa a ponto de torná-la desnecessária. É um tipo de ordem plural, capilarizada, produzida pela sociedade e não pelo Estado, sendo este apenas uma das testemunhas complacentes, em um momento em que os Estados democráticos coexistem com sociedades fascistizantes4.

Embora nos últimos anos o fascismo-neoliberal político tenha voltado a ganhar relevância, com a produção de discursos de ódio por governantes contra populações específicas, especialmente pessoas LGBTQI+, negros e de oposição política, e colocado em curso um projeto de destruição do Estado, o fascismo social, denunciado por Boaventura no início do século XXI, tem infringido princípios éticos de proteção e manutenção da vida. Direitos humanos são cotidianamente violados, a democracia enfraquecida e a vida eliminada em nome da sua preservação4.

O fascismo social, portanto, não é exercido por regimes políticos institucionais, mas se trata de uma prática cotidiana desempenhada com esmero pelos indivíduos que compõem a sociedade.

É uma ética mundana que orienta as relações sociais, que exclui, violenta, mata, desmata, abusa e maltrata. Que nega a ciência e produz a vida precária e a morte evitável. Uma ética não-solidária e injusta. O fascismo, portanto, habita e penetra no âmago da sociedade, constituindo a forma como existimos e nos portamos no mundo.

O fascismo social, diferentemente do que era retratado na tragédia grega, é uma das determinações da catástrofe atual, e é urgente a construção de uma ética não-fascista para uma vida não-virada ao avesso. Dois mil e vinte apenas espremeu o pus da ferida. E a catástrofe está apenas começando.

Roger Flores Cecconprofessor da Universidade Federal de Santa Catarina


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Roger Flores Ceccon

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