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Sábado Resistente: Síndrome de sobrevivente

Redação Diálogos do Sul

Tradução:

Paulo Cannabrava Filho*

Paulo Cannabrava Filho. Perfil DiálogosSábado Resistente, evento organizado por ex-presos e perseguidos políticos, que acontece no Memorial da Resistência, no prédio do que foi o principal organismo de repressão em São Paulo, o antigo Dops, provocou, neste sábado 9 de novembro, uma catarse coletiva. Este sábado inesquecível fez com que algumas pessoas por primeira vez pusessem pra fora seus medos, suas angústias, os fantasmas que, reprimidos consciente ou inconscientemente, lhes impedia de ser feliz.

O evento começou com a exibição do documentário Verdade 12.528, de Paula Sacchetta e Peu Robles, jovens que da ditadura civil-militar de 1964-1988 só conheceram de ouvir falar ou de ler em livros de História do Brasil. No caso de Paula, há a memória de seu avô Hermínio Sacchetta, militante histórico da esquerda brasileira, mestre que formou mais de uma geração de jornalistas; além disso é filha de jornalistas: Vladimir Sacchetta e Marcia Camargos. Três gerações de comunicadores com grande sensibilidade social. Já o Peu entrou nessa porque, fotógrafo, resolveu acompanhar as manifestações de rua, e na rua conheceu Paula. (http://nucleomemoria.org.br/noticias/internas/id/490)

 Verdade 12.528, de Paula Sacchetta e Peu Robles
Verdade 12.528, de Paula Sacchetta e Peu Robles

Compartilhando a mesa com a dupla de cineastas um trio de psicoterapeutas – Maria Beatriz Vannuchi, Maria Marta Azzolini e Rodrigo Blum- do programa Conversa Clínica Pública do Projeto Cínica do Testemunho do Instituto Projetos Terapêuticos de São Paulo, um dos cinco selecionados pela Comissão Nacional de Anistia do Ministério da Justiça.
Terminada a exibição do filme, iniciados os debates, as profissionais provocaram: Viemos aqui para ouvir vocês.
Provocação no momento certo pois todos sob o impacto do documentário que recolhe mais que testemunhos, desabafos de pessoas que foram perseguidas, encarceradas, torturadas, de camponeses maltratados, de mães que até hoje procuram por seus filhos que combatiam pela democracia e foram desaparecidos pela repressão; de adultos e crianças que sofreram longos períodos de exílio.
O projeto da Comissão de Anistia está se revelando ser bom, pois está fazendo bem pra muita gente. Ademais, dá aos psicoterapeutas a oportunidade de interagir com a sociedade e seus dramas verdadeiros.
Há um programa com essa mesma finalidade conduzido por um grupo de profissionais ligados ao Instituto Sedes Sapientiae. Coisas herdadas da Madre Cristina.
Ela pregava que os psicólogos tinham que conhecer a realidade do mundo tal como é, com toda sua perversidade, para poder compreender os dramas individuais de seus pacientes. Isso ajudou muitas pessoas a buscar o equilíbrio comprometido pela síndrome do sobrevivente. No caso, o combatente que sobreviveu ao combate e/ou aos tormentos da repressão.
Resistentes-postTestemunha deste Sábado Resistente relatou que, vítima de constantes pesadelos que lhe impediam de ter um sono repousante procurou um psicoterapeuta. Na primeira sessão relatou sua vida, militância, encarceramento e os tormentos sofridos. Na seguinte sessão o profissional lhe perguntou desde quando tinha tais alucinações, pois o que ele relatara não era realidade no Brasil, e sim nos países comunistas, como a União Soviética.
Tinha razão a Madre Cristina em querer que os psi conhecessem a cruel realidade do mundo, particularmente naquilo que decorre dos conflitos de poder. Poder do pai, poder do patrão, do marido ou da esposa, poder do estado, poder do império, poder do mais forte sobre o mais fraco, seja pessoa ou nação.
Essa síndrome se manifesta de várias maneiras numa mesma pessoa. Neste Sábado Resistente, passados mais de vinte anos de terem saído das masmorras da ditadura muitas só agora tiveram disposição para abrir seus corações, para por primeira vez falar de seus medos, de seus sofrimentos, sequelas das torturas.
Outros, libertos da cadeira do dragão despois desses fatídicos acontecimentos não conseguiram se livrar do fantasma de seus torturadores e se esconderam em armário fechado a sete chaves, tentando se convencer do esquecimento do inesquecível.
Outros decidiram nunca mais falar sobre isso e alguns até mesmo abandonaram a luta, “esquecendo” de tudo aquilo que no passado os motivou a enfrentar o mundo por um mundo melhor.
Poucos tiveram a coragem de uma Amelinha que em entrevista em telejornal  de TV comercial nomeando seus algozes disse claramente: fui estuprada, fui violentada, me penduraram no pau-de-arara, me deram choque elétrico em todas as partes de meu corpo, e trouxeram meus filhos, crianças ainda, para me verem naquele estado; nua, encharcada de sangue, fezes, urina.

Alguém pode esquecer isto e estar feliz com ver seus algozes gozando as benesses do poder?
Paula disse de seus momentos de angústia por ter feito pessoas  revelarem suas mais íntimas emoções e expô-las publicamente. Uma das testemunhas utilizadas no filme ali presente depois de viajar mais de 500 quilômetros, disse que, muito ao contrário, estava agradecida por ter sido ouvida, provocada a abrir as portas e libertar seus fantasmas. Agora liberta não vai mais parar de denunciar os fatos que a fazem sofrer, o desaparecimento de seu filho.
Impressionante o que faz o medo nas pessoas e mais ainda o que faz o medo numa coletividade. O Estado moderno tem se aperfeiçoado em desenvolver a sociedade do medo. O medo que paralisa, que inibe qualquer reação diante da crueldade deste mundo desigual, diante do descalabro econômico, social, cultural provocado pela ditadura do pensamento único imposta pelo capital financeiro monopolista.
É a sociedade do medo, ou uma sociedade aterrorizada o que sustenta a política imperial belicista dos Estados Unidos. É a sociedade do medo que se expande em nosso meio e que mantém a ditadura do capital financeiro e todas suas sequelas de exclusão social.
A guerra civil não acabou
sabados-resistentes-ditadura-brasileiraMeninas que nas décadas de 1960-70 enfrentaram com galhardia as forças da repressão da ditadura, hoje mães de filhos e filhas estão com medo por seus filhos, jovens inconformados que hoje se manifestam nas ruas por um mundo melhor. Medo da repressão, feroz, brutal, armada.
A guerra pela qual essas mães sacrificaram sua juventude, essa guerra civil entre o Estado e a Nação não acabou.  Alias, é uma guerra permanente entre o Estado a serviço do capital – hoje o capital financeiro, improdutivo – e o povo buscando por democracia, por participação, por justiça, por solidariedade, por inclusão social.
Como disse Clara Sharf, viúva de Carlos Marighella, “estamos numa democracia mas, tudo aquilo pelo qual nossos mortos lutaram está ai. A luta continua”. De fato, eles lutaram pelo fim da ditadura, por uma democracia inclusiva e participativa só possível no socialismo.
Os militares deixaram o poder, mas o Estado Militar só tem avançado e se aperfeiçoado nessas últimas décadas. Vive-se em estado de sítio, bairros ocupados como nunca antes ocorreu.
As Polícias Militares criadas pelos coronéis latifundiários da República Velha, agora com alta tecnologia e novos métodos, na Novíssima República continuam a ter o povo como inimigo a combater.
A Novíssima República nascida da Constituição de 1988 não conseguiu se impor. Pouco a pouco desfiguraram o texto constitucional ou simplesmente ignoraram aquilo que não lhes convinha. Pouco a pouco a ditadura do capital financeiro está impondo o pensamento único. Pensamento único que não aceita crítica nem autocrítica e reprime com violência a quem ouse contestar, tem ouvidos fechados para qualquer pensamento alternativo.
De fato, temos uma abertura política que permite a alguns setores se manifestar, desde que não constituam uma ameaça ao status quo, ao pensamento único.
Na República Novíssima de 1988, o número de vítimas dessa guerra civil permanente cresce exponencialmente. Em 2012, 50 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, ou além destas, 1.890 foram assassinadas pela repressão policial armada. A Polícia alega que foram mortos em confronto, o que nem sempre é verdade. É sabido que geralmente atiram primeiro e perguntam depois. No Rio de Janeiro, ocupado militarmente, as vítimas já chegam a seis mil por ano.
Quando pessoas sem teto ocupam qualquer área, seja em São José dos Campos (Pinheirinho) ou debaixo da ponte (ponte estaiada do Anhembi, sobre o Tietê), seja em Brasília ou Manaus, em Belo Horizonte ou Porto Alegre, essa polícia armada reprime com violência extrema e injustificada.
Emulando os filmes que pregam a violência na sociedade do medo estadunidense, o PM veste roupas robóticas, utiliza armas pesadas; aperfeiçoaram os equipamentos e as armas. No lugar do cassetete tamanho família, utilizam o spray gigante de gás tóxico e carros de assalto.
Sindrome de SobreviventeA guerra civil na Colômbia, que já dura 50 anos, deixou um saldo de 200 mil mortos, média de 20 mil por ano. Aqui são cinco vítimas por dia e, claro, aí não estão contabilizados os mortos pelos grupos de extermínio. Tampouco estão computados os 50 mil casos de mulheres estupradas nesse mesmo 2012 em que a cada 15 segundos uma mulher foi vítima de algum tipo de violência. Sem falar de mais de 500 anos de cotidiano genocídio dos povos originários e dos que foram trazidos para o trabalho escravo.
Enquanto isso, a gente se diverte com as histórias de espionagem. Os James Bond arrependidos (ou sabidos) viram manchete enquanto o contubérnio entre os serviços de inteligência e os organismos encarregados da repressão continuam invisíveis, intocáveis.
A institucionalização do Estado Policial é o mesmo que a institucionalização da violência. Por isso, pedir a desmilitarização da polícia é o primeiro passo para se ter uma polícia civilizada, educada e treinada para servir à Nação e não para ser  algoz do povo. Romper com os acordos de cooperação e ajuda militar e com a promiscuidade entre os serviços de inteligência do Império com nossos serviços se inteligência é o primeiro passo para se ter Forças Armadas e Polícia a serviço da Nação e não como guarda pretoriana dos interesses da potencia hegemônica e do pensamento único imposto pela ditadura do capital financeiro.
*Paulo Cannabrava Filho é jornalista editor de Diálogos do Sul, membro do conselho diretor da Associação Brasileira de Anistiados Políticos.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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