“Com um Governo indígena a Bolívia cresceu de maneira significativa no âmbito econômico e houve uma melhora social geral, mas a discriminação é tão forte que isso não importa”, lamenta o cineasta Iván Sanjinés
Na Bolívia, apesar de que a grande maioria do país tem traços indígenas, até há pouco era impensável ver uma pessoa não branca no cinema ou na televisão. Pouco a pouco, graças ao trabalho das comunidades, essa realidade mudou.
Iván Sanjinés dirige desde 1989 o Centro de Formação e Realização Cinematográfica (CEFREC) da Bolívia, uma associação dedicada a promover o cinema e os meios de comunicação formados por e para comunidades indígenas. Trabalham com distintas organizações indígenas e é a única parceria na América Latina no âmbito da comunicação.
Nos últimos 25 anos apoiaram a realização de mais de 400 produções como longa metragens, documentários ou vídeos educativos, além de 600 programas de televisão nos quais os participantes foram indígenas. Seu objetivo, abordar por meio de diferentes espaços da comunicação temáticas relacionadas com as tradições, aspectos políticos, históricos e da vida cotidiana destas comunidades.
Bolívia: O que fazer quando imagens que só conhecia em preto e branco viram realidade?
“Temos acompanhado o processo político da Bolívia, o crescimento do movimento indígena, a chegada ao poder de Evo Morales e, durante o golpe de Estado de 2019, fomos o único espaço alternativo que restou na Bolívia, porque tudo foi interrompido”, diz Sanjinés a este jornal, durante sua visita a Euskadi como protagonista de uma série de conferências sobre meios de comunicação alternativos que foram realizadas na Universidade de Mondragón, em Bilbao.
apc bolívia
o cineasta Iván Sanjinés
Que tipo de dificuldades existe no fato de informar de forma independente sobre este tipo de temáticas?
Tivemos problemas desde o começo. Começamos realizando um trabalho interno de preparação e formação; e, a partir de 2006, quando houve a Assembleia Constituinte, onde o papel da comunicação indígena foi fundamental para o empoderamento da proposta indígena de Constituição, que é a base da nova Constituição política, fomos expandindo nossas produções. Não foi fácil, sobretudo na época anterior a Evo Morales; houve muitas dificuldades. Trabalhar com comunicação é um fato político. Além do conteúdo, o simples fato de que os povos indígenas estejam fazendo comunicação ou estejam presentes nos meios de comunicação, ou estejam na televisão, já é político. Desde 2001 começamos com programas indígenas na televisão nacional. Não havia imagens de indígenas na televisão, apesar de na Bolívia a maior parte da população ser indígena. Houve muitos problemas e pressões para que isso não continuasse e que fracassássemos. Os povos indígenas sofreram massacres e muitas faltas de respeito a sua comunidade e a sua bandeira.
“Além do conteúdo, o simples fato de que os povos indígenas estejam fazendo comunicação ou estejam presentes nos meios de comunicação ou estejam na televisão, já é político”
Como conseguem financiar seus projetos?
Graças em parte às parcerias estratégicas que conseguimos fazer. No País Vasco a parceria com a ONG Mugaritz Gabe foi fundamental em todos estes anos. Levamos muito tempo nessa parceria que não é apenas financeira. A comunicação te oprime ou te liberta e avançamos nisso partindo de distintas possibilidades e com criatividade. Há parte da sociedade e, sobretudo, as novas gerações que não foram formadas na visão da integração de distintas culturas e respeito por elas. Por isso fazemos este trabalho de insistir nas visões que existem e que são todas válidas. Nenhuma está ou deve estar acima de outra, mas há muita gente que não se interessa e que quer continuar com a Bolívia sendo um feudo em que eles fazem e desfazem.
Na parte financeira há a Mugaritz Gabe, existem as parcerias, mas existe também a decisão interna de organizações, de apostar naquilo, de investir nisso, de realizar coproduções solidárias. Na hora de fazer um filme, seria impossível pensar em fazê-lo como os cineastas. Na Bolívia não há diretores, trabalha-se parecido quanto à técnica, mas são roteiros coletivos, são filmes que representam o pensamento e a voz de comunidades e culturas. Você não pode achar que é seu filme — é da comunidade. Não há diretores, há equipes responsáveis. Ganham-se festivais, mas não é essa a nossa finalidade. Nosso objetivo é servir para que essa história que foi negada e perseguida seja contada.
Conseguiram que comunidades indígenas participem em meios de comunicação e no cinema, mas ao mesmo tempo comenta que as novas gerações não entendem bem o respeito em relação a estas comunidades. Como isso é possível?
São séculos de uma visão, de uma forma de pensar que está também nas instituições. Há uma estrutura colonial que se mantém. O Estado chama-se estado plurinacional, mas essa transformação é muito difícil porque são séculos durante os quais perpetuou-se uma única maneira de fazer, na qual o que vale é a cultura ocidental e europeia. Então, não se admitem nem se respeitam outras culturas ainda que a maioria da população pertença a elas. É um contrassenso porque são culturas que foram ameaçadas, exterminadas, perseguidas e em alguns casos já nem existem porque sofreram genocídios, mas que trouxeram à humanidade princípios fundamentais que a maioria do resto da sociedade desconhece.
“Nosso objetivo é servir para que essa história que foi negada e perseguida seja contada”
Como é possível expor essas ideias nos meios de comunicação e no cinema?
De muitas formas. Temos trabalhado com filmes, longas metragens, séries de televisão, que falam, por exemplo, sobre o direito à água, à natureza, à mãe terra; e contamos isso por meio de histórias. Não tem porque ser algo chato; às vezes se confunde e se pensa que a comunicação popular é algo pesado e não é. Pode ser criativo, pode-se contar histórias por distintos meios. Também há meios informativos, sites que incluem visões distintas porque há comunidades muito diferentes, como os povos indígenas da Amazônia, as comunidades camponesas interculturais, as afro bolivianas, as tradicionais das zonas altas, etc. É um país muito variado e por meio da comunicação pode-se chegar a criar um diálogo interno e projetá-lo para a sociedade. Nós, os indígenas, também temos direito a estar em todos os lugares. Temos programas de televisão que acompanham ao vivo desde distintos pontos do país a agenda indígena; também oferecemos informação cultural e isso não havia antes. Não havia este tipo de informação nos meios e é um empoderamento muito forte, que foi crescendo.
Estão sendo dados muitos passos para a frente, mas ainda falta muito caminho por percorrer para obter uma inclusão total dos povos indígenas?
Claro. Levamos mais de 25 anos, mas na Bolívia o contexto dos meios de comunicação é muito difícil. Houve muitas transformações e muitas conquistas em vários campos, mas é muito difícil descolonizar, mudar essa estrutura que vem desde a criação da República, que já vem com a mudança da Constituição, mas que é muito complexa. A institucionalidade é muito difícil de mudar, a sociedade também tem um comportamento muito permeado pelos meios de comunicação. Temos uma sociedade cheia de meios que fomentam o machismo, a discriminação, o patriarcado, o individualismo, o consumismo, a violência. É muito o que é preciso fazer e não houve um apoio estatal razão pela qual custou muito aos povos indígenas desenvolver isso.
“Temos uma sociedade cheia de meios de comunicação que fomentam o machismo, a discriminação, o patriarcado, o individualismo, o consumismo, a violência”
Como o resto da sociedade aceita o empoderamento das comunidades indígenas?
Houve um conflito com o golpe de Estado. Sua origem tem a ver com as castas de poder, que é um tema econômico e de classe, mas também é um tema histórico de discriminação e racismo. O fato de Evo Morales chegar ao poder, da economia boliviana ser um exemplo de avanço para todo o continente e inclusive no plano internacional, muito mais que países como a Argentina, que são majoritariamente brancos, não importa. A Bolívia tendo um Governo indígena cresceu de maneira significativa no âmbito econômico e com uma melhora social geral, mas a discriminação é tão forte que não importa que o país avance, o que importa é que é um índio, um indígena que está no comando e isso eles não suportam. O que leva a um confronto entre o urbano e o rural, criando revanchismo e ódio racial. É um tema pendente porque há setores que querem manter seus privilégios, que não querem mudanças e arrastam setores da classe média para seu racismo.
Tradução de Ana Corbisier
Publicado originalmente em APC Bolívia
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