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Bolívia: O que fazer quando imagens que só conhecia em preto e branco viram realidade?

Despertemos, por favor! Enquanto tapo os ouvidos volto a escutar os nossos desaparecidos, exigindo memória, verdade, justiça. Tudo se tornou terror
Nacho Levy
La Garganta Poderosa
La Paz

Tradução:

Ainda não pude dormir, já não quero, já não posso, já não sei. Arrumei a mochila e vim para a Bolívia, mas nunca cheguei. Imaginava como seria mostrar uma caçada, narrar os crimes de lesa-humanidade, como chamá-los, como informá-los, nunca imaginei como seria respirá-los.

Vejo imagens que só conhecia em preto e branco, enquanto tapo os ouvidos para voltar a escutar os nossos desaparecidos, exigindo memória, verdade, justiça. Tudo se tornou terror, nada se torna notícia. Pura escuridão, até que fecho os olhos por piedade.

E volto a vê-las vindo, urgente, um turbilhão humano fosforescente correndo desesperadamente para mim, quando eu sabia perfeitamente que toda essa gente não sabia quem eu era, nem como havia chegado até aí, nem como apareci nesse cabildo aberto de bolivianas e bolivianos que faziam vigília esperando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para contar o massacre de Senkata, ainda as escuto, ainda me mata. 

Por favor, ajudem-nos!

Por favor, não nos deixem sozinhas!

Por favor, prometa que vamos sair!

Despertemos, por favor! Enquanto tapo os ouvidos volto a escutar os nossos desaparecidos, exigindo memória, verdade, justiça. Tudo se tornou terror

Reprodução Twitter
Tudo se tornou terror, nada se torna notícia. Pura escuridão, até que fecho os olhos por piedade.

Não era uma chola, eram dez, agora quinze, agora trinta, agora milhares e milhares que não me deixam dormir. Não sabiam quem eu era, mas não me deixavam ir.

Choravam, choram, tremiam, tremem. E eu quero morrer. Não posso parar de chorar, enquanto tento não parar de escrever. Aos empurrões, protegido por um novelo de mulheres, me fizeram chegar ao altar da capela, onde a CIDH começava a escutar todas essas palavras que nunca mais na vida vou esquecer.

“Que mataram o meu marido. Dispararam ao coração por estar arrastando um ferido!” Me pediam que gravasse, mas havia muita gente, e então me passavam por cima.

“Eu sou uma morta viva!” gritou uma mulher, cobrindo-se com o seu lenço para que não a pudessem ver, até que (chegou) na frente e deu-se a conhecer. “Sou a testemunha que sobreviveu ao massacre, porque sim, claro que fiquei ali quando vi que vinham os tanques, porque jamais imaginei que vinham nos matar, que sem aviso começariam a disparar. Eu vi tudo, vi quando os mataram, e quando me virei, pude ver também uma menininha muito pequenininha com um disparo na cara, mas a levaram embora e já não soubemos nada, não a voltamos a ver. E eu fiquei juntando as cápsulas, para que tenham que acreditar em nós”. 

Chorávamos todos, como torno a chorar agora em cada linha: 

Esvaziou um saco de coisas, no nariz da Comissão.  

Sulcando essa maré de terror, as lágrimas e a dor, tentei regressar à rua como fosse, porque as companheiras me pediam que saísse, para falar com Andrónico, uma referência jovem do Chapare, um líder cocalero formado para a sucessão, que hoje continua chamando para a mobilização e que também estava presente, apesar da perseguição vigente. Era impossível chegar até o portão onde uma multidão procurava resguardá-lo, mas me pediam por favor que tentasse entrevistá-lo. Aos empurrões nos terminaram por meter em um carro que nos esperava no fim da ladeira, entre os gritos da multidão que superlotava a capela.  E de repente uma mulher meteu a cabeça pela janela. Era a mulher do lenço, agora chorando sem consolo, com o estômago cheio de impotência e da prepotência própria da dignidade, quando a vida vale menos que a verdade: “Por favor, Andrónico, não te deixes matar!”, “que por favor, Andrónico, tens que trocar de carro, que já estão te seguindo, que vieram te buscar”, “que por favor, Andrónico, como te digo, que vão te matar!” Saímos arando com o peito fechado de frio, com dois em cima dele e dois em cima de mim, fazendo essa entrevista que aí podem escutar, mas depois de 7 quadras tive que descer, porque efetivamente deviam trocar de carro, porque efetivamente querem matá-lo.” Obrigada, vamos voltar a nos encontrar “. 

Outro dia, quando queiram, falamos do Evo e todos os erros que pode cometer. 

Outro dia, quando queiram, falamos das eleições que estão prometendo. 

Outro dia, quando queiram, falamos de balanços e sonhamos um porvir. 

Mas agora não podemos, 

Já não podemos dormir.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Nacho Levy

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