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ToggleNum país desigual como o Brasil, estruturado a partir do racismo, considerar igualmente os “dois lados da notícia” é, no mínimo, leviano. Cada um dos lados de qualquer notícia não tem o mesmo “peso”. Ainda mais numa notícia sobre o assassinato do menino Miguel.
Os lados em questão não têm o mesmo poder. Não são lados “iguais”. No Brasil, alguns lados são mais “iguais” do que os outros. Mirtes, mãe da criança, não é equivalente a Sari.
Antes de falar dos detalhes visuais da reportagem, é importante ressaltar, então, que a própria ideia de ouvir, gravar e veicular a voz de uma assassina como Sarí Côrte Real, sem considerar todo o sistema de poder ao seu favor já pode ser considerado um crime.
Na balança de uma justiça possível, a voz da assassina, por mais titubeante que seja nesse caso, pesa sobre o lado da vítima. E esse peso vem do fato de que não há apenas dois lados: quando Sarí fala, ela é amparada por vários outros lados que existem justamente para criar argumentos a seu favor.
Reprodução: Facebook
Sarí Côrte Real é mulher do prefeito de Tamandaré Sérgio Hacker
Inclusive, o próprio jornalismo e suas falsas simetrias. Não são dois lados, são muitos lados pesando contra quem teve a própria vida golpeada. Como a gravidade que pesa sobre corpos que caem, como Miguel, do nono andar.
Desde que o assassinato ocorreu, uma pergunta ecoa como cenário sonoro desse horror: “E SE FOSSE O CONTRÁRIO?”. Pessoas de diferentes áreas, em diferentes momentos dessas últimas semanas fizeram essa pergunta.
O absurdo da desigualdade brasileira faz com que TODAS AS PESSOAS, sem exceção, saibam exatamente a resposta a essa pergunta, ao mesmo tempo em que ninguém questiona a resposta.
Isso não é só garantia da impunidade de uma elite (racial, econômica, política), é o conforto e a certeza de ter a voz ouvida, gravada, veiculada e considerada pela justiça.
Na entrevista criminosa, Sari declara esse seu conforto, de forma serena: “cabe à justiça decidir”, diz ela, sabendo que a justiça historicamente protege pessoas de sua classe social, de sua cor.
Não precisaria ser nem exatamente o contrário para a justiça condenar Mirtes, sem sequer ouvir a sua voz. Sem reportagens para gravar e veicular sua versão.
Nesse primeiro crime de naturalizar a voz assassina sem escancarar todo o sistema de poder que a ampara e pesa sobre a vítima, já se percebe que todos os envolvidos na ideia de fazer uma entrevista com Sarí deixam sua impressão digital no botão do elevador apertado.
Todos, sem exceção. Porque só quando o jornalismo estabelecer o compromisso ético de considerar a desigualdade que funda e estrutura nossa sociedade, é que pessoas irão se recusar a entrevistar criminosas como Sarí.
Assim, vozes assassinas como a dela não vão encontrar tanto eco entre os outros tantos lados poderosos que existem. Talvez assim a gente talvez comece a construir uma sociedade menos desigual.
Aquilo que mora nos detalhes
O segundo crime é a construção dos detalhes da reportagem. Aquilo que a gente absorve quase sem perceber. A reportagem começa se referindo à assassina como uma “mulher acusada de um ato criminoso”, que “pode ser condenada”.
E, bem sabemos, o que pode ser, pode também não ser. O abandono de incapaz, seguido de morte, conclusão do inquérito e que é tipificado como crime no código penal, é denominado “atitude” na chamada lida pelos apresentadores.
Mirtes aparece nesse texto inicial como a mãe do Miguel que vê Sarí “como insensível e irresponsável”. Interessante perceber que a própria conclusão da investigação, o abandono, compatível com a insensibilidade e a irresponsabilidade, é apresentada como um “ponto de vista” da mãe de Miguel.
Depois de anunciar a “entrevista exclusiva”, a primeira entrevista que de fato aparece é de Mirtes: em pé, com máscara de proteção, falando firme, apesar da dor.
Ela aparenta também estar com os pés descalços, com o rosto voltado para o sol, exposta. A imagem de Sarí aparece mais de um minuto depois: sentada, roupa simples, os cabelos longos beatificantemente repousados sobre os ombros, camiseta branca, sem máscara (mesmo em ambiente fechado), com um cordão com pingente em forma de santa.
O rosto de Sarí tem uma leve maquiagem, lábios rosados e, nas mãos, um terço, quase imperceptível. O ambiente fechado e sóbrio lembra quase uma sacristia, e a repórter está confortavelmente sentada e à vontade na entrevista.
A assassina está protegida, em postura passiva, tom sereno, titubeante, e os silêncios dramaticamente gritantes são mantidos pela edição.
“Uma imagem vale mais do que mil palavras”, e as perguntas feitas ajudam na composição da cena: “você não se preocupou?”, diz a repórter Beatriz Castro, como se a investigação não tivesse concluído que o caso era mesmo de abandono.
A fragilidade passa a não ser mais da vítima, mas da assassina, que tem todo o espaço para afirmar que “não se sentia SEGURA para repreender Miguel”.
Nas entrelinhas, uma mulher com medo de falar firme com o filho da empregada, mesmo que fosse para protegê-lo. Será que a posição hierárquica de patroa é mesmo compatível com tal insegurança? A resposta parece óbvia, mas a reportagem parece não se interessar por essas desigualdades, tão conhecidas nas histórias desse país.
A redenção cristã
Muitos outros detalhes compõem o segundo crime de criar um cenário de suavização da imagem da assassina Sarí. E um desses detalhes leva ao terceiro crime, o mais sutil e vil dessa reportagem criminosa: a utilização infame da ideia e do relato do perdão.
A voz de Sarí é clara ao dizer “não cabe à mãe de Miguel julgar”, embora responda um tímido “pedi”, quando a repórter pergunta quase retoricamente se ela havia pedido perdão. A imagem de Mirtes dizendo que não consegue perdoar se contrapõe de forma incisiva no encadeamento da reportagem.
Essa sucessão específica de declarações não é inocente num país tão tradicionalmente cristão, em que as posturas ultraconservadoras têm aumentado a cada dia.
“Não julgais para não ser julgado”, diz a moral cristã, cuja promessa de redenção se baseia na crença de que o “verdadeiro” juiz é Deus — e esse é um deus cristão, que não consegue conviver com qualquer outra ideia de divindade.
Nesse enredo, Mirtes nega a redenção a Sarí, não perdoa porque julga e culpa a mulher que abandona seu filho sem cuidados e, assim, o expôs ao perigo que resultou em morte.
A história “cola” com os discursos de pacifismo vazio que, cruzados com as estratégias de empreendedorismo e marketing da “vida de sucesso”, literalmente vende um ideal de felicidade que pressupõe que pessoas vitoriosas atingem a glória ignorando seus próprios sentimentos humanos — que incluem raiva, dor, tristeza e ódio, para atingir uma esfera de superioridade equivalente a uma anestesia emocional.
Não por acaso, algumas pessoas mais sensíveis observaram o crescimento desses discursos motivacionais de “misericórdia” e “perdão” dos dias seguintes à reportagem do Fantástico.
Essa retórica do perdão é sórdida porque é uma utilização intencional da ideia de perdão para favorecer quem já tem poder. Não fosse isso, o perdão caberia numa inversão do cenário, o que sabemos que não aconteceria.
Além disso, essa interpretação do perdão abafa sorrateiramente a necessária responsabilização de Sarí pela morte prematura de Miguel. E é disso que a elite racial e econômica do Brasil tem fugido há mais de 500 anos: da responsabilidade pelo roubo da vida, e consequentemente, do futuro de milhares de seres humanos — e praticam esse roubo ao negar a humanidade dessas pessoas.
Essa reportagem criminosa mostra não apenas que ainda há dificuldade de reconhecer essa necessidade de responsabilização, mas também como que há um esforço para negar essa conjuntura de desigualdade racial e econômica, criando falsas simetrias entre os lados de uma situação clara de descaso, desumanidade e, sobretudo, crime.
É preciso nomear essa recorrência de crimes. Cada elemento do enredo que não tão inocentemente busca criar uma falsa simetria é um novo abandono de Miguel, resultando em novas mortes sobre a mesma morte. Quem se recusa a enxergar isso também deixa sua digital no botão do elevador.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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