Dois fatos deploráveis aconteceram no marco da quarentena em dias passados. Um foi a morte, em Puno, do soldado Ronald Mamani Ajajahui, de apenas 18 anos que, em estrito cumprimento de seus deveres, pretendeu impedir a fuga de um veículo retido pelas autoridades. O autor do crime quis fugir, mas capturado e atrás das grades, espera uma pena compatível com o delito.
O outro fato, foi o consumado pelo Capitão Cristian Cueva Calle, que agrediu um rapaz, humilhando-o depois de reduzi-lo e capturá-lo. O militar foi afastado de suas funções por não respeitar os protocolos estabelecidos para esse tipo de situação.
No primeiro dos casos, houve unanimidade de critério. Todos condenaram a morte do soldado e a mostraram como a expressão de algo que nunca devia ter ocorrido. No segundo, as opiniões ficaram divididas. Houve pessoas que criticaram o oficial, enquanto outras o justificaram. Nas redes, inclusive, incluso, foi lançado um suposto “movimento” orientado a lutar por sua “reintegração”.
Ambos os episódios têm que ver com um tema de fundo que forma parte da experiência nacional: a relação entre civis e militares em um país como o nosso.
Antes de 1968, como se sabe, a instituição castrense esteve sempre a serviço da classe dominante. Velasco diria que desempenhou o papel de “cérebro da velha oligarquia, disposta sempre a defender seus privilégios”. Isso mudou precisamente com o processo iniciado naquele ano, um de cujos lemas principais foi a Unidade do Povo e da Força Armada.
La voz de Peru
É preciso começar a reconstruir as bases de uma aliança que nunca deveria ter sido rompida
A vontade do governo dessa época foi reverter o papel da Força Armada e demonstrar à população que o soldado era seu amigo. Esse conceito tão elementar foi afirmado com fatos tangíveis: a ocupação militar de La Brea e Pariñas, a Reforma Agrária, as mobilizações populares dos anos 70, a nacionalização de empresas e muitas outras ações nas quais militares e civis deram as mãos no empenho por construir a Pátria.
A Unidade de Povo e a Força Armada foi uma peça cravada na base do processo social daqueles anos. Foi o que tornou possível sua manutenção e aprofundamento. Por isso, ficou na mira da classe dominante quando ela recuperou o poder.
A partir de 1975, mas sobretudo desde 1980, o esforço do grande capital esteve orientado a romper esse metálico binômio, procurando enfrentar civis e militares em um e outro passo do caminho. Os “anos de violência” foram o cenário ideal para este propósito. Ali começou o processo de fascistização da Força Armada, do qual, sem dúvida, ainda sobram resquícios.
A “mensagem” daqueles anos foi muito simples: convencer os soldados que os moradores eram “terroristas” aos quais havia que aniquilar. E assegurar aos cidadãos que os militares eram uns assassinos nos quais não se podia confiar. A essência dessa mensagem ainda perdura, só que a vida se encarregou de desmenti-la.
Acabada a Guerra Suja, já os soldados não encontraram “terroristas” nas aldeias. Nem os moradores se viram arrancados pela tropa. Hoje, um inimigo aparentemente “externo” –o CORONAVÍRUS- os tornou a pôr cara a cara. A imensa maioria da população entendeu essa realidade e não se nega a admiti-lo.
Generosamente, o povo saúda o papel dos militares do mesmo modo como aplaude médicos, enfermeiras, pessoal da saúde e dos serviços básicos, aos quais reconhece o imenso sacrifício que hoje lhes cabe cumprir. E os homens de farda se empenham em agir à altura da circunstância.
Fazem um trabalho esforçado por afirmar uma autoridade que algumas vezes encontra resistência. Temos visto dezenas de oficiais das três armas e da polícia subir nas unidades de transporte, falar com as pessoas, e entender-se com elas. E os temos visto também dar a mão a cidadãos indefesos, anciãos de um ou outro sexo, orientá-los e inclusive levá-los às suas casas para que fiquem protegidos.
E é que o heroísmo de Bolognesi, o desprendimento de Ugarte e a generosidade de Grau, estão na alma de muitos militares.
Isto obriga a ver os fatos que comentamos com outra visão. Não se pode justificar o assassinato do soldado Mamani, como tampouco a agressiva e belicosa conduta do oficial Cuevas. As ordens devem ser cumpridas e aqueles que não ajam em consonância com elas, devem ser sancionados.
Se um civil – qualquer que seja sua idade, origem ou condição – agride um militar ou resiste à sua autoridade, deve ser reduzido e castigado. Mas não tem porque ofender sua mãe, nem o esbofetear reiteradamente, nem o ameaçar com mais castigos. Nada disso forma parte dos Protocolos Institucionais Castrenses.
Desde abaixo, desde o próprio povo, é preciso começar a reconstruir as bases de uma aliança que nunca deveria ter sido rompida. A Força Armada não pode ser fascista sem desfazer sua essência, e o povo não pode ser terrorista sem renegar sua própria história.
Os atropelos e os abusos devem cessar imediatamente, do mesmo modo como se deve restabelecer o respeito pela cidadania e o atendimento aos seus requisitos básicos.
Por essa razão, deve ser denunciado também o ataque e a detenção dos médicos do Seguro Social que recentemente expuseram suas queixas e demandas publicamente. A detenção do doutor Quiñonez, não tem justificativa alguma.
A Unidade do Povo e da Força Armada constitui uma ferramenta estratégica que há que preservar e cuidar.
Gustavo Espinoza M*, Colaborador de Diálogos do Sul desde Lima, Peru.
Tradução: Beatriz Cannabrava
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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