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Se equivoca quem defende a meritocracia como forma de negar privilégio para acessar ao poder

Para o exercício do poder não se requer credenciar méritos. Titulares do executivo e legislativo são selecionados pelos eleitores, sem o requisito de suas qualidades profissionais e aptidão
Jorge Rendón Vásquez
Diálogos do Sul Global
Lima

Tradução:

Há certos termos que se põem de moda, instalando-se no vocabulário e no imaginário popular, em geral, sem que aqueles que os empregam conheçam seu real significado ou origem. 

Tal é o caso da expressão meritocracia que designa o governo pelas pessoas com maiores méritos e que se colou em certas leis. 

Mas, que méritos?

Quando esta expressão foi difundida por alguns sociólogos estadunidenses, na década de cinquenta do século passado, se aludia com ela à superioridade econômica e, é claro, de componente racial branco, como fonte primária dos méritos e, a semelhança de posições, às origens e vínculos de família, à educação em colégios exclusivos e à formação profissional nas universidades mais caras.

Os melhores eram os que haviam ascendido às posições econômicas, sociais, políticas e culturais mais altas graças a esses méritos. Era a realização do american way of life (o modo americano de vida) que foi examinada pela novelística crítica estadunidense da primeira metade do século XX, descrevendo os personagens que estavam nessa categoria, em geral wasps (whites, anglosaxons, protestants).

A expressão meritocracia difundiu-se nos países em vias de desenvolvimento, onde os indivíduos das classes menos ricas e descendentes das castas menosprezadas pelos colonizadores lutavam por promover-se socialmente.

“Não colem em mim esse discurso da meritocracia”, diz Conceição Evaristo

A meritocracia foi entendida, portanto, como uma espécie de reivindicação, programa ou bandeira atrás da qual se devia marchar para conseguir o poder e mandar e, para muitos, desfrutar dos privilégios e da fortuna que foram consideradas imanentes ao exercício do poder, incluída a corrupção, para cuja prática alguns partidos políticos se converteram em eficientes centros de formação.

Depois foi generalizada, sendo aplicada ao ingresso e aos ascensos e promoções na administração pública e nas instituições autônomas a cargo da prestação de determinados serviços públicos.

Para o exercício do poder não se requer credenciar méritos. Titulares do executivo e legislativo são selecionados pelos eleitores, sem o requisito de suas qualidades profissionais e aptidão

wikimedia commons
A expressão meritocracia difundiu-se nos países em vias de desenvolvimento

Expressão sem pertinência

Esta expressão não é pertinente, no entanto, para indicar o que seus autores quiseram dizer:

1) porque o ingresso à função pública, civil e militar, e os ascensos neste âmbito não comportam o acesso à função de governar que só corresponde aos poderes do Estado e às instituições com funções específicas de direção e gestão estatal e de solução de conflitos;

2) porque para o exercício dos poderes Executivo e Legislativo não se requer credenciar méritos de alguma classe. Seus titulares são selecionados pelos eleitores, sem o requisito de suas qualidades profissionais e aptidão e, menos ainda, de sua conduta. Uma simples análise dos atuais congressistas, em particular da direita recalcitrante, poderia demonstrar isso. E não creio que, para provar o contrário, admitam submeter-se a um exame acadêmico ou a teste de seu QI e, alguns, a um escrutínio de seu recorde moral.

Dado o princípio básico do Estado e da democracia de igualdade perante a lei, como não é possível que todos os que queiram se incorporar aos empregos estatais, estabeleceu-se o concurso por conhecimentos e experiência para o exercício dos cargos ou situações aos quais se postula. Quer dizer que à igualdade perante a lei se associa a igualdade de oportunidades. 

Meritonomia

O termo adequado para denominar esta possibilidade deveria ser meritonomia, de mérito: ação, qualidade ou circunstância que faz merecer um reconhecimento de valor pessoal; e nomos, direito ou norma em grego antigo.

A meritonomia é, portanto, um regime de direito pelo qual determinadas ações e qualidades das pessoas, devidas aos seus estudos, habilidade, esforço e conduta, lhe atribuem valores quantificáveis em sua apreciação objetiva pelos demais, dos quais se subtraem os deméritos ou ações prejudiciais ou renhidas com a moral. Isto implica que as pessoas vão acumulando um patrimônio com um ativo de méritos e um passivo de deméritos.

A meritonomia nasceu com a noção de igualdade perante a lei proclamada pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa de 1789: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum”. (art. 1º); “Todos os cidadãos, sendo iguais perante a lei, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, postos e empregos públicos, segundo sua capacidade e sem outra distinção que a de suas virtude e talentos”. (art. 6º)

Assista na TV Diálogos do Sul.

Pela reação da nobreza e da burguesia, estes preceitos fundamentais da vida em sociedade só puderam ser traduzidos em leis e práxis pelo pacto social na França ao terminar a Segunda Guerra Mundial no século passado; e logo foram incorporados como regras universais pela Declaração Universal de Direitos Humanos, adotada pelas Nações Unidas, em dezembro de 1948: “Toda pessoa tem o direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas de seu país”. (art. 21º). Esta Declaração foi incorporada ao nosso direito interno pela Lei 13282, de dezembro de 1959.

O desejável seria que a Constituição política reconhecesse o direito do mérito ou a meritonomia como uma regra essencial de nossa sociedade, afastando como antijurídicas as qualificações subjetivas ou determinadas pela apreciação dos jurados, prescindindo de basear-se nos fatos objetivos assinalados pelos regulamentos e de conhecimento dos postulantes.

Correlativamente, deveriam ser erradicados os denominados exames de presença no ingresso a qualquer entidade pública, cuja qualificação depende da predileção ou do interesse daqueles que ocupam os mais altos cargos como se fossem proprietários das entidades públicas nas quais prestam serviços. 

A meritonomia foi estabelecida no Peru para o ingresso às escolas de cadetes dos institutos armados, no começo do século vinte, embora permitindo algumas preferências mediante os exames de presença que a desvirtuavam para excluir determinados postulantes, em particular de traços índios. 

No ingresso à administração pública civil e à promoção dentro desta, a primeira norma que introduziu a meritonomia foi o Decreto Lei 11377, de 29 de maio de 1950, devida à iniciativa do advogado Pedro Patrón Faura que a propôs e redigiu, inspirando-se nas leis francesas do pós-guerra sobre a função pública.

 Nas considerações deste Decreto Lei se dizia que “se faz indispensável criar a Carreira Administrativa, estabelecendo a forma de ingresso a ela, as pautas a que devem sujeitar-se os ascensos e promoções e, por sua vez, as sanções a que se façam credores os que infrinjam as disposições regulamentares; que dentro de nosso regime democrático, todos os cidadãos devem ter iguais possibilidades para o desempenho da função  pública e melhorar dentro dela com base exclusiva da capacidade e idoneidade expostas no trabalho”.

Contradições

Extravagante, mas explicável contradição: nesse momento, o Peru suportava uma ditadura que se ensaiava com os dirigentes operários e estudantis, torturando-os e encerrando-os por anos nas prisões de Lima e de El Frontón.

Patrón Faura, como todos, sabia disse, mas não podia perder a oportunidade de arrancar ao governo uma norma necessária para o Peru. Seu Decreto Lei dispôs o ingresso à carreira administrativa e os ascensos dentro dela por concurso segundo as vagas disponíveis e criou o Conselho Nacional do Serviço Civil como instância máxima administrativa para resolver as reclamações dos funcionários públicos. Foi uma boa lei, cuja aplicação criou nos funcionários públicos a mística do pertencimento a um corpo encarregado da prestação de serviços públicos.

Foi desfigurada e terminaram deixando-a de lado os governos do Apra e de Fujimori e os que os seguiram, primeiro com o ingresso por “serviços não pessoais”, depois por contratos diversos e nomeações por amiguismo e partidarismo, e depois introduzindo o regime da atividade privada (D.Leg. 728) e institucionalizando o Contrato Administrativo de Serviços (CAS), contra a Constituição que encarrega o exercício da função pública não política nem de confiança à carreira administrativa (art. 40º).

Há alguns dias, alguns militares de alta graduação denunciaram que haviam sido manipulados os ascensos para postergá-los. Outros apontaram que certos chefes preferiam os ascensos de alguns para passar outros ao retiro. Se estes ascensos se ajustassem rigorosamente à meritonomia não se produziriam situações como estas. Do mesmo modo, a passagem para o retiro deveria ser regida pela chegada a certa idade e não por outras considerações. A direita recalcitrante e seu poder midiático, que nada disseram em situação anteriores semelhantes ou piores, fingiram escandalizar-se e aproveitaram para lançar-se outra vez contra o governo do professor com chapéu camponês.

Como se vê, nesta matéria temos retrocedido.

O corsi e o ricorsi dos que falava Giambattista Vico em sua Scienza nuova (Ciência nova), no século XVIII, continua determinando a marcha de nossa sociedade.

Reflexão final: se os direitos obtidos não são defendidos, se debilitam e terminam por se perderem em proveito daqueles que os abatem. Depois se instala a arbitrariedade e o abuso como conduta normal daqueles que ocupam os cargos com poder e as hierarquias mais elevadas e, frequentemente também, os burocratas ínfimos.

Jorge Rendón Vásquez, Colaborador de Diálogos do Sul de Lima, Peru.

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Jorge Rendón Vásquez Doutor em Direito pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos e Docteur en Droit pela Université de Paris I (Sorbonne). É conhecido como autor de livros sobre Direito do Trabalho e Previdência Social. Desde 2003, retomou a antiga vocação literária, tendo publicado os livros “La calle nueva” (2004, 2007), “El cuello de la serpiente y otros relatos” (2005) e “La celebración y otros relatos” (2006).

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