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Se ficarmos aguardando que “as esquerdas” acordem, não construiremos um novo tempo

Neste momento pós-golpe, infelizmente, a maioria das forças da esquerda brasileira está passando por um momento de luto e de autocrítica interna
Ricardo Almeida
Sul 21
Porto Alegre (RS)

Tradução:

O novo artigo “Para a esquerda, morrer é só o começo”, de Vladimir Safatle, contém importantes avanços conceituais e práticos em relação ao texto anterior (“Como a esquerda brasileira morreu”), mas ainda transmite uma estranha sensação de que, apenas por decretar a morte da esquerda brasileira, a realidade vai mudar. Apesar de essa restrição do texto, entendo que as metáforas utilizadas pelo autor contribuem para incentivar o debate público sobre o esgotamento dos métodos e conceitos que ainda são utilizados pela esquerda hegemônica no Brasil.

Ao invés de anunciar a morte das esquerdas, eu prefiro dizer que a realidade social, econômica e cultural mudou radicalmente a partir dos anos 1980 e 1990 e que a maioria dos militantes de esquerda continua a propagar concepções de mundo e estratégias e táticas de luta baseadas em elaborações teóricas forjadas durante a segunda revolução industrial, nos séculos 19 e 20. Em função disso, esses militantes mantêm e incentivam reflexões apenas sobre o conhecimento aprendido e sobre o legado deixado por outras gerações, defendem os seus cargos e, infelizmente, as suas estruturas organizacionais hierárquicas e centralizadas.

Mas Safatle prefere fazer uma provocação e insinua que o fascismo voltou porque “foi o primeiro a sentir o cheiro da nossa morte”. Não contextualiza a profunda crise do capitalismo mundial, nem a dinâmica da luta de classes internacional e tampouco as mudanças que estão ocorrendo na estrutura produtiva da sociedade brasileira e mundial. No entanto, en passant, Safatle concorda que houve um esgotamento do ciclo (?) hegemonizado pela esquerda no Brasil. Entendo que esse debate deveria ser canalizado para a avaliação das nossas experiências concretas, radicalizando (ao tomar esses fenômenos pela raiz) e apontando caminhos que não estão sendo percorridos pelas esquerdas brasileiras.

A maioria das nossas lideranças sabe que a realidade mudou e que o sistema capitalista vive uma das suas maiores crises, mas não sabe relacionar isso com a nossa vida cotidiana. Além disso, desaprendeu a organizar espaços radicalmente democráticos que permitam impulsionar essas reflexões para a compreensão e a tradução da complexidade dos problemas existentes nas nossas cidades, nos campos, nas florestas e no litoral. Ao mesmo tempo, enfrentamos o desafio de dialogar com indivíduos que têm muito mais informações do que antes, sendo que a maioria delas é obtida via redes caórdicas de comunicação, recheadas de fake news e de meias verdades. Com isso, assistimos a uma proliferação de grupos de pessoas céticas, dispersas e solitárias, e ignoramos a radicalização política dos novos movimentos urbanos, assim como as organizações dos povos indígenas e de matriz africana no Brasil e no continente.

Neste momento pós-golpe, infelizmente, a maioria das forças da esquerda brasileira está passando por um momento de luto e de autocrítica interna

Foto: Guilherme Santos/Sul21
O fascismo voltou porque “foi o primeiro a sentir o cheiro da nossa morte”

No seu recente artigo, Safatle acerta ao afirmar que “a esquerda nacional” precisa debater e propor “uma política econômica alternativa” e redefinir o seu “horizonte de reconstituição institucional”. No entanto, ele se nega a aprofundar esse debate quando diz que “não há sentido algum em enunciar ‘propostas’ em artigos de jornal”. E conclui: “Não é de propostas que necessitamos, mas de processo”. Como assim? Como separar os “processos” das “propostas” e dos “resultados”? Este é um dos motivos pelos quais me disponho a manter um diálogo franco e aberto sobre essas questões… O outro é porque Safatle costuma cobrar resultados da esquerda brasileira e de emitir opiniões um tanto fatalistas sobre as nossas experiências concretas.

Percebo que o filósofo costuma se posicionar fora das experiências em curso e prefere assistir às disputas pela hegemonia política e cultural com um olhar meramente especulativo e acadêmico. Não se contentando com a situação do Brasil, ele afirma que as experiências da Grécia (Syriza) e da Espanha (Podemos), dois processos que estão em disputa na Europa, não valeram de nada. Segundo o artigo, “há de se reconhecer atualmente que os resultados foram decepcionantes”. Caberia uma pergunta ao professor: para ele, em que país os resultados não foram decepcionantes? Quais são as suas referências históricas?

Apesar das críticas, neste artigo recente, Safatle amenizou e reconheceu parte da realidade brasileira ao dizer que “isto não significa dizer que não há lutas, que as lutas atuais não são decisivas e importantes”. E aproveitou para defender a sua militância, ao afirmar que: “todos nós estamos envolvidos em várias lutas, em várias frentes, em um ritmo muitas vezes frenético. Todas elas são grandiosas”.

Concordamos que as manifestações vitoriosas no Chile revelam que as lutas feministas, indigenistas, antirracistas PODEM ter um desdobramento necessário e decisivo na luta de classes, e que a esquerda brasileira teme dizer em alto e bom som que é anticapitalista. Mas não acho engraçado dizer que “vivemos em uma era de sinais trocados […] que a extrema-direita no mundo inteiro não teme em dizer que estão a lutar por uma ‘revolução’ que possa dar ao povo a voz que eles nunca tiveram”, ou que somente a direita ganha eleições e constrói adesão popular real, pois entendo que a hegemonia ainda está em disputa. Cabe lembrar que esses métodos citados por Safatle sempre foram utilizados pela extrema-direita e que a sociedade conservadora brasileira jamais irá assumir que é autoritária, corrupta, antipatriota, etc.

Safatle tem razão em defender debates sobre “ideias abstratas”. Mas, aqui, cabe outro esclarecimento: a minha crítica anterior foi que ele generalizou as suas reflexões ao misturar todas as forças de esquerda no mesmo saco, chamar toda a esquerda brasileira de populista, etc. e tal. Desse modo, apesar de bem-intencionados, os seus artigos deixam parecer que o professor está querendo apenas polemizar e não identifica a mínima convergência com as demais forças de esquerda.

Ao dizer que “não é de propostas que necessitamos, mas de processo. Ou seja, de um processo aberto que permita a implicação popular na constituição coletiva de um campo de ações concretas de governo (?). É ele que nos falta. Nos falta suas estruturas, seu tempo, suas transversalidades”, Safatle abstrai. Por isso, eu pergunto: PARA QUÊ as pessoas irão se reunir? Apenas para ouvir alguns discursos e depois voltar para casa? Para tirar selfies e postar nas redes sociais? Ou para definir um PROPÓSITO CLARO e alguns PRINCÍPIOS (valores) básicos que nortearão cada uma das organizações?

Entendo que, a partir do reconhecimento da autonomia de cada organização, a defesa da democracia direta e de um propósito claro, os espaços serão organizados para alcançar um PROPÓSITO e celebrar os PRINCÍPIOS definidos. Durante esses processos, é que surgirão diferentes propostas e serão criados os meios democráticos para viabilizá-las, assim como as condições necessárias para enfrentarmos a extrema-direita. Ou seja, a questão das organizações é um desafio que não pode ficar em segundo ou terceiro plano, sob pena de desperdiçarmos tempo e vidas, ao invés de promovermos a “consolidação” paulatina de um processo organizativo plural e revolucionário, que mereça esse nome.

Para Safatle, o principal problema das esquerdas brasileiras é que “as múltiplas lutas não conseguem mais entrar em um processo de acumulação e unificação. Elas não entram em constelação”. O filósofo não percebe que para “entrar em constelação” as pessoas precisam aprender pela reflexão sobre as experiências. Quem leu o seu artigo anterior e a minha resposta, vai lembrar que concordamos que as esquerdas brasileiras nunca tiveram forças para resistir aos golpes. No entanto, eu advirto que se não entendermos essa singularidade do processo brasileiro, vamos repetir os mesmos erros do passado e/ou nos contentar em fazer elogios ao heroísmo de militantes que perderam a vida.

Concordamos que uma das formas de enfrentar a revolução conservadora é “a consolidação de uma real força de contraposição radical”. No entanto, o termo radical não pode ser utilizado em vão, como retórica, apenas para causar impacto. Por isso, cabem novas perguntas: uma crítica radical às forças de esquerda não deveria ser objetiva, com endereço certo e com argumentos que contribuam para avançarmos nos debates? Quais são as autocríticas necessárias das esquerdas brasileiras? Quais são as propostas corretas e/ou equivocadas dos programas dos partidos e dos governos? O que Safatle propõe para construir a máxima convergência possível das forças de esquerda? Como acumular forças para desmontar o “necroestado” sem reconhecer as organizações que já estão enfrentando o modelo econômico, como os petroleiros, os povos indígenas, o movimento negro, as organizações de mulheres e dos artistas, por exemplo? Com qual PROPÓSITO vamos unificar essas forças para desmascarar e derrotar a naturalização da violência e a ganância da elite rentista nacional e internacional? Essa “consolidação” se dará em torno de propostas e ações concretas ou apenas por meio de discursos e de desabafos?

Entendo que um militante que se considera radical deveria agir como um porta-voz, ao menos de um grupo social organizado. Nada contra a essência das suas provocações, mas, para avançar seria preciso traduzir as singularidades de cada organização e realidade regional, até encontrar os caminhos da “consolidação” real e possível. Ou seja, não basta refletir sobre as nossas inquietações mentais… Precisamos confrontar as nossas teorias com a vida real e realizar uma revolução política e cultural, com as nossas comunidades.

Entendo que, neste momento pós-golpe, infelizmente, a maioria das forças da esquerda brasileira está passando por um momento de luto e de autocrítica interna, e que isso está atrasando a máxima convergência possível desejada por todos nós. A maioria das organizações ainda está (voltada) para dentro em função de seus erros e acertos, mas principalmente porque não compreendeu as mudanças que ocorreram no mundo do trabalho e dos direitos civis. Ainda bem que algumas estão dispostas a dialogar, mas também existem aquelas que insistem falar em nome das demais.

Nesse sentido, na circunstância em que nos encontramos, caracterizada pelo avanço das forças conservadoras no Brasil e no mundo, e pela não compreensão dos fenômenos provocados pela revolução digital tecnológica, entre outras questões citadas, entendo que o hábito de substituir a complexa realidade (objetiva e subjetiva) por verdades inquestionáveis poderá nos levar a um suicídio político sem precedentes. Se ficarmos aguardando que “as esquerdas” acordem e não nos dedicamos a criar novas organizações que sejam capazes de ocupar as ruas – como na França, no Chile, por exemplo, não estaremos atuando como educadores e muito menos como construtores de um novo tempo.

Ricardo AlmeidaConsultor em Gestão de Projetos TIC


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Ricardo Almeida

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