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"Se não escrevermos nossas histórias, alguém vai fazer isso por nós", diz documentarista

Na Guatemala, as salas de cinema estão dominadas pelos filmes de Hollywood. Mas, este não é o cinema que se deve fazer e ser exibido no país
Ilka Oliva Corado
Diálogos do Sul Global
Território dos EUA

Tradução:

Vivian Rivas é documentarista guatemalteca radicada nos Estados Unidos. Realizou os documentários Ebb Tide e Mr. Bob. Com Ebb Tide participou em 16 festivais nos Estados Unidos, na Grécia, Inglaterra e no Chipre.

Como se conta uma história atrás de uma câmera?

É isso mesmo e um pouco mais que nos conta Vivian nesta entrevista realizada por nossa colaboradora Ilka Oliva Corado*

Na Guatemala, as salas de cinema estão dominadas pelos filmes de Hollywood. Mas, este não é o cinema que se deve fazer e ser exibido no país

Foto: Ilka Oliva Corado
Vivian Rivas é uma documentarista guatemalteca

Confira a íntegra da entrevista

Ilka Oliva Corado: Utilizo a palavra “documentar” quando tiro fotos ou gravo vídeos no dia a dia, mas, o que é documentar? Por que é necessário documentar? 

Vivian Rivas: Eu diria que o que me move, não é documentar. Sou movida por um impulso muito forte de contar histórias, e a única forma que conheço é com imagens. É a única forma em que posso me expressar. O que me move é contar histórias de personagens que são interessantes para mim, que têm histórias muito humanas e universais, mas, ao mesmo tempo, únicas. 

Na sua busca, na sua necessidade de criar surgiu o cinema em um país como a Guatemala. Como foi para você crescer nesse ambiente e com esse anseio tão grande? 

Foto: Ilka Oliva CoradoSempre gostei da criatividade. Desde criança me encantava a música, tocava órgão, desenhava, pintava e fazia casas e móveis de caixas de papelão. Também me encantava ver filmes com minha mãe. Minha referência era o cinema clássico de Hollywood e além de ir aos cinemas comerciais ia à Aliança Francesa ver os filmes que chegavam à Guatemala. Sabia que queria estudar cinema. Mas não existia uma escola de cinema na Guatemala. Então, o mais parecido era a arquitetura. Assim entrei no curso de arquitetura da Universidade Rafael Landívar. Quando estava no meio do curso, o cineasta guatemalteco Justo Chang regressou à Guatemala depois de fazer um doutorado na Universidade La Sorbone, em Paris. Comecei a frequentar suas aulas de Técnicas de Cinema aos sábados pela manhã e me lembro de esperar ansiosa pelos sábados. Me formei em arquitetura e montei meu escritório com uma boa amiga e colega. 

Um dia, Justo me apresentou seu amigo, o diretor Luis Argueta que me ofereceu a oportunidade de trabalhar no primeiro longa-metragem filmado na Guatemala: “El Silencio de Neto”. E o Luis me contratou para vir trabalhar em Nova York em sua produtora Morningside Movies em 1993.

E você foi viver nos Estados Unidos sempre perseguindo o sonho do cinema. O que você encontrou ou não nos Estados Unidos? Porque sempre existem desencontros. Como é bater nas portas fora de seu país de origem?

Eu já conhecia Nova York porque tinha vindo passear com minha família. Sempre pensei que era uma cidade fascinante. Quando vim para trabalhar aqui, eu já tinha estudado aqui por seis meses, fazendo cursos de fotografia, produção, etc. Já estava enamorada da cidade e conhecia o estilo de vida. Eu vinha já com meu trabalho e conhecia Luis Argueta e as pessoas de sua empresa. No primeiro inverno, comecei a me sentir deprimida, mas o Luis me disse: compre uma bicicleta e vá andar no frio na hora do almoço”. Dito e feito, quando você enfrenta algo novo, tem que fazer 100%.

O que se faz com a frustração? Há uma forma de enfrentá-la com o trabalho criativo? 

Creio que ter sido atleta desde jovem, me serviu muito para superar desafios. Fui jogadora de voleibol por muitos anos na equipe do Colégio Belga e estive na Seleção Nacional por vários anos. Já não jogo voleibol, mas jogo tênis. Dizem que o tênis é 60% mental. Pois, a mim me força a estar presente e resolver. É como uma meditação em movimento para mim. Definitivamente não poderia trabalhar em um escritório tendo uma rotina de trabalho como a maioria das pessoas. Então sim, viveria em uma contínua frustração. 

A arte é política, tudo é político nesta vida, o que tem de político para você fazer documentários? É também uma resistência?

Definitivamente, as histórias que conto têm um subtexto político, sem ser partidárias. Os temas e personagens que me parecem interessantes são os que têm contradições, os que fazem você questionar e a levam em uma viagem humana.

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Os temas de justiça e direitos humanos sempre estão presentes em minhas histórias sem ser histórias “panfletárias”. Não gosto de explicar, me encanta que os espectadores ponham sua parte e encham os vazios.

O seu documentário “Ebb Tibe” conta uma história extraordinária de humanismo, não tem fronteiras nem idiomas e qualquer pessoa pode entender. Como nascem as ideias de seus documentários? De contar essas histórias?

Obrigada! Agradeço a você. Me encanta que as pessoas de diferentes culturas e idades se identifiquem com meu personagem e que gostem da história. Esta ideia em particular nasceu porque sou amiga da Zee há mais de 10 anos. Durante estes anos, ela falava muito de seus dias como professora no Harlem com muita saudade e alegria. Durante 25 anos guardou todos os poemas de seu alunos, vídeos em VHS, recortes de jornais, fotos, etc.  Tinha todo esse material em uma caixa, muito bem-ordenado. Quando tive que começar a escrever minha tese de mestrado, me pareceu que esta era uma história que eu poderia contar em não mais de 15 minutos, que era o tempo máximo que podia durar o projeto. Nunca imaginei que esta história ia ressoar e participar em mais de 16 festivais nos Estados Unidos, Grécia, Inglaterra e no Chipre. E, sobretudo, ganhar seis prêmios!

Cartaz do documentário Ebb Tide, de Vivian Rivas / Divulgação

Como uma mulher se levanta todos os dias sem esmorecer e continuar perseguindo seus sonhos?

Pois, me levanta a paixão por contar histórias. Trabalho como “freelance”, supervisora de roteiro ou continuísta. Nunca sei em que, nem onde vou trabalhar até um par de dias antes de começar. E se não tenho trabalho, toco meus projetos pessoais ou cuido de cachorros. Gosto de não ter rotina. Me encanta a mudança de estações de NY e a energia que tem esta cidade. As pessoas interessantes que conheci e continuo conhecendo. Me encanta o fato de poder me perder na cidade e ser anônima, mas, ao mesmo tempo, tenho gente que me apoia e é muito querida. 

Digamos que um documentário de 15 minutos ou 30 minutos, quanto tempo pode levar desde a ideia inicial até quando você diz que está terminado e pronto para ser apresentado? Quantas pessoas podem estar envolvidas em sua realização?

Fiz mestrado em Cinema Documental no City College. O programa dura dois anos intensos (4 semestres). Começamos a escrever a tese no segundo semestre do curso. 

O cinema é uma arte e uma indústria colaborativa. Mas não necessariamente todos trabalham ao mesmo tempo, em um projeto. Durante a etapa de produção a equipe de um documentário com pouco orçamento, em geral, é menor que em um trabalho de ficção. Geralmente se trabalha com um diretor/a de fotografia, técnico de som e diretor/a. Em minha tese Ebb Tide eu a dirigi, fui diretora de fotografia e técnica de som. Só um dia tive uma segunda câmera e um técnico do som adicional. Ebb Tide é um retrato íntimo, assim era importante estar sozinha trabalhando com minha personagem. 

Durante a pós-produção, se trabalha com um editor/a, engenheiro/a de som para fazer a mescla final e se faz o retoque de cor com um colorista. Em Ebb Tide fiz a edição. Para os documentários, durante a edição se torna a reescrever a história. Mais ou menos se calcula de 7 a 8 horas de trabalho por cada minuto terminado de edição. Para o som, contratei Quentin Chiappetta que tem um estúdio profissional de som. Ele é muito criativo e experiente e fez o trabalho com um orçamento de estudante. Como a história tinha muita música, para mim era importante que a edição de som fosse muito eficiente e, ao mesmo tempo, expressiva. Minha colorista foi Niko David, que se formou 4 anos antes que eu no mesmo programa do City College. Ela é diretora de documentários, colorista e, além disso, uma excelente fotógrafa e uma grande amiga.

Ebb Tide foi premiado em vários festivais. Foto cedida por Vivian Rivas

Qual é a alma de um documentário?

Para mim, o que prende em um bom documentários é o ponto de vista. Que o tema seja oportuno e vigente, mas, ao mesmo tempo, não deve ter caducidade. Individual, mas, ao mesmo tempo, universal.

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Uma boa história tem vários níveis ou capas, assim que o subtexto é muito importante. Ter um ponto de vista ou vários, mas que não queira impor uma verdade.

Um documentário pode curar uma ferida? 

Eu ainda estou aprendendo a encontrar minha voz com cada projeto. Mas, ao mesmo tempo, trato de honrar cada história da melhor maneira possível. Quando estudamos os trabalhos de cineastas com longas trajetórias, percebemos que os temas se repetem e se repetem, embora os filmes sejam diferentes. Para mim, fazer um documentário é uma maneira muito pessoal de falar dos temas que me interessam. Os documentários levam muito tempo e o compromisso que se faz com o tema talvez seja um processo de pesquisa, mas é ao mesmo tempo, um processo de cura. A gente começa com uma ideia que escreve, mas a história vai evoluindo e vai se moldando.

Vivian, você fez de seus sonhos, realidade, embora longe da Guatemala. Como é essa sensação?

Eu me sinto feliz e grata com a vida. Na Guatemala são poucas as pessoas que tem a oportunidade que tive e estou muito consciente disso. Por isso quero aproveitá-la ao máximo. E quaro passar meu conhecimento a mulheres na Guatemala. Eu pensava muito em fazer um documentário na Guatemala, por isso estou fazendo agora.

Cena do documentário Ebb Tide / Divulgação

Há algum documentário em que você esteja trabalhando atualmente?

Sim, agora estou fazendo meu primeiro longa-metragem na Guatemala. O tema é relativo à infância desprotegida e como o estado da Guatemala não sabe nada de infância e a criminaliza. É um projeto que ainda está em produção.

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Neste mundo o amor à arte existe, mas é preciso recursos materiais. O que você poderia dizer a todas as mulheres dos arrabaldes latino-americanos com o sonho infinito de realizar um documentário?  

A Revista Forbes Centro-América disse este ano que a Guatemala era o pior país da América Latina para ser mulher. Há 9 feminicídios por cada 100 mil mulheres. Apenas em 2018 houve mais de 6000 mortes violentas de mulheres e a maioria sofreu agressões sexuais, segundo os médicos forenses.

Já há grupos de mulheres muito interessantes fazendo cinema feminista na Guatemala. Por exemplo, o Coletivo Lemow. A diretora Camila Urrutia acaba de ganhar vários prêmios na Espanha com a longa-metragem “Pólvora en el Corazón”.

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Já estão sendo abertos espaços com o trabalho de muitas mulheres talentosas e valentes. Eu não posso lhes dizer nada, porque já estão contando suas histórias em um país tão patriarcal que só me resta admirá-las muito e apoiar seu trabalho. Em 22 de novembro foi celebrado o Dia do Cinema Feminista na Universidade de São Carlos com apresentação de um minifestival. 

Pois, tudo isto para dizer que a Guatemala está pronta. Agora é possível fazer cinema sem ter grandes recursos. A acessibilidade ao equipamento técnico tornou-se cada vez mais fácil, já que a tecnologia se reduziu em custo e tamanho. O que vejo na Guatemala é uma deficiência acadêmica nas escolas de cinema. Deve-se enfatizar o estudo e a formação de pesquisadores e roteiristas para ficção e documentários. É claro que também a formação técnica. Não é possível contar histórias se não aprendemos a escrevê-las. Também se deve aprender a ver cinema de todo tipo e dialogar sobre cinema. Na Guatemala, as salas comerciais de cinema estão dominadas pelos filmes comerciais de Hollywood. Em geral, as pessoas querem ir ao cinema para evadir-se por um par de horas da realidade em que vivem. Mas, este não é o cinema que se deve fazer na Guatemala. Deve-se encontrar voz própria.

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É um país muito complexo em todos os níveis, mas é também um país onde ainda não foram feitas muitas coisas e não se abriram muitos espaços. E romper esquemas e preconceitos na Guatemala é um trabalho muito duro, porque o sistema está baseado no patriarcado. Incentivo perfeito para que as mulheres contemos nossas histórias. Esse é o desafio!  Se não escrevermos nossas histórias, alguém vai fazer isso por nós.

*Ilka Oliva Corado é colaboradora de Diálogos do Sul desde o território estadunidense

**Tradução: Beatriz Cannabrava

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Ilka Oliva Corado Nasceu em Comapa, Jutiapa, Guatemala. É imigrante indocumentada em Chicago com mestrado em discriminação e racismo, é escritora e poetisa

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