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Segregação, isolamento e solidariedade: como ficará a favela nos tempos de coronavírus?

Como esse cenário de catástrofe global irá se desenrolar entre os 12 milhões de brasileiros que moram nas periferias?
Renato Balbim
Diplomatique Brasil
São Paulo (SP)

Tradução:

“Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve para nada”

(Gabriel G. Márquez)

Vivemos a primeira pandemia da globalização com níveis de letalidade relativamente altos e capacidade já comprovada de pôr em xeque o sistema de saúde mundial, inclusive dos países ricos.

Diferente do que aconteceu com o zika vírus, que não evoluiu para a condição pandêmica porque acabou por se concentrar nas áreas tropicais, particularmente em regiões mais pobres, ou da pandemia do H1N1 que não sobrecarregou o sistema de saúde, o coronavírus tem se alastrado rapidamente por todo o mundo sem qualquer distinção social ou geográfica, além do seu vetor inicial: pessoas que viajam internacionalmente, basicamente abastados, o que explica os casos entre políticos, personalidades públicas e astros do cinema e do esporte, contribuindo para as manchetes que aterrorizam a população.

Diversas questões têm surgido, algumas de grande interesse. Será que essa característica do coronavírus colaborará no desenvolvimento de uma globalização mais justa e igualitária? Ao final desta pandemia seremos mais xenófobos ou mais empáticos? Vamos enfim nos atentar para o fato de que as tragédias são globais e que, assim como as mudanças climáticas, os vírus não respeitam fronteiras? Ou haverá uma pandemia dos ricos e outra relacionada aos pobres?

Até o momento as notícias que nos chegam são relacionadas principalmente à pandemia dos ricos. Mas como esse cenário de catástrofe global irá se desenrolar entre os 12 milhões de brasileiros que moram em favelas? Não há qualquer resposta a essa pergunta. Em outros países pobres a preocupação também parece apenas se iniciar. Qualquer prognóstico deve ter como base a lógica da urbanização de cada região e país, as características geográficas e sociais desses assentamentos e as atuais condições de vida de cada lugar. As possíveis soluções também devem ser assim adaptadas e passarão fundamentalmente pela solidariedade das comunidades.
Como esse cenário de catástrofe global irá se desenrolar entre os 12 milhões de brasileiros que moram nas periferias?

Foto: Vivi Zanatta / Paho/Who
“Clínica da Família Maria do Socorro Silva e Souza”, Rocinha, Rio de Janeiro

Historicamente, moradores de favelas não são assistidos por políticas públicas, vivem sem saneamento básico, dividem espaços restritos, confinados, mal ventilados, com problemas estruturais e em domicílios e áreas com alta densidade demográfica.

Essas pessoas também não se deslocam em aviões e qualquer contaminação pelo coronavírus quando acontecer será estrangeira!

Políticas de urbanização de favelas e melhorias habitacionais têm como uma das suas principais ações a melhoria de condições de ventilação e iluminação de casas, buscando com isso diminuir a insalubridade e os casos de doenças, sobretudo respiratórias, endêmicas. Tuberculose e pneumonia são mais corriqueiros em favelas brasileiras do que se imagina e muito mais do que se tem reportado ao sistema de saúde. Na Rocinha, um caso bastante estudado, são 372 casos de tuberculose por 100.000 mil habitantes. Comparando com o coronavírus (Covid-19), são 175 casos por grupo de 100.000 na China, onde o pico de incidência já foi ultrapassado, e de 46 por 100.000 na Itália, que em breve atingira também esse pico.

O que interessa aqui não é comparar cada uma das enfermidades, mas sim revelar que nas áreas pobres do Sul Global, favelas brasileiras em especial, o coronavírus atingirá uma população extremamente debilitada, com forte incidência de doenças pulmonares anteriores e condições de vida totalmente insalubres. Qual será a letalidade dessa enfermidade na Rocinha? E qual será no vizinho rico bairro de São Conrado? Quais os grupos de maior risco em cada localidade? Quais equipamentos públicos e estratégias serão organizadas considerando contextos tão díspares?

A precariedade das condições e do espaço de vida dos mais pobres, incluindo nutrição e acesso ao sistema de saúde, impõe uma política específica para conter a disseminação do coronavírus. Somam-se ainda outros fatores, como o atual surto de sarampo em todo Brasil.

Doença respiratória, extremamente contagiosa que pode evoluir para quadros de pneumonia e outras complicações, o sarampo foi paulatinamente erradicado no país que se tornou completamente livre da doença em 2016. Em 2019, o sarampo voltou de maneira rápida, atingindo principalmente crianças e jovens, seu grupo de maior risco. Sua associação com o coronavírus parece bombástica na perspectiva que expande o grupo de risco de morte podendo incluir também os mais jovens.

Ao pensarmos como o coronavírus irá se distribuir no país, e quais serão seus impactos, devemos lembrar que o desenvolvimento brasileiro impõe a morte prematura de milhares de pessoas pobres infectadas por doenças medievais e violência de diversas ordens. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a expectativa de vida nas áreas mais pobres chega a ser de apenas 58,6 anos (Grajaú), contrastando com os 80,5 anos em Moema.

É neste contexto que o Brasil terá que enfrentar a pandemia do coronavírus. Ou, não!

Jovens e adultos saudáveis, nutridos, essa grande parcela da classe média trabalhadora e dos ricos, tem baixo risco de desenvolver formas mais severas da doença. Nesses casos seria apenas uma “gripezinha”, para alguns até assintomática, mas altamente transmissível!

Esse caldo de segregação, exclusão e diferenciação social indica o elevado risco de que em momento de crise se negligencie ainda mais nossa condição básica de vida em comunidade, o zelo pela saúde do outro, a própria preservação da espécie, e não de uma raça ou classe social. Como outras ações xenófobas e autoritárias mundo afora têm revelado, a falta de empatia e solidariedade é também um vírus letal e que se alastra facilmente.

Em recente artigo sobre a pandemia, Debora Diniz afirma que toda biopolítica se torna uma necropolítica quando os governos e a sociedade determinam quem irá morrer ou viver. De maneira geral a biopolítica refere-se ao uso do poder do Estado para regular, organizar e controlar a população através das condições de vida. Geopolítica e biopolítica são termos cunhados por Rudolf Kjellén, em 1905, sendo que a biopolítica foi usada no nazismo e é arma recorrente de governos autoritários. A biopolítica é o instrumento geopolítico utilizado por Trump quando fecha o espaço aéreo norte-americano para a Europa, mas não para a Inglaterra e outros aliados do momento.

Recentemente, o termo biopolítica foi “atualizado” para dar conta da perversidade da atual condição humana. Surge então a necropolítica, uma variante desse conceito que chama atenção para a total perda de caráter de governantes que, intencionalmente, definem estratégias e políticas que resultam na morte de corpos que não mais servem ou não se adaptam aos seus padrões. A necropolítica é a ação violenta do Estado que mata jovens negros pobres e periféricos no Brasil. É a necropolítica que define ou justifica não abrir inquérito policial para investigar a LGBTfobia Brasil afora. É essa mesma necropolítica que perpetua um modelo de desenvolvimento das cidades que não supera as condições precárias dos assentamentos urbanos, mesmo havendo aparato legal, conhecimento técnico e mecanismos de financiamento para tanto.

O fato é que a erradicação da precariedade habitacional foi e continua sendo uma forma de provisão de terra urbana bem localizada para os interesses do capital. É assim que as favelas localizadas em áreas de interesse do capital imobiliário em São Paulo têm a estranha condição de combustão espontânea. Foi assim que aconteceu com o higienismo do final do século XIX e começo do XX, quando a biopolítica do governo Rodrigues Alves, o urbanismo de Pereira Passos e a medicina social de Oswaldo Cruz deram início à Revolta da Vacina em 1904 no Rio de Janeiro.A persistência durante séculos de um urbanismo dedicado à especulação imobiliária e à segregação socioespacial nos faz chegar aos dias de hoje com enorme temor sobre os impactos do coronavírus nas áreas de favelas e cortiços das cidades brasileiras.

O coronavírus não faz distinção de raça, cor, credo ou renda. Ou seja, ainda que os assentamentos precários possam ser áreas de maior incidência e maior mortalidade, a propagação do vírus não será contida nesses espaços. Assim como acontece com as enchentes de todos os anos, os piores casos e o maior número de mortes irão se concentrar nas áreas de maior risco, as favelas, mas os impactos estarão por toda a cidade.

“Clínica da Família Maria do Socorro Silva e Souza”, Rocinha, Rio de Janeiro. PHOTO: VIVI ZANATTA © PAHO/WHO

Nesse caso, a única maneira de beneficiarmos a nós mesmos, independente de nossa condição de moradia ou renda, é trabalharmos para que o vírus não se espalhe pela cidade como um todo. Sim, a favela faz parte da cidade!

Há ainda a possibilidade de que o autoritarismo instalado no Estado brasileiro use dessa situação para confinar e diferenciar parcela da população. Nesse caso as consequências são imprevisíveis, mas serão sem dúvida catastróficas.

Protocolos internacionais de combate à pandemia precisam ser urgentemente adaptados para darmos conta da condição de vida de milhões de brasileiros expostos a riscos muito maiores de contaminação e em condições de saúde que resultarão no aumento da letalidade dessa doença a padrões ainda não computáveis.

É também urgente a instalação de uma rede de informação e solidariedade entre comunidades e organizações sociais comprometidas com o cuidado das populações mais carentes para que medidas adaptadas sejam debatidas, soluções e informações circulem, e que juntos possamos fazer frente à necropolítica do Estado brasileiro.

Em tempo, ao contrário do anti-presidente da República, organizações como a Fiocruz, Congresso Nacional e Ministério da Saúde, bem como esforços de estados, municípios, ONGs e várias outras instituições públicas e privadas, têm tratado o tema da pandemia com seriedade e competência. Entretanto, não há notícia de nenhum plano de contingência específico para a parcela da população que vive em assentamentos precários, cortiços e favelas. É urgente que isso ocorra. O início é a formação de redes de informação que unam comunidades e técnicos de áreas diversas comprometidos com a vida humana.

As recomendações de higiene e contato social podem não ser satisfatórias e nem totalmente aplicáveis nessas áreas. E, como já apontado, a precariedade urbanística provoca e intensifica a debilidade sanitária, expondo as condições mais severas da doença não apenas a idosos, mas também a crianças, jovens e adultos com a imunidade debilitada, sobrecarregando ainda mais o sistema de saúde e aumentando a mortalidade na sociedade como um todo.

 

Renato Balbim, geógrafo-urbanista, é pesquisador e professor visitante da Universidade da Califórnia em Irvine (UCI).


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Renato Balbim

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