“Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve para nada”
(Gabriel G. Márquez)
Vivemos a primeira pandemia da globalização com níveis de letalidade relativamente altos e capacidade já comprovada de pôr em xeque o sistema de saúde mundial, inclusive dos países ricos.
Diferente do que aconteceu com o zika vírus, que não evoluiu para a condição pandêmica porque acabou por se concentrar nas áreas tropicais, particularmente em regiões mais pobres, ou da pandemia do H1N1 que não sobrecarregou o sistema de saúde, o coronavírus tem se alastrado rapidamente por todo o mundo sem qualquer distinção social ou geográfica, além do seu vetor inicial: pessoas que viajam internacionalmente, basicamente abastados, o que explica os casos entre políticos, personalidades públicas e astros do cinema e do esporte, contribuindo para as manchetes que aterrorizam a população.
Diversas questões têm surgido, algumas de grande interesse. Será que essa característica do coronavírus colaborará no desenvolvimento de uma globalização mais justa e igualitária? Ao final desta pandemia seremos mais xenófobos ou mais empáticos? Vamos enfim nos atentar para o fato de que as tragédias são globais e que, assim como as mudanças climáticas, os vírus não respeitam fronteiras? Ou haverá uma pandemia dos ricos e outra relacionada aos pobres?
Foto: Vivi Zanatta / Paho/Who
“Clínica da Família Maria do Socorro Silva e Souza”, Rocinha, Rio de Janeiro
Historicamente, moradores de favelas não são assistidos por políticas públicas, vivem sem saneamento básico, dividem espaços restritos, confinados, mal ventilados, com problemas estruturais e em domicílios e áreas com alta densidade demográfica.
Essas pessoas também não se deslocam em aviões e qualquer contaminação pelo coronavírus quando acontecer será estrangeira!
Políticas de urbanização de favelas e melhorias habitacionais têm como uma das suas principais ações a melhoria de condições de ventilação e iluminação de casas, buscando com isso diminuir a insalubridade e os casos de doenças, sobretudo respiratórias, endêmicas. Tuberculose e pneumonia são mais corriqueiros em favelas brasileiras do que se imagina e muito mais do que se tem reportado ao sistema de saúde. Na Rocinha, um caso bastante estudado, são 372 casos de tuberculose por 100.000 mil habitantes. Comparando com o coronavírus (Covid-19), são 175 casos por grupo de 100.000 na China, onde o pico de incidência já foi ultrapassado, e de 46 por 100.000 na Itália, que em breve atingira também esse pico.
O que interessa aqui não é comparar cada uma das enfermidades, mas sim revelar que nas áreas pobres do Sul Global, favelas brasileiras em especial, o coronavírus atingirá uma população extremamente debilitada, com forte incidência de doenças pulmonares anteriores e condições de vida totalmente insalubres. Qual será a letalidade dessa enfermidade na Rocinha? E qual será no vizinho rico bairro de São Conrado? Quais os grupos de maior risco em cada localidade? Quais equipamentos públicos e estratégias serão organizadas considerando contextos tão díspares?
A precariedade das condições e do espaço de vida dos mais pobres, incluindo nutrição e acesso ao sistema de saúde, impõe uma política específica para conter a disseminação do coronavírus. Somam-se ainda outros fatores, como o atual surto de sarampo em todo Brasil.
Doença respiratória, extremamente contagiosa que pode evoluir para quadros de pneumonia e outras complicações, o sarampo foi paulatinamente erradicado no país que se tornou completamente livre da doença em 2016. Em 2019, o sarampo voltou de maneira rápida, atingindo principalmente crianças e jovens, seu grupo de maior risco. Sua associação com o coronavírus parece bombástica na perspectiva que expande o grupo de risco de morte podendo incluir também os mais jovens.
Ao pensarmos como o coronavírus irá se distribuir no país, e quais serão seus impactos, devemos lembrar que o desenvolvimento brasileiro impõe a morte prematura de milhares de pessoas pobres infectadas por doenças medievais e violência de diversas ordens. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a expectativa de vida nas áreas mais pobres chega a ser de apenas 58,6 anos (Grajaú), contrastando com os 80,5 anos em Moema.
É neste contexto que o Brasil terá que enfrentar a pandemia do coronavírus. Ou, não!
Jovens e adultos saudáveis, nutridos, essa grande parcela da classe média trabalhadora e dos ricos, tem baixo risco de desenvolver formas mais severas da doença. Nesses casos seria apenas uma “gripezinha”, para alguns até assintomática, mas altamente transmissível!
Esse caldo de segregação, exclusão e diferenciação social indica o elevado risco de que em momento de crise se negligencie ainda mais nossa condição básica de vida em comunidade, o zelo pela saúde do outro, a própria preservação da espécie, e não de uma raça ou classe social. Como outras ações xenófobas e autoritárias mundo afora têm revelado, a falta de empatia e solidariedade é também um vírus letal e que se alastra facilmente.
Em recente artigo sobre a pandemia, Debora Diniz afirma que toda biopolítica se torna uma necropolítica quando os governos e a sociedade determinam quem irá morrer ou viver. De maneira geral a biopolítica refere-se ao uso do poder do Estado para regular, organizar e controlar a população através das condições de vida. Geopolítica e biopolítica são termos cunhados por Rudolf Kjellén, em 1905, sendo que a biopolítica foi usada no nazismo e é arma recorrente de governos autoritários. A biopolítica é o instrumento geopolítico utilizado por Trump quando fecha o espaço aéreo norte-americano para a Europa, mas não para a Inglaterra e outros aliados do momento.
Recentemente, o termo biopolítica foi “atualizado” para dar conta da perversidade da atual condição humana. Surge então a necropolítica, uma variante desse conceito que chama atenção para a total perda de caráter de governantes que, intencionalmente, definem estratégias e políticas que resultam na morte de corpos que não mais servem ou não se adaptam aos seus padrões. A necropolítica é a ação violenta do Estado que mata jovens negros pobres e periféricos no Brasil. É a necropolítica que define ou justifica não abrir inquérito policial para investigar a LGBTfobia Brasil afora. É essa mesma necropolítica que perpetua um modelo de desenvolvimento das cidades que não supera as condições precárias dos assentamentos urbanos, mesmo havendo aparato legal, conhecimento técnico e mecanismos de financiamento para tanto.
O fato é que a erradicação da precariedade habitacional foi e continua sendo uma forma de provisão de terra urbana bem localizada para os interesses do capital. É assim que as favelas localizadas em áreas de interesse do capital imobiliário em São Paulo têm a estranha condição de combustão espontânea. Foi assim que aconteceu com o higienismo do final do século XIX e começo do XX, quando a biopolítica do governo Rodrigues Alves, o urbanismo de Pereira Passos e a medicina social de Oswaldo Cruz deram início à Revolta da Vacina em 1904 no Rio de Janeiro.A persistência durante séculos de um urbanismo dedicado à especulação imobiliária e à segregação socioespacial nos faz chegar aos dias de hoje com enorme temor sobre os impactos do coronavírus nas áreas de favelas e cortiços das cidades brasileiras.
O coronavírus não faz distinção de raça, cor, credo ou renda. Ou seja, ainda que os assentamentos precários possam ser áreas de maior incidência e maior mortalidade, a propagação do vírus não será contida nesses espaços. Assim como acontece com as enchentes de todos os anos, os piores casos e o maior número de mortes irão se concentrar nas áreas de maior risco, as favelas, mas os impactos estarão por toda a cidade.
Nesse caso, a única maneira de beneficiarmos a nós mesmos, independente de nossa condição de moradia ou renda, é trabalharmos para que o vírus não se espalhe pela cidade como um todo. Sim, a favela faz parte da cidade!
Há ainda a possibilidade de que o autoritarismo instalado no Estado brasileiro use dessa situação para confinar e diferenciar parcela da população. Nesse caso as consequências são imprevisíveis, mas serão sem dúvida catastróficas.
Protocolos internacionais de combate à pandemia precisam ser urgentemente adaptados para darmos conta da condição de vida de milhões de brasileiros expostos a riscos muito maiores de contaminação e em condições de saúde que resultarão no aumento da letalidade dessa doença a padrões ainda não computáveis.
É também urgente a instalação de uma rede de informação e solidariedade entre comunidades e organizações sociais comprometidas com o cuidado das populações mais carentes para que medidas adaptadas sejam debatidas, soluções e informações circulem, e que juntos possamos fazer frente à necropolítica do Estado brasileiro.
Em tempo, ao contrário do anti-presidente da República, organizações como a Fiocruz, Congresso Nacional e Ministério da Saúde, bem como esforços de estados, municípios, ONGs e várias outras instituições públicas e privadas, têm tratado o tema da pandemia com seriedade e competência. Entretanto, não há notícia de nenhum plano de contingência específico para a parcela da população que vive em assentamentos precários, cortiços e favelas. É urgente que isso ocorra. O início é a formação de redes de informação que unam comunidades e técnicos de áreas diversas comprometidos com a vida humana.
As recomendações de higiene e contato social podem não ser satisfatórias e nem totalmente aplicáveis nessas áreas. E, como já apontado, a precariedade urbanística provoca e intensifica a debilidade sanitária, expondo as condições mais severas da doença não apenas a idosos, mas também a crianças, jovens e adultos com a imunidade debilitada, sobrecarregando ainda mais o sistema de saúde e aumentando a mortalidade na sociedade como um todo.
Renato Balbim, geógrafo-urbanista, é pesquisador e professor visitante da Universidade da Califórnia em Irvine (UCI).
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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