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Toggle“Eu sabia apenas que era ilegal. Se abortar, vai presa. Aqui [nos abrigos], falam sobre capacitação, empoderamento feminino, violência doméstica e direitos LGBTQIA+. Mas nunca ouvimos falar sobre o direito ao aborto”, conta Ana Soto*, 46 anos, imigrante venezuelana que vive em um abrigo de passagem da Operação Acolhida, em Boa Vista, Roraima.
Nos últimos cinco anos, venezuelanas realizaram apenas 10 abortos legais no estado da Região Norte – quatro delas tinham entre 13 e 17 anos. Imigrantes venezuelanas respondem por 15% dos procedimentos registrados em Roraima entre 2018 e 2022. Os outros 85% foram realizados por brasileiras.
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Profissionais da rede de proteção confirmam que já atenderam ou receberam relatos de meninas e mulheres vítimas de estupro dentro dos abrigos. Nesses casos, se houver uma gestação como resultado da violência, o aborto é legal no Brasil.
A Defensoria Pública da União (DPU) confirma que investiga pelo menos um caso de estupro. A vítima, uma menina de 16 anos, foi violentada em um dos abrigos da Operação Acolhida, em Boa Vista. A DPU informa que, durante as diligências realizadas, “observou a revitimização e a negativa de realização de corpo de delito pelas autoridades”. O órgão encaminhou um ofício sobre o caso à Defensoria Pública do Estado, ao Ministério Público, à Corregedoria da Polícia Civil e ao Ministério da Cidadania.
Segundo Márcia Maria de Oliveira, professora do curso de Ciências Sociais e pesquisadora do Grupo de Estudos Interdisciplinares sobre Fronteiras (Geifron), na Universidade Federal de Roraima (UFRR), as imigrantes dificilmente denunciam os abusos por medo de represálias.
Foto: Katarine Almeida / especial para a Gênero e Númeroero
Mãe e filha passam pela fronteira entre Brasil e Venezuela, no município de Pacaraima, em Roraima
Um funcionário da Operação Acolhida que prefere não se identificar afirma que o serviço do aborto legal não é divulgado, mas que pode ser acionado caso a pessoa acolhida manifeste essa vontade.
“A gente só apresenta [o aborto legal], se ela verbalizar [a vontade de abortar]. Se a gente perceber, na entrevista com a parte técnica, que ela está com uma gravidez indesejada, que houve uma tentativa de abuso, a gente faz a escuta. Agora, eu não posso chegar para uma adolescente e dizer que ela tem direito ao aborto se ela não tiver manifestado isso”
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Imigrantes venezuelanas entrevistadas pela reportagem dizem que recebem preservativos das equipes de saúde e têm acesso ao anticoncepcional subcutâneo — método contraceptivo de longa duração, no qual um dispositivo com hormônios é implantado sob a pele. Nenhuma delas, porém, tinha conhecimento sobre a lei do aborto legal no Brasil, que permite a realização do procedimento em casos de estupro, risco à saúde da gestante ou anencefalia fetal.
Na Venezuela, o Código Penal diz que a mulher que aborta intencionalmente deve ser punida com pena de prisão de seis meses a dois anos. O aborto é permitido apenas nos casos em que a gravidez representa risco iminente para a vida da gestante.
Segundo Daniella Inojosa, coordenadora da organização feminista venezuelana Tinta Violenta, não há regulamentação e nenhum protocolo que oriente os serviços de saúde, o que inviabiliza o acesso ao aborto mesmo nos casos de gestação de risco.
Segundo o Ministério da Saúde, imigrantes não precisam apresentar quaisquer documentos para serem atendidas pelo sistema público de saúde no Brasil, seja para acessar o aborto legal ou para qualquer outro serviço. O cartão do SUS pode ser concedido mesmo sem o número do CPF ou documento de identidade.
A pasta faz referência à Constituição Federal, que prevê, no artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado. “O Brasil também faz parte de acordos que abordam a temática de saúde e migração, como a Agenda 2030, e conta com arcabouço jurídico nacional, como a Lei de Migração 13.344 de maio de 2017”, completa o Ministério.
Violações no trajeto e na chegada
Ao percorrerem um longo caminho a pé ou de carona, pela estrada ou por dentro da mata, venezuelanas enfrentam uma série de violações até chegarem ao Brasil – país escolhido para fugir da crise econômica e começar uma vida nova. Muitas vêm acompanhadas dos filhos, nem todas estão acompanhadas dos pais dos filhos. A maternidade solo é uma realidade entre elas.
As dificuldades, porém, não terminam ao cruzar a fronteira. “Somos como aqueles cachorros que vivem na rua, não importamos”, diz Juana Ramírez*, 39 anos.
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Quando chegam aos abrigos, as imigrantes se deparam com estruturas insalubres. As entrevistadas relatam que a comida é de baixa qualidade, pouco saborosa e empapada. É difícil fazer as crianças comerem a mesma comida oferecida aos adultos e não há leite ou fórmula para os bebês.
“Minha filha de 1 ano está doente. Perdeu quatro quilos, está com diarreia e infecção respiratória”, conta Argelia Laya*, 26 anos. Ela está abrigada no pavilhão BV8, em Pacaraima. A jovem chegou ao Brasil em abril de 2023.
Em um informativo divulgado pela DPU no primeiro semestre de 2022 consta o acompanhamento e a solicitação de providências em razão da existência de crianças em situação de desnutrição nos abrigos da Operação Acolhida.
Para Daniella Inojosa, as mulheres migrantes encontram-se em uma situação de vulnerabilidade mais grave do que qualquer outra mulher no seu território nacional.
“Se saiu do seu país é porque perdeu a esperança de ter um futuro nele. Então, ela está buscando realizar um sonho, que não tem traços de realidade. Está à mercê do que encontra no caminho. Você tem mais medo da deportação do que da violência”, avalia.
“Aqui passa de tudo, inclusive mulheres traficadas. Já recebemos muitos casos de mulheres e meninas que estavam sendo levadas para a prostituição. Também há muitas menores grávidas”
Irmã Ana Maria da Silva. Casa de Acolhida São José, um abrigo de passagem para mulheres e crianças em situação de refúgio e migração ligada à Pastoral dos Migrantes.
Ao menos duas imigrantes relatam, em meio a lágrimas, que precisaram se prostituir para comprar comida. As situações ocorreram tanto na Venezuela, durante o trajeto, quanto no Brasil.
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Segundo o Sistema de Registro Nacional Migratório, da Polícia Federal, 344,2 mil venezuelanos entraram no Brasil entre 2018 e 2022. Meninas com até 15 anos representam 12% do total. Mulheres são 49% entre os imigrantes.
Roraima é a principal porta de entrada para os venezuelanos em decorrência da fronteira, no município de Pacaraima, e o fluxo migratório impacta com maior intensidade o estado da região Norte.
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Com 15 municípios e uma população de 636,3 mil habitantes, segundo o Censo 2022, Roraima registrou, nos últimos cinco anos, 49% dos imigrantes venezuelanos que entraram no Brasil, o que representa 203,2 mil pessoas. O crescimento populacional do estado em relação ao Censo de 2010 foi de 41%.
O fato de uma pessoa ter se registrado em uma cidade não significa que ela tenha permanecido como residente no mesmo lugar, pois ela pode ter migrado para outras regiões do país.
Operação Acolhida
A Operação Acolhida é uma força-tarefa deflagrada pelo governo federal em 2018, que inclui as Forças Armadas, agências da ONU, organizações da sociedade civil e entidades privadas. A Casa Civil e o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome são os responsáveis pela gestão da operação.
Pacaraima e Boa Vista contam com complexos para abrigar pessoas que chegam da Venezuela. Os abrigos são de passagem, uma vez que boa parte dos imigrantes são interiorizados para outras regiões do país. Quem faz este controle é o governo federal. Algumas pessoas, no entanto, interiorizam por conta própria, já que os trâmites formais têm sido lentos.
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A reportagem solicitou uma visita aos abrigos, mas não recebeu autorização. O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social foi questionado sobre as denúncias feitas pelas entrevistadas, mas não respondeu até a publicação da reportagem.
*As imigrantes entrevistadas pela reportagem pediram para não serem identificadas por medo de represália nos abrigos onde estão acolhidas. Os nomes fictícios são de mulheres que deixaram marcas de luta na história da Venezuela.
*O texto foi atualizado para corrigir a idade de Argelia Laya. A versão original informava que a entrevistada tem 18 anos.
Schirlei Alves | Atua com jornalismo investigativo orientado por dados e sob a perspectiva dos direitos humanos. Formada desde 2008 pela Univali, colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e atuou como repórter nos principais jornais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina
Marcella Semente | Olindense que adotou o Rio para viver. Integra a Gênero e Número a partir de 2023. Atua como pesquisadora e analista de dados com foco em gênero, saúde e direitos reprodutivos, fecundidade, educação e violência.
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