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“Sim” a mão-de-obra, “não” a refugiados: como Europa pretende escolher seus imigrantes

Da Espanha à Alemanha, líderes criam políticas xenófobas e enquanto tentam atrair os trabalhadores necessários à máquina econômica europeia
Sarah Babiker
El Salto
Madri

Tradução:


Nos últimos dias de janeiro, um trending topic surgia recorrentemente na rede social X. As palavras “Estão nos invadindo” remetiam a numerosas contas de extrema-direita que divulgavam imagens de homens não brancos em grande número: embarcações nas quais se acumulavam homens negros, pessoas chegadas às Ilhas Canárias, outras à espera de que fosse analisada sua solicitação de asilo no aeroporto de Barajas, etc.

Dessa forma,  explicitava-se nas redes um imaginário que cada vez alimenta mais as políticas migratórias: dos discursos às diretrizes. No último mês de setembro, em plenas negociações da reforma migratória prometida por Emmanuel Macron (2017-), uma pesquisa mostrava que mais de sete em cada dez franceses consideram que chegam demasiados imigrantes ao país. 

Poucas semanas depois, o chanceler alemão, Olaf Scholz (2021-), afirmava que havia demasiadas pessoas refugiadas na Alemanha. As declarações precediam um endurecimento da legislação de asilo, dando uma guinada na política facilitadora avalizada pela chanceler Angela Merkel (2005-2017), em 2015, ante a chamada “crise de refugiados”.

Naquele momento, houve um aumento da chegada de pessoas solicitantes de asilo como resultado, principalmente, da guerra na Síria, iniciada em 2011. Ao longo destes anos, como mostrava o jornal Financial Times, em um artigo publicado em 20 de dezembro, em que analisava como o alarme sobre a imigração foi levando a Europa para a direita, começou a se difundir o discurso de que a imigração era uma ameaça fora de controle. 

Neste contexto, o desvio para posições ainda mais radicais dos partidos da direita tradicional, a fim de disputar o eleitorado da extrema direita, resultou em mais ocasiões como a perda de votos em favor destes grupos mais ultradireitistas. 

A mídia dá como exemplo o neerlandês Mark Rutte, que dissolveu a coalizão com que governava os Países Baixos devido à negativa de seus aliados de apoiar o endurecimento de políticas migratórias e de asilo. Rutte, líder do Partido Popular pela Liberdade, queria dificultar o reagrupamento familiar de pessoas refugiadas de guerra. Já em 2021, demitia a executiva liderada pelo próprio Rutte, depois de acusar falsamente milhares de imigrantes de beneficiar-se fraudulentamente de ajudas sociais. Nas eleições convocadas para novembro, as teses restritivas de Rutte perderam para o candidato da extrema direita, Weert Wilders, conhecido por propostas como a proibição das mesquitas e do Corão (iniciativas a que teve que renunciar no princípio do ano). Competência para expulsar 

O discurso do descontrole das imigrações não é exclusivo nem das direitas nem da Europa. O próprio líder do Partido Socialista Catalão, Salvador Illa, afirmava em uma revista na mídia digital El Nacional.cat há uma semana: “Aqui, para a Europa, não pode vir todo o mundo: temos que regulamentar a imigração, acolher e integrar”. Embora na entrevista, IIIa dê ênfase à necessidade de integrar e em que a imigração não punha em risco a identidade catalã, Illa, recalcando a necessidade de regulamentar — como se já não existisse uma regulamentação restritiva à entrada de pessoas estrangeiras — aderia a este contexto de “descontrole”, tão útil aos discursos xenófobos. 

O titular de Illa situava-se no debate sobre políticas migratórias que protagonizou durante o mês passado as negociações entre Junts e o PSOE para transferir as competências neste assunto para a Catalunha. Enquanto JxCAT reclamava todas as políticas migratórias, o PSOE insistia em que há algumas que pertencem ao Estado e não podem ser cedidas, como o controle de fronteiras e as expulsões de imigrantes. Justamente, é com base na possibilidade de praticar expulsões que Junts sustentou parte de seu discurso migratório nos últimos meses. Enquanto Junts foi mencionado por abonar as teses xenófobas que ligam imigração e delinquência por parte de várias formações políticas, Vox o acusou de plágio.

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Da Espanha à Alemanha, líderes criam políticas xenófobas e enquanto tentam atrair os trabalhadores necessários à máquina econômica europeia

Foto: Irish Defence Forces / Wikimedia Commons
Serviço Naval Irlandês resgata imigrantes em barco superlotado como parte da Operação Tritão, em junho de 2015

À direita do partido nacionalista, Silvia Orriols, da Aliança Catalã, está disputando o voto de quem considera que as pessoas imigrantes em situação irregular devem ser expulsas. A prefeita de Ripoll, neste sentido, celebrava como um triunfo, no verão passado, a detenção e posterior expulsão de uma pessoa que dormia nas ruas do município. Meses depois, vários prefeitos do Maresme pertencentes ao JxCat demandavam em uma carta conjunta a expulsão de imigrantes multirreincidentes, obtendo o apoio da direção do partido.

Enquanto a formação, liderada por Puigdemont, foi indicada por abonar as teses xenófobas que ligam imigração e delinquência por parte de várias formações políticas, Vox os acusou de plágio. Ignacio Garriga, líder do partido ultradireitista na Catalunha, já reclamava em dezembro que seu partido demandava a expulsão de imigrantes desde antes. 

Frente às narrativas que relacionam multirreincidência e imigrações, o Governo publicou dados que não mostram uma especial relação entre estas duas variáveis. A multirreincidência entre imigrantes seria de 22,2%, ligeiramente acima dos 20,4% entre locais. Assim, enquanto o ERC denuncia os discursos que culpam a imigração pela insegurança, o líder dos Comuns, Joan Mena, pediu ao Junts que deixe de “mensagens racistas”. 

À espera de que seja aprovada a lei orgânica em que seja regulamentada a transferência de competências — o governo já declarava, em 15 de janeiro, que é o Estado o responsável tanto pelo controle de fronteiras como pelas expulsões — o líder do Juntos, Josep Turull, quis negar diversas vezes que seu partido relacione delinquência e imigração – o que se somou ao discurso racista em torno da multirreincidência -, ao mesmo tempo que solicitava uma política migratória catalã porque “está em jogo a nação”. Em uma entrevista à TV3, o secretário geral insistia em que, segundo teria sido negociado com o PSOE, “todas as competências que sejam possíveis, e todas hão de ser possíveis, serão delegadas”. Tenha ou não êxito, o fato de que um partido conservador assuma a agenda política da extrema direita, não é algo exclusivo do Junts; do mesmo modo que em dezembro último Vox reclamava a autoria política das medidas sobre expulsões automáticas defendidas pelos prefeitos do Junts, a líder do Agrupamento Nacional, Marine Le Pen, recebia o texto da Lei de imigração promovida por seu rival Emmanuel Macron como uma vitória ideológica própria. 

Uma lei de imigração inconstitucional O triunfalismo da deputada da Assembleia Nacional e líder veterana da extrema direita francesa tinha fundamento. A lei de imigração francesa, que era uma das promessas eleitorais de Macron nas eleições de maio de 2022, incorporava muitas das propostas da direita enquanto ocasionava um cisma no partido do presidente. Levou um ano e meio para Macron conseguir emplacar um texto que continha um endurecimento do acesso a ajudas e ao reagrupamento familiar ao restabelecimento do delito de imigração irregular. 

Ademais, pela primeira vez, eram incluídas cotas para os imigrantes ou uma fiança sujeita ao retorno para aqueles estrangeiros que vêm ao país para estudar. O texto também dificultava o acesso à nacionalidade e facilitava a expulsão de imigrantes que permanecessem em situação irregular. Em 19 de janeiro passado, o Conselho Constitucional rejeitava mais de um terço das medidas propostas na lei. Trata-se de 35 dos 45 artigos indicados pelos partidos de esquerda, muitos deles correspondentes a emendas introduzidas pela extrema direita na passagem da proposta original pelo Senado. O texto fora rejeitado amplamente também pelas organizações da sociedade civil, que recordavam que negar o acesso às ajudas sociais condenaria milhares de pessoas à pobreza. 

A lei, que será promulgada em breve com os artigos que passaram pelo filtro do Conselho Constitucional — entre os que sobrevive a agilização das expulsões —, envolvia uma clara divisão entre os imigrantes com trabalho e os que se encontram em situação de desemprego, dificultando todo acesso a ajudas para estes últimos, enquanto buscava facilitar a regularização para os trabalhadores de setores econômicos em tensão. Finalmente, a agilização para a regularização neste caso, dista muito das ambições iniciais, restringindo esta possibilidade a situações excepcionais. 

Neste sentido, trabalhadores “sem papéis” filiados à CGT se declaravam em greve no outono passado reclamando a regularização. A central sindical lembrava que são cerca de 900.000 os trabalhadores não regularizados que contribuem com a economia francesa. Sem a mão de obra imigrante, setores como a construção, os cuidados, a ajuda em domicílio e a hotelaria não subsistiriam, afirma. A Lei, tal como ficou, está longe de satisfazer suas demandas. Segundo uma pesquisa realizada em escala europeia, 72% dos empresários consideram as imigrações como benéficas para seu país (frente a 41% da população em geral). Além disso, são os próprios empresários, em muitos casos, que pressionam pela agilização da regularização destes trabalhadores, que exercem postos de trabalho com baixos salários que não conseguem cobrir com a mão de obra nativa. 

Assim, junto à retórica de endurecimento do acesso a ajudas, ou das ameaças de expulsão, as migrações são avaliadas como mão de obra necessária — retomando o que já ocorreu em vários países europeus, como a Itália ou a própria França, durante a pandemia, quando foi oferecida a regularização a “trabalhadores” essenciais como as pessoas dedicadas aos cuidados ou ao trabalho agrícola — em países de população envelhecida. 

Cabe mencionar esforços neste sentido também na Espanha, com a reforma do regulamento da lei de estrangeiros de Jose Luis Escrivá, que propunha facilitar mediante o contrato na origem a chegada de imigrantes para cobrir postos de trabalho de difícil cobertura. 

Assim, enquanto se endurecem os critérios de entrada para as pessoas que decidem vir para a Europa em um contexto de mobilidade humana em contínuo ascenso fruto de guerras, crises econômicas e mudança climática, a Europa quer escolher suas próprias pessoas imigrantes com base em suas necessidades de trabalho. Alemanha abre a mão para pessoal qualificado Berlim implementava em novembro passado um marco normativo similar ao de países como Canadá ou Austrália, na hora de facilitar a chegada de pessoal qualificado. Trata-se de uma migração “escolhida”, em que são captados profissionais necessários provenientes de países terceiros para poder manter a economia do país, que exige mão de obra com formação. Este discurso favorável a esta imigração “boa e necessária”, é acompanhado por um auge de mensagens contra a imigração não desejada, com uma extrema-direita em ascenso que apoia medidas contra a população de origem imigrante que relaciona com a delinquência ou com o terrorismo. 

Assim, o governo anunciava também em novembro o endurecimento das políticas de asilo, reduzindo as ajudas concedidas às pessoas solicitantes de asilo, aumentando o tempo de espera para obtê-lo e agilizando as deportações. A ministra do interior do país, a Social-Democrata Nancy Faeser, unia, por outro lado, relacionando refúgio e terrorismo — segundo os parâmetros alemães —, anunciando que deportaria todo refugiado que apoiasse o Hamas. 

O supostamente progressista governo tricolor, recordando as palavras já citadas de seu Chanceler sobre o excesso de imigrantes, não se afasta muito no discurso do da italiana Giorgia Meloni, uma das mais ativas em estimular a internacionalização da gestão migratória normalizada no Pacto Europeu de Migrações e Asilo (PEMA). Já foi a principal promotora de um acordo com Tunis na mesma época em que vinham à luz as vulnerabilizadões de direitos humanos contra as pessoas imigrantes em seu país. 

Meloni também estimula um novo tipo de externalização na Europa com os dois centros de identificação e detenção que criou na Albânia, em uma estratégia avalizada posteriormente no PEMA, que pretende reter os solicitantes de asilo enquanto se solucionam seus expedientes fora do território europeu, para poderem ser deportados com mais agilidade. 

O discurso de Meloni sobre a crise migratória contribuiu para garantir também um dos blocos do PEMA que permite suspender direitos dos imigrantes ante quadros de “instrumentalização” dos fluxos por parte de terceiros países, ou de chegadas qualificadas como massivas. 

Assim, a União Europeia avança em um modelo que põe infinitas barreiras para aqueles que chegam a seu território expulsos pela violência ou pela falta de possibilidades em seus lugares de origem, ao mesmo tempo que escolhe os trabalhadores de que necessita para manter sua primazia econômica. Enquanto isso, no PEMA se negocia à toda pressa, a fim de chegar antes das eleições para o Parlamento Europeu em junho, quando se espera que a extrema-direita amplie sua presença. 

Sarah Babiker | El Salto
Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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