Qualquer tempestade nos faz aprender. Quanto maior for a tormenta, mais nos ensina. É preciso, porém, estar atento e não confundir ventos tempestuosos com brisa de primavera.
As eleições no dia 2 de outubro, por exemplo, foram uma tempestade disfarçada que muitos nem perceberam, pois o essencial nunca apareceu. Não me refiro sequer aos candidatos a presidente da República que disputarão o segundo turno, mas, sim, ao clima dominante no eleitorado, guiado pela violência ou pela exacerbação, por um lado, e pelo desinteresse, por outro.
Lula da Silva e Jair Bolsonaro, com bravatas e invencionices, em verdade, representam uma sociedade envolvida pela violência. Vivemos numa imensa bolha em que as grandes atrações apelam para a brutalidade e a disputa ou, até mesmo, à propaganda do ódio. Começa nos jogos eletrônicos infantis (que dizemos games, em inglês) nos quais vence quem elimina ou mata mais, levando a matar de verdade na vida adulta. As séries da TV retratam ciladas, traições ou outros delitos e infortúnios como se fossem a normalidade.
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A partir deste quadro comportamental desembocamos nos resultados da eleição de 2 de outubro. Não foram só as pesquisas de intenção de voto que se equivocaram ou erraram rotundamente.
O erro foi não computar o comportamento violento da sociedade de consumo expressado nas invencionices das redes sociais, que nos levam (até inconscientemente) a desprezar o próximo, o outro, ou a tomá-lo como inimigo a exterminar.
As tais redes sociais inventam mentiras, consolidando (como se fosse “normalidade”) aquilo que o ser humano tem de mais baixo e vil. Em 2018, essas redes sociais deram a vitória eleitoral a Jair Bolsonaro e inauguraram no Brasil uma nova forma de propaganda. Agora, em 2022, nem sequer a marcha errática do governo bolsonarista desfez a crença nas tais redes. Ao contrário, no próprio Palácio do Planalto, o “gabinete do ódio” usa as incontáveis repetições automáticas dos robôs para espalhar inverdades ou falsidades.
Neste quadro, em São Paulo, vimos o ex-ministro Ricardo Salles eleger-se deputado federal como o quarto mais votado, como se “passar a boiada” em plena pandemia fosse o novo lema da Bandeira. Ou a reeleição de Eduardo Bolsonaro, com base em armar a população, define a confusão que se apossou do eleitor.
愚木混株 Cdd20 | Pixabay (modificado)
Cada vez a passo mais rápido, o voto deixa de ser uma opção político-ideológica (ou partidária) para transformar-se em algo irrelevante
Pode-se argumentar que, na outra ponta do espectro político, Guilherme Boulos, do PSOL, com mais de 1 milhão de votos, é o deputado federal mais votado no Estado. Mas os votos em Boulos foram, também, de protesto – e duplo protesto, contra os governos do Estado e do País –, contendo, assim, raiva e inconformidade.
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Paradoxalmente, as urnas mostraram também a indiferença dos eleitores na opção pelo voto. No Rio de Janeiro, o atual governador, Cláudio Castro, foi reeleito no primeiro turno, mesmo envolvido em denúncias de corrupção e fraudes em projetos sociais. Lá, o general Eduardo Pazuello, que quando ministro da Saúde comandou a tropa da cloroquina para combater a pandemia, elegeu-se deputado federal, além do autodenominado “bispo” Marcelo Crivella, que anos antes fora afastado da prefeitura por fraudes. Para o Senado, os fluminenses reelegeram Romário, exímio no futebol, mas que, talvez, tenha dificuldade em diferenciar um decreto de uma lei.
Pouco a pouco, mas cada vez a passo mais rápido, o voto deixa de ser uma opção político-ideológica (ou partidária) para transformar-se em algo irrelevante ou em protesto. Em 2018, Lula da Silva, na prisão, foi o grande eleitor de Jair Bolsonaro, que recebeu seu caudal de votos para derrotar o PT. Hoje, em 2022, a posição se inverte e Bolsonaro passa a ser o grande eleitor de Lula no segundo turno para derrotar o atual presidente.
Agora, porém, há um fato novo, jamais ocorrido. O atual presidente e candidato à reeleição pôs em dúvida o sistema eleitoral e afirmou, até, que “se não for eleito no primeiro turno, é porque houve fraude nas urnas eletrônicas”.
Assim, deixou aberta a porta para o chamado “golpe institucional” sugerido por seu partido, o PL. Antes do pleito, sob pressão de Bolsonaro, o partido divulgou documento acusando as urnas eletrônicas de “fraudulentas”, sem apresentar prova nem indício.
O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) interpretou o documento como tentativa de tumultuar as eleições. A interpretação é, porém, apenas uma faceta da tempestade em que as lideranças partidárias transformaram a eleição.
Os grandes temas estiveram ausentes dos debates ou não constaram dos programas dos candidatos. As mudanças climáticas não preocuparam nenhum aspirante a presidente ou a governador, mesmo sendo uma ameaça à vida no planeta. O horário eleitoral na televisão e no rádio transformou-se numa cansativa e monótona sucessão de números.
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Que cada qual, a partir do próprio olhar, complete as lições da tempestade que, num convite ao amplo debate, aqui apenas esbocei.
Flávio Tavares | Jornalista e escritor, Prêmio Jabuti de Literatura 2000 E 2005, Prêmio Apca 2004, é professor aposentado da UnB.
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