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Carlos Russo Jr*
O Conde Leão Tolstói tinha, como ser humano e escritor, o calibre do final do século XIX. Carregava como este os fados épicos de toda uma época grandiosa, apesar de suas sombras, de decadência dos velhos valores burgueses e da rudeza do determinismo cientificista. Época que, entretanto, não teria aceitado muito daquilo que nosso século XXI admite com grande complacência em termos de desprezo pelas ideias e pela dignidade humana.
A segunda metade do século XIX, na Rússia do despótico czarismo, gerou uma estirpe de grandes criadores no campo da musicalidade, do teatro e da literatura, à qual pertenceram os gênios de Tolstói, Dostoievski, Tchekhov, Turguenief e Gorki.
Dentre todos eles, Tolstói foi aquele que maior influência exerceu nas gerações que contestariam o czarismo, o latifúndio rural e que, finalmente, realizariam a primeira Revolução Socialista da História Mundial, em 1917, somente após sete anos da morte do grande autor de obras imortais como a epopeia de Guerra e Paz e de Anna Karenina, quiçá o maior romance social de todos os tempos.
O espírito do grande escritor viveu uma permanente crise de identidade espiritual em que questões sobre o sentido da vida o atormentaram. Após desistir de encontrar respostas na Filosofia, na Teologia e na ciência, deixou-se guiar pelo exemplo de Cristo e dos simples camponeses. O próprio escritor, por volta de 1880, definiu a sua “conversão”.
Essa “conversão espiritual” levou-o a recusar a autoridade de qualquer governo organizado e de toda Igreja. A negar o direito à propriedade privada e pregar o conceito de mudanças sociais pela não-violência. Sua crítica feroz ao intelectualismo estéril marcou presença entre os russos.
O insubmisso, o homem revoltado, é para o escritor, “o homem cristão”, um cristianismo de foro íntimo em que os dogmas e a liturgia da Igreja são abolidos. O Jesus de Tolstói não é mais o Filho de Deus, mas o homem- mártir, aquele que foi exemplar e morreu por seus ideais. Ele vê em Cristo a figura ideal, “o maior homem que a humanidade já produziu”. Considera como o maior dos mandamentos, quiçá o único, o “ama ao próximo como a ti mesmo”.
À medida que amadureciam suas premissas filosóficas, Tolstói também transformava a própria vida. O autor de Guerra e Paz e Anna Karenina abriu mão de seus direitos autorais para tornar seus livros mais acessíveis. Ao mesmo tempo, libertou os servos de suas propriedades antes mesmo da reforma czarista. Foi muito mais além dividindo suas glebas, onde organizou uma cooperativa de camponeses. Reservou para si um pedaço da terra que herdara, o qual lavrou pessoalmente; também abandonou a caça, hábito que adorava, por respeito à natureza e mais tarde se tornou vegetariano, pois comer carne pressupunha “a matança de seres vivos”.
“Os homens somente podem se libertar por meio da educação”. Em decorrência desse princípio, construiu em sua propriedade de Yasnaia Polyana, uma escola destinada aos filhos dos mujiques; contratou professores, tanto para as crianças, quanto para a alfabetização dos adultos.
Fez mais. Distribuiu seu próprio dinheiro aos mais necessitados que acorressem à sua propriedade; ao final de sua vida leiloou até mesmo suas roupas sociais, cujo dinheiro distribuiu aos pobres.
Se por um lado, Tolstói nunca negou apoio a movimentos intelectuais ou populares que contestassem as injustiças sociais, por outro lado, peregrino da resistência pacífica, jamais auxiliou os revolucionários e “regicidas” que utilizavam a violência nos atentados pessoais. Queria um movimento de emancipação realizado pelo povo e para o povo.
Tolstói foi excomungado pela Igreja Ortodoxa russa em 1901 e somente não foi preso pela polícia czarista porque era adorado pelo povo russo e reconhecido em todo o mundo.
Pensamentos sociais de um cristão anarquista-
(As citações que utilizamos foram extraídas basicamente de dois trabalhos do escritor: “Os Anarquistas” e “A Insubmissão”)
“A propriedade é, hoje em dia, a raiz de todo o mal. Ela causa o sofrimento dos que a possuem e dos que não a possuem… O perigo de conflitos entre os que dispõem do supérfluo e os que vivem na pobreza é inevitável. O Estado sempre defende o princípio da propriedade privada.” “Sendo o Estado, na Rússia nos primórdios do século XX, o grande esteio do latifúndio, ele assume a responsabilidade por toda uma injusta organização social; transformou-se num criminoso que estabeleceu um sistema de violências com numerosas malhas, leis, homens da lei, prisões, juízes, policiais, políticos, exércitos”.
O Estado, salienta Tolstói, não se perpetua somente pela força, mas também por uma espécie de encantamento: “Graças a uma organização das mais artificiais, inteiramente forjada em favor do aperfeiçoamento científico e propagandístico, que faz com que os homens estejam sob um encanto do qual não podem se libertar”.
Tolstói define quatro pilares como vigas-mestras desse encantamento:
1. “A Hipnotização do Povo”: é disseminada a opinião segundo a qual o estado atual das coisas é imutável e que deve ser mantido; na realidade, ele só é imutável precisamente por ser mantido. A hipnotização do povo se faz por meio da implantação de várias superstições, sendo a religião e o patriotismo as mais importantes delas.
2. “A Corrupção”: é a ação de retirar a riqueza das classes que trabalham por meio de impostos e taxas, e distribuí-las a funcionários públicos, de forma legal ou ilegal, de tal maneira que eles perpetuem a subjugação do povo. “O homem cristão não deve tentar tirar proveito das instituições do Estado, nem procurar enriquecer sob sua égide ou fazer carreira sob sua proteção”. Somente no anarquista “puro” é possível encontrar o “verdadeiro homem cristão”, dado que ele deve negar e viver fora dessa instituição corruptora, o Estado.
3. “A Intimidação”: representa a ordem dirigente do Estado – quer seja o mais liberal, o republicano ou o despótico- que ameaça com os castigos mais atrozes aqueles que se negam a obedecê-la ou mudá-la.
4. “O Exército”: para Tolstói, a instituição do serviço militar obrigatório constitui um crime de lesa-humanidade, que foi organizada pela primeira vez na história pelo Estado Prussiano, estendendo-se posteriormente a todo mundo. A conscrição militar obrigatória embrutece os jovens mais pobres da população, que serão adestrados através de procedimentos dos mais autoritários e bestializadores. Os conscritos transformam-se, nas mãos do Estado, em instrumentos sem qualquer vontade, prontos a cometer todas as brutalidades e crueldades que seus superiores lhes ordenem.
Eis o círculo da violência formado: a hipnose, a intimidação e a corrupção conduzem os homens a fazerem-se soldados ou policiais. “Os soldados, por sua vez, tornam possível o fato de punir os homens, pilhar os seus bens, corromper os funcionários com esse dinheiro, hipnotizando a massa e fazendo delas novos soldados, que por sua vez fornecerão os meios para cometer todos esses crimes”.
Quando a Rússia entra em guerra pela conquista da Manchúria, ele declara em bom tom que para construir uma sociedade fraterna o homem deveria considerar a guerra, o patriotismo, as nacionalidades, o ódio entre raças e os preconceitos étnicos, assim como a política e o militarismo, a violência e a exploração, como ramos da árvore do mau, portanto, todos como formas de pecado.
Se a terra é um bem comum, ele deve pertencer a todos. Seu ideal econômico é uma espécie de comunismo agrário- anarquista. Para ele, o progresso civilizatório isola os homens uns dos outros e da mãe terra, provocando um processo de degeneração física e espiritual.
Tolstói é um revolucionário que prega um retorno à natureza, a uma vida simples e humilde, onde os homens possuam laços estreitos de fraternidade e paz interior. Na alvorada do século XX, ele foi o primeiro escritor a possuir uma clara visão da necessidade de preservação do meio ambiente.
A revolta dos “lutadores do espírito”-
Em 1895 a Rússia foi agitada pela ação de um grupo de cristãos contestadores denominados “dukhobors”, os “lutadores do espírito”. O grupo negava a propriedade privada, o governo, o Estado, o dinheiro, a Igreja e a Bíblia como fontes de revelação; praticava um estilo de vida comunitário em convívio com a natureza, estritamente democrático e despojado, em que até mesmo o consumo de carne fora banido. Pregava também a paz e recusava-se a servir o Exército.
Logo, alguns de seus líderes foram presos e banidos para a Sibéria. Em protesto contra as prisões, milhares de “dukhobors” queimaram todas as armas de autodefesa que possuíam, proclamando a recusa em participar de qualquer ato de violência. Os cossacos enviados para reprimi-los submeteram-nos a espancamentos por mais de quatro horas. Expulsaram mais de sete mil homens, mulheres e crianças de suas casas, arrasaram suas colheitas e confiscaram suas terras, prendendo ainda outros líderes.
O grande escritor já os apoiava e organizara uma rede de denúncias no exterior; ao tomar conhecimento de que mais de quatrocentas pessoas haviam morrido de frio, fome e sede depois da ação repressora dos cossacos, decidiu dedicar todo o tempo, por meses, a angariar apoio aos perseguidos. Graças a sua influência, seu representante no Canadá logrou convencer esse país a receber como exilados todo o grupo dos “dukhobors”, dando-lhes uma gleba de terra.
Acuado interna e externamente, o Czar recuou e aceitou permitir que mais de duas mil pessoas emigrassem. No entanto, faltava dinheiro não somente para o transporte mas, principalmente, para a instalação e sobrevivência inicial de tanta gente. Tolstói pessoalmente encarregou-se da arrecadação financeira dentre os intelectuais e aristocratas liberais. Decidiu também cobrar direitos autorais de seu último romance, ainda não impresso, “A Ressurreição”. De toda a Europa surgiram editores dispostos a pagar por direitos que o próprio escritor dizia serem “exorbitantes”. Ao final, Tolstói conseguiu que todos os “dukhobors” viajassem e se instalassem nos novos lares.
Aos 82 anos de idade, Tolstói decide abandonar a família e deixar um estilo de vida aristocrático no qual ele não acreditava e levar uma vida simples, sem riquezas, em conformidade com o que pregara quase toda a vida. Tolstói faleceu vítima de pneumonia, instalado no alojamento da estação ferroviária de Astapovo, próximo a Riazan.
O governo russo proibiu que trens especiais trouxessem milhares e milhares de pessoas que desejavam se despedir do grande homem. Isso, entretanto, não impediu que o caixão fosse transportado por mais de três mil camponeses e os restos mortais depositados embaixo de uma árvore, de acordo com seu desejo testamentário, em Yasnaia Polyana. Ainda hoje, um viajante encontrará uma pequena elevação de terra, circundada por uma simples corrente, e uma pequena placa de mármore a assinalar o local de descanso de Liev Tolstói, aquele para quem “todos pensam em mudar o mundo, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo”.
É emocionante ler no diário desse grande homem, a resposta a uma pergunta que ele se faz, quase ao final da existência: “Dize-me, Liev Tolstói, vives segundo os princípios de tua doutrina?” E, logo a seguir, a resposta amargurada: “Não, morro de vergonha. Sou um culpado e mereço o desprezo”.
*Do núcleo de colaboradores de Diálogos do Sul