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Trabalho na Uber é neofeudal, diz estudo. "São empreendedores de si mesmo proletarizados"

A relação entre as empresas que se utilizam de aplicativos para a realização de sua atividade econômica e os motoristas se dá na forma de aliança neofeudal
Marco Weissheimer
Sul 21
Porto Alegre

Tradução:

O Grupo de Estudos “GE Uber”, da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho (Conafret) do Ministério Público do Trabalho, realizou um estudo sobre as novas formas de organização do trabalho relacionadas à atuação por meio de aplicativos. Intitulada Empresas de Transporte, plataformas digitais e a relação de emprego: um estudo do trabalho subordinado sob aplicativos, a pesquisa o modo de funcionamento de empresas de aplicativos, em especial a norte-americana Uber. O estudo define como neofeudal o tipo de trabalho que vem sendo desenvolvido por meio dessas plataformas: 

“A estrutura da relação entre as empresas que se utilizam de aplicativos para a realização de sua atividade econômica e os motoristas se dá na forma de aliança neofeudal, na qual chama os trabalhadores de ‘parceiros’. Por ela, concede-se certa liberdade aos trabalhadores, como ‘você decide a hora e quanto vai trabalhar’, que é imediatamente negada pelo dever de aliança e de cumprimento dos objetivos traçados na programação, que é realizada de forma unilateral pelas empresas”, aponta.

O estudo do “GE Uber” também promoveu um levantamento de ações trabalhistas envolvendo os aplicativos de transporte de passageiros e aponta. decisões já consolidadas em outros países, como Estados Unidos e Inglaterra. Na Inglaterra, por exemplo, a Justiça, em um processo contra a Uber, reconheceu a categoria de “worker” (trabalhador), concedendo vários direitos previstos na legislação e afastando a alegação de ser empresa de tecnologia, que foi apontada como falaciosa.

Um dos coordenadores desse estudo, o Procurador do Trabalho Rodrigo de Lacerda Carelli afirma que, pela primeira vez, no Brasil, um estudo apresenta alguns elementos cruciais para definir esse tipo de relação de emprego. “É possível, sim, que esses trabalhadores sejam considerados como empregados. A legislação brasileira, por incrível que pareça, é avançada neste sentido. Temos um dispositivo que já prevê a presença da subordinação telemática ou algorítmica, por computador ou à distância. Isso já existe em nossa lei”.

A relação entre as empresas que se utilizam de aplicativos para a realização de sua atividade econômica e os motoristas se dá na forma de aliança neofeudal

Foto: Giulia Cassol/Sul21
Rodrigo Carelli: “Espírito de empreendedor que aparece nas propagandas desses aplicativos é fictício”

Rodrigo Carelli, que também é professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apresentou as principais conclusões desse estudo durante o Simpósio “Futuro do Trabalho – Os efeitos da revolução digital na sociedade”, promovido pela Escola Superior do Ministério Público da União, dia 9 de maio, em Porto Alegre. Em entrevista ao Sul21, o Procurador do Trabalho fala sobre essa pesquisa e aponta o caráter fictício de vários elementos da propaganda feita por empresas como a Uber para atrair trabalhadores em todo o mundo:

“O espírito de empreendedor que aparece nas propagandas desses aplicativos é fictício. Em todas essas empresas, algoritmo já calcula quanto as pessoas vão receber por hora. Uma delas calcula que o trabalhador, em condições ótimas, por 44 horas semanais de trabalho, ele vai receber 1,2 salário mínimo”, resume.

“É possível, sim, que esses trabalhadores sejam considerados como empregados”. Foto: Giulia Cassol/Sul21  

Confira a entrevista

Sul21: Quais foram as principais conclusões da pesquisa realizada pelo grupo de estudos do Ministério Público do Trabalho sobre o impacto das plataformas digitais na relação de emprego que vemos hoje em áreas como a do transporte?

Rodrigo Carelli: A ideia de fazer esse livro nasceu de um problema prático. Estávamos recebendo algumas denúncias envolvendo essa questão e não entendíamos muito bem do que se tratava. Formamos então um grupo de estudos, no âmbito do Ministério Público do Trabalho, para tentar entender como funcionam essas novas formas de trabalho que surgem a partir de empresas que se utilizam de aplicativos para organizar essa mão de obra. A partir daí, começamos a entender esse universo e o que está por trás do discurso que se apresenta como sendo meramente tecnológico. Quando terminamos, concluímos que era muito importante divulgar o conhecimento que acumulamos nesse estudo, que é um marco.

Pela primeira vez, no Brasil, um estudo apresenta alguns pontos cruciais da relação de emprego estabelecida nestas plataformas digitais. Já havia alguns estudos antes, mas esse é o primeiro que pretende dar um norte, um rumo para o tratamento dessa questão. E esse rumo é: é possível, sim, que esses trabalhadores sejam considerados como empregados. A legislação brasileira, por incrível que pareça, é avançada neste sentido. Temos um dispositivo que já prevê a presença da subordinação telemática ou algorítmica, por computador ou à distância. Isso já existe em nossa lei. Então, a gente não precisa inventar muito. O que precisamos é conscientizar que essa atualização deve vir para o mundo da Justiça e para a vida das pessoas, de modo a entender que uma empresa que se utiliza de trabalhadores, mesmo que ela esteja por detrás de uma máscara tecnológica, ela é responsável pelos direitos desses trabalhadores.

“Há uma multidão que está aí disponível para ser explorada, para arrumar um trabalho, mesmo sem ter direitos”, diz procurador. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)  

Nós estudamos também como a Justiça de outros lugares do mundo está julgando esses temas. O livro traz decisões tomadas em países como Inglaterra, na Suíça e França que trataram de questões envolvendo esse movimento de deslocar a subordinação tradicional – a de um chefe, capataz ou o próprio empregador dando ordens diretamente – para uma subordinação algorítmica, estabelecida por meio de um instrumento telemático, como um aplicativo de celular por exemplo. Neste caso, as ordens do empregador não são mais dadas diretamente pelo mesmo ou por um preposto qualquer. O preposto passa a ser o aplicativo. Ele é que vai dar as coordenadas e organizar o trabalho dessa mão de obra de uma forma bastante eficiente.

Qual a lógica que está por detrás desse movimento de deslocamento da subordinação tradicional para uma subordinação virtual por meio de coisas como um algoritmo?

Essas novas relações de trabalho trazem embutidas nelas uma nova racionalidade do trabalho, que é a utilização de uma mobilização total dos trabalhadores. Ao invés de você pegar simplesmente uma base de trabalhadores que uma empresa tem e fazer com que ela trabalhe para você, é possível jogar isso para uma multidão de modo que ela execute esse trabalho. Você vai tentar fazer com que eles trabalhem em determinada hora, pode dar uma bonificação para atraí-los a trabalhar naquele horário. Se eles não estiverem de acordo com o que você quer, é possível puni-los também. É o famoso regime de “stick and carrots” (punição e recompensa), uma forma de controle que é muito eficiente hoje em dia.

Há uma multidão que está aí disponível para ser explorada, para arrumar um trabalho, mesmo sem ter direitos. Investem parte do patrimônio que ainda tem em um automóvel, por exemplo, para trabalhar. O que eles não conseguem perceber é que, em verdade, estão financiando essa atividade econômica por um preço baixíssimo. E não tem jeito de “enriquecer” neste trabalho. O espírito de empreendedor que aparece nas propagandas desses aplicativos é fictício. Em todas essas empresas, algoritmo já calcula quanto as pessoas vão receber por hora. Uma delas calcula que o trabalhador, em condições ótimas, por 44 horas semanais de trabalho, ele vai receber 1,2 salário mínimo. O trabalhador pode achar que ele é um empreendedor de si mesmo e quanto mais ele se esforçar, mais ele vai ganhar. Isso é uma ficção. Não vai conseguir, porque tudo isso já está calculado no algoritmo.

Neste processo, a questão tecnológica é apresentada de modo que as pessoas se deslumbrem com ela, achando que é o máximo da modernidade. Isso desloca, inclusive, a questão da crise. Antigamente você xingava seu empregador porque ele não estava pagando um salário decente. Hoje em dia, os trabalhadores reclamam do aplicativo, do sistema. Ergueram uma parede entre o empregador e o trabalhador. O aplicativo consegue invisibilizar o empregador. Além disso, ele dá uma noção de flexibilidade para o trabalhador, com o discurso de que ele poderá trabalhar quando quiser e como quiser. Isso não acontece. Se ele tiver que sobreviver disso, ele vai perceber que serão muitas as horas que terá que trabalhar. Os trabalhadores desses aplicativos estão fazendo cerca de doze horas por dia, sete dias por semana, para conseguir sobreviver, o que nem isso grande parte deles conseguirá.

Por que não conseguirão?

Porque estão se endividando e, provavelmente, quando o instrumento de trabalho deles (o carro) terminar, não conseguirão comprar outro pois já estão endividados. Estamos vivendo diversos problemas aí que precisamos enfrentar. Esses problemas vão aumentar quando se perceber que, quem está financiando a atividade econômica são os trabalhadores.

O problema da segurança, ou da insegurança melhor dizendo, parece estar forçando esses trabalhadores a iniciar algum tipo de organização. Isso ajuda a começar expor o caráter fictício do empreendedorismo individual que anima a propaganda do negócio de aplicativos?

Esse é um fenômeno internacional. No mundo inteiro, esses trabalhadores estão se mobilizando. Em alguns lugares, como na Índia, houve um sério problema de segurança envolvendo estupro de mulheres. Mas não é isso que está provocando essa mobilização em nível internacional. Os trabalhadores estão se mobilizando por conta de direitos e porque começaram a perceber a alta exploração a que estão submetidos. Enxergam uma empresa bilionária a qual estão associados e totalmente proletarizados. São empreendedores de si mesmos proletarizados.

No Brasil há essa questão da segurança. Além de mais segurança, os trabalhadores estão pedindo coisas como o controle das pessoas que utilizam o sistema. Mas os passageiros também têm tido problemas com relatos de assaltos e outros problemas. Essa é uma questão brasileira pois temos uma violência muito grande. Nos países mais desenvolvidos, o que se busca é uma compensação melhor pelo seu trabalho.

Você mencionou antes que já existem elementos na legislação brasileira atual para enquadrar essas situações de trabalho. Por outro lado, para os sindicatos esse é um mundo totalmente novo e adverso, do ponto de vista da possibilidade de organização dos trabalhadores. Como avalia as transformações que esse sistema de plataformas de aplicativos implica para a organização sindical?

Em países como a Inglaterra, os sindicatos tradicionais estão começando a proteger esse tipo de trabalhador. Já conseguiram visualizar nele um igual.

Sindicalizando eles, inclusive?

Sim, sindicalizando esses trabalhadores. Isso já está acontecendo na Inglaterra. Nos Estados Unidos, há um caso famoso em Seattle, onde os trabalhadores quiseram se organizar e abrir um processo de negociação coletiva, mas a empresa Uber foi à Justiça para impedir que os trabalhadores se organizassem coletivamente. Aqui no Brasil esse processo ainda está no começo, mas já é possível perceber algumas associações. Nosso sistema sindical é bastante fechado, só permitindo a filiação de empregados. Essas novas associações que começam a ser criadas podem, com o passar do tempo, se tornarem alguma entidade sindical. O sistema sindical brasileiro deve ser modificado nos próximos anos. Eu acredito que esse é o caminho bastante provável. Esses trabalhadores vão se organizar, vão pedir melhores condições de trabalho e, logo, estarão demandando por direitos, como já vem acontecendo na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos.

No caso brasileiro, essas novas formas de trabalho precarizado e desregulamentado vêm se desenvolvendo em um ambiente de crescente ofensiva contra direitos e contra a legislação que os protege. Instituições como o Ministério Público do Trabalho e a Justiça do Trabalho também são alvo desse ataque. Como está sendo trabalhar neste ambiente?

Nós estamos sofrendo um ataque desde algum tempo já. Não é um ataque novo. Esse ataque ocorreu na década de 90, só que ele não surtiu efeito. Voltaram à carga agora, no meio dessa década, para fazer uma forte reforma do direito do trabalho. E conseguiram. Utilizaram instrumentos e processos altamente questionáveis, mas conseguiram fazer essa reforma e, simplesmente, desmontar grande parte do sistema de proteção trabalhista, em alguns de seus pilares.

O Ministério Público do Trabalho, desde que o projeto da Reforma Trabalhista foi apresentado, sempre foi contrário a ele. Não é que o Ministério Público do Trabalho fosse contrário a qualquer reforma, mas se opôs claramente a esse projeto que desconstrói o sistema de proteção, contrariando a Constituição Federal. Se fosse uma reforma conforme a Constituição brasileira, o Ministério Público defenderia, mas esta reforma que está aí é contrária aos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição.

Em função disso, o Ministério Público do Trabalho vem batendo nesta reforma e demandando várias questões à Justiça do Trabalho envolvendo pontos que contrariam convenções internacionais da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e a Constituição brasileira. Percebemos com bastante preocupação a precarização constante das relações do trabalho no Brasil e a lesão aos direitos fundamentais previstos na Constituição. Isso tem aumentado e estamos acompanhando esse processo com muita preocupação.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Marco Weissheimer

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