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Ricardo Carlos Gaspar*
É sempre útil revisitar a história de um país, não somente pelo aspecto pedagógico que isso representa, mas acima de tudo quando novas ideias venham revigorar um debate sempre oportuno sobre as raízes e a trajetória de um povo. Esse exercício ajuda a esclarecer o presente e iluminar o futuro, fazendo-nos apreciar melhor possibilidades e limites da ação.
Tais singelas reflexões vêm a propósito da leitura de um alentado projeto de interpretação da história brasileira, que se pretende inovador na sua abordagem e original no seu olhar. Trata-se do volume Brasil: uma biografia, publicado pela Companhia das Letras (2015), de autoria de Lilia Schwarcz e Heloísa Starling, respectivamente Professoras Titulares de Antropologia da USP e da UFMG.
Abarcando cinco séculos de história e um total de mais de setecentos páginas, o livro se propõe não exatamente a reconstituir a trajetória brasileira, mas sim “colocar o Brasil na história”, fornecendo uma explicação “não convencional” dos eventos que a conformaram sob múltiplos ângulos de visão. Como numa biografia, explorando seus aspectos exteriores e intimistas, públicos e privados. Desde quando veio a luz, o trabalho vem recebendo positiva aceitação de público e crítica. Nesta breve resenha, remaremos contra a corrente.
Pois, das intenções aos fatos: não fica claro, em nenhum momento do livro, o que viria a ser a distinção entre reconstituição histórica propriamente dita e a abordagem alternativa defendida pelas autoras. Nem, muito menos, qual a diferença que uma interpretação desse gênero propiciaria na compreensão dos eventos históricos de nosso país, ou, numa linguagem “biográfica”, do “personagem” chamado Brasil.
Pois a exposição, a partir do período da independência – que abrange mais de dois terços do texto -, se desenrola numa sequência exaustiva de ocorrências político-administrativas, com algumas pinceladas culturais, no melhor estilo das velhas enciclopédias tão consultadas por aqueles que já passaram de certa idade. Correndo o risco de ser simplista, a publicação consiste numa cronologia minuciosa de fatos e personalidades políticas brasileiras. Útil, sem dúvida, já que nunca é demais relembrar (ou mesmo elucidar) o significado de certos momentos e personagens na história, bem como a sucessão formal dos acontecimentos. Mas muito pouco, pela carência de conteúdo explicativo e novidade analítica, para o que o livro almeja.
Como já enfatizamos, até o período da vinda da família real portuguesa ao Brasil, no início do século XIX, a análise das autoras consegue captar a totalidade do processo colonizador, seguindo a trilha dos clássicos no tema – como Celso Furtado, Caio Prado Júnior, Sergio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, entre muitos outros -, não agregando nada de significativo a essas análises tão ricas de nossa história. A partir daí, no entanto, o empobrecimento da interpretação é significativo. Apesar do cuidado da edição, bem escrita e documentada, a única vantagem de sua leitura é recuperar – ou mesmo conhecer – fatos e personagens históricos já esquecidos ou não bem explicados, o que não é pouco (por exemplo, é interessante comparar os intentos golpistas no final do governo Vargas e nos anos da presidência de Goulart com os movimentos, lemas e argumentos dos agentes desestabilizadores da atualidade). Mas, convenhamos tudo isso é notoriamente insuficiente para propiciar o entendimento cabal dessa complexidade civilizatória chamada Brasil., como, mais uma vez frisamos, se propõe o livro.
Porem, o mais grave e que depõe definitivamente contra a abordagem parcial e convencional de nossa história, desenvolvida em Brasil: uma biografia, consiste na ausência quase completa da economia e do contexto internacional na narrativa desenvolvida pelas autoras. Os eventos são descritos, em pormenores, centrados em suas manifestações fenomênicas, com abundância de datas e detalhes pitorescos. Contudo, as relações econômicas internas e externas que lhes servem de base e justificam, em grande medida, o comportamento dos atores políticos, são simplesmente omitidas, ao longo da investigação de toda a história do Brasil monárquico e republicano. Assim, o longo interregno imperial se desenrola praticamente sem referência às vicissitudes da economia cafeeira, a Revolução de 1930 se explica apenas como reação de grupos internos modernizantes às arbitrariedades da República Velha, o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek surge sem nenhuma referência a reconstrução do capitalismo no pós-guerra, o Golpe Militar em 1964 ocorre à revelia da Guerra Fria, os vínculos entre a década perdida de 1980 e a reestruturação produtiva e financeira global se perdem, apenas para citar exemplos mais evidentes.
Em suma, fatos políticos descontextualizados de seus substratos econômicos internos e externos, bem como abstraídos de seus permanentes vínculos com o cenário externo, o qual interage dinamicamente com as forças nacionais em cooperação ou conflito, constituem uma insanável lacuna que compromete, em forma definitiva, a contribuição que obra dessa envergadura e pretensão poderia proporcionar às novas leituras sobre a realidade brasileira. E à construção, enfim, de uma autêntica “biografia” nacional.
(*) Professor do Departamento de Economia da FEA – PUC-SP, assessor especial da Secretaria do Governo da Prefeitura de São Paulo e colaborador dos Diálogos do Sul.