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Há muita gente que está festejando a história de que a Festa de Alasita já é Patrimônio Mundial declarado pela Unesco. Se tivessem menos preguiça leriam o título completo da declaratória: a Unesco inscreveu na Lista Representativa do Patrimônio Imaterial da Humanidade “os itinerários rituais em La Paz durante a Feira de Alasita”, e não a própria feira.
Por Alfonso Gumucio*
Ou seja, a Unesco reconheceu os pacenhos que, por devoção ou por tradição e costume, percorrem uma Feira de Alasita cada vez menos celebrada. A Comissão do Patrimônio Mundial da Unesco reconheceu nossa ilusão e nosso imaginário de uma festa que estava carregada de simbolismo e de história, e que só permanece incólume na memória daqueles que têm certa idade.
Durante vários anos, o Estado tratou para que a Feira de Alasita fosse considerada um bem patrimonial da humanidade, mas a cada ano era mais difícil conseguir isso e os dossiês apresentados à Comissão da Unesco eram sistematicamente recusados porque a feira já não é o que foi alguma vez. Foi se desnaturalizando até perder aquilo que fazia com que fosse única e surpreendente: o ekeko e as miniaturas. Por isso, o que se conseguiu foi uma vitória pírrica que me entristece mais do que me alegra.
Estive ao meio dia de 24 de janeiro na cerimoniosa inauguração da Feira (o prefeito Luis Revilla, acompanhado do Robespierre de Alasita) com a esperança de encontrar alguma melhora: nada, a mesma decepção dos anos anteriores. Qualquer um pode comprovar percorrendo as barracas onde abundam galos, macacos, sapos, cavalos e elefantes chineses ou da Índia, mas nas quais desapareceu nada menos que o “rei da abundância”, o ekeko, o símbolo mais emblemático da Alasita. Esse homenzinho bigodudo, mestiço, carregado de bens de toda espécie para dar sorte.
De cada dez barracas, talvez uma mostre algum ekeko, muitas vezes aquele que os próprios vendedores usam como adorno, não para vendê-lo. Parece que nesta ocasião obrigaram a que exibissem pelo menos um ekeko em cada barraca, enquanto vendem bichos de pelúcia ou linguiças.
Fiquei muito contente quando vi jogados em um canto um grupo de ekekos bastante bem acabados, mas quando perguntei o preço me jogaram um balde de água fria: “são caros porque os trazemos de Puno, ali os fazem, olhe, bem carregadinho está”. (depois alguém me esclareceu que na verdade os compram em Juliaca, onde se realiza a cada ano a Feira de Alasita como se fosse peruana). Ou seja, não somos nem sequer capazes de fabricar nossos próprios ekekos, quem os fazem são nossos irmãos peruanos. E quando são feitos por artesãos bolivianos, são ekekos pobres, mirrados, magros, com pouco carregamento.
Antes, as pessoas compravam sacos diminutos de arroz, de açúcar ou de macarrão, latinhas de leite Klim, verduras de cerâmica, um colchão para dormir, um teto humilde de gesso. Os desejos eram ter o necessário para alimentar a família e um colchão para dormir.
Eu gostava dos soldadinhos de chumbo, das miniaturas de câmeras fotográficas, das máquinas de escrever, de um caminhão de lata feito pelos presos de São Pedro… Este ano só uma barraca tem soldadinhos de chumbo, e já não estará em 2019 porque a senhora que a manteve durante quatro décadas faleceu há poucos meses. Assim desapareceram os artesãos e a feira se enche de comerciantes que não são capazes de fabricar com suas próprias mãos nada do que vendem. Por isso, em todo lugar só se veem as mesmas coisas, já não há variedade, ou muito pouca.
Agora, as aspirações da nova classe média do processo do bem-viver são outras: uma casa de quatro andares, um caminhão ou jipe 4×4 de luxo. Um hotel inteirinho, Barbies loiras como as loiras tingidas que aparecem na televisão, estilo Gabriela Zapata, a ex-amante do presidente, hoje presa por tráfico de influências… Essa é a classe média que pode chegar a uma imobiliária e pagar com uma maleta cheia de dólares, com um só golpe de magia, três ou quatro apartamentos em um edifício que está sendo lançado, sem sequer vê-los.
O que abunda em toda a feira são notas de dinheiro e é o que compramos os que não temos isso, notas, porque é o mais barato. A grande oferta de notas (sobretudo Dólares, Euros, Bolivianos) pequenas, médias, grandes e gigantes, se explica não apenas porque com maletas cheias dessas notas se pode comprar desde casas até consciências, mas porque é o mais fácil de produzir (não se necessitam artesãos) e a margem de lucro dos comerciantes é de 1 por 1000.
Uma rápida aspersão de álcool com flores amarelas de giesta, folhas de coca e fumaça de copal completa o ritual do meio-dia para dizer-nos que nosso itinerário não foi em vão. Isso é o que reconheceu a Unesco: nossos itinerários de ilusões.
*Colaborador de Diálogos do Sul, de La Paz, Bolívia