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Venezuela: A Constituinte e o “legalismo” oportunista

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, convocou uma Assembleia Nacional Constituinte (ANC). Para alguns este passo tem muito de inteligência como tem muito de risco para o futuro da Venezuela. Isso porque do ponto de vista eleitoral, os golpes da direita interna e internacional ao governo de Maduro foram tendentes a criar um clima adverso a sua gestão e isso, em alguns momentos conjunturais inclina a balança em um processo eleitoral, como aconteceu nas últimas eleições para a integração do Legislativo venezuelano.

Harold Bertot Triana*
Venezuela's President Nicolas Maduro holds a document as he speaks during a ceremony at Miraflores Palace in Caracas, Venezuela May 1, 2017. Miraflores Palace/Handout via REUTERS ATTENTION EDITORS - THIS PICTURE WAS PROVIDED BY A THIRD PARTY. EDITORIAL USE ONLY.
No entanto, a oportunidade que apresenta a convocatória à Assembleia Nacional Constituinte para encaminhar a tensa situação por canais democráticos, é indiscutível. Trata-se de um mecanismo profundamente participativo em que o povo -e aqui vou me permitir incluir chavistas e não chavistas- pode se pronunciar pela nova Constituição que regerá o país nos pontos propostos pela própria iniciativa da convocatória. Mediante este procedimento, os processos políticos na Venezuela, na Bolívia e no Equador, que levaram ao poder a esquerda latino-americana mais progressista, tiveram um momento importante nas constituintes que, entre os anos de 1999 e 2008 permitiram pôr em vigor as Constituições mais avançadas em comparação com boa parte do mundo.
Mas, em uma aproximação inicial, o que é que trata uma constituinte? Por que podemos afirmar que é um mecanismo profundamente democrático? Depois que se concebeu a ideia de uma Constituição escrita como expressão normativa superior da organização estatal, foi iniciada a busca, desde o século XVIII, dos mecanismos para sua reforma ou para deixar sem efeito uma Constituição e colocar outra em vigor. Na ordem teórica e prática, começou-se a perguntar quem e como podia ser reformado total ou parcialmente o texto constitucional, ou quem podia pôr em vigor outro. As perguntas se tornaram sérias porque, no caso da reforma, implicava alterações nas formas de organização e funções do Estado, mudanças nos direitos e garantias das liberdades dos cidadãos, transformações no sistema econômico, político e social imperante. Chegou-se ao convencimento, por muitas razões de índole política, de que o papel de limite ao poder encarnado pela Constituição impedia que os clássicos três poderes del Estado (o Executivo, o Legislativo e o Judiciário) -que são identificados como poderes constituídos- pudessem estar facultados para reformar ou fazer uma novo texto constitucional.
Então, partiu-se de um pressuposto básico: realizar uma nova Constituição corresponde ao povo, único e soberano titular do poder político. Por carecer de instâncias intermediárias e emanar diretamente de sua vontade, falou-se que o povo ostentava um poder constituinte originário. Para os procedimentos de reforma parcial ou total, este poder constituinte originário regularia, em uma Constituição, de que forma se realizariam essas reformas (que no caso da reforma total chega a ter igual alcance de um poder constituinte originário), ou seja, que poder constituído teria poder constituinte constituído.
Mas sobreveio a questão que, da mesma forma que não era possível que todo o povo pudesse governar diretamente – mas sim através dos órgãos do Estado que se constituem -, tampouco todo o povo poderia participar diretamente na elaboração de uma nova Constituição. Por isso a solução foi elaborar a teoria de um  Poder Constituinte, que se distinguisse do resto dos poderes constituídos, e que se encarregaria de elaborar uma Constituição. Deste modo, o povo, como titular desse Poder Constituinte, o exerceria por meio de representantes eleitos, expressa e exclusivamente para esse fim, devendo abster-se de exercer outros poderes diferentes. Tratou-se de um poder que se constituiria, de maneira eventual e com caráter temporário, para fazer a reforma constitucional ou realizar um novo texto constitucional, e uma vez aprovado, desapareceria.
Foi desta maneira que o Poder Constituinte foi recolhido pela maioria das Constituições europeias e latino-americanas que nasceram durante todo o século XX. Assim, a Constituição de 1999 da República Bolivariana da Venezuela, uma das que com maior amplitude reconhece figuras de democracia direta não existente na maioria das Constituições do mundo, estabeleceu em seu artigo 347: “O povo da Venezuela é o depositário do poder constituinte originário. No exercício do referido poder, pode convocar uma Assembleia Nacional Constituinte com o objeto de transformar o Estado, criar um novo ordenamento jurídico e redigir uma nova Constituição”. Por sua parte, o artigo 348 estabelece: “A iniciativa de convocatória à Assembleia Nacional Constituinte poderá ser tomada pelo Presidente ou Presidenta da República em Conselho de Ministros…”.
O maior ataque à convocatória realizada pelo Presidente Maduro, pela oposição política e por alguns constitucionalistas –como o reacionário Allan Brewer Carías-, é que a Constituição não o faculta para isso. Para esses juristas, a convocatória, segundo o artigo 347 só pode ser exercida pelo povo, mediante um referendo, e o presidente só está facultado para promover esta iniciativa solicitando ao Conselho Nacional Eleitoral (CNE) que convoque um referendo para que o povo decida se quer que a Constituinte se realize ou não. Por sua parte, a posição do governo do presidente Maduro tem sido que efetivamente o artigo 348 permite que ele convoque uma Assembleia Nacional Constituinte, sem necessidade de solicitar um referendo.
Os ataques não se limitam a esse ponto e como a Constituição não define como será composta a Assembleia Nacional Constituinte, e ante o anúncio do governo venezuelano de que será integrada por pessoas de âmbitos setoriais e territoriais -para o qual Maduro criou uma comissão com funcionários governamentais, para informar quais serão as regras que regerão o processo, bem como a seleção dos integrantes e o tempo de duração-, as críticas se dirigem a assinalar uma possível violação do princípio da universalidade do voto e o caráter partidário que poderiam ter os conselhos comunais, o que permitiria agrupar seguidores oficialistas para a continuidade do governo de Maduro.
Embora do ponto de vista jurídico qualquer dessas posições requeira inevitavelmente um melhor desenvolvimento argumentativo e interpretações de jurisprudência as mais objetivas possíveis -se podemos dizer assim-, se está querendo passar por alto, nessas embrulhadas “leguleicas”, a verdadeira essência do problema: a direita venezuelana crê que chegou seu momento e não vai dar apoio a qualquer iniciativa do presidente Maduro para resolver a tensa situação do país, que eles mesmos geraram com os fatos violentos. Há meses a direita advogava pela Assembleia Constituinte e hoje busca, no melhor dos casos, as argumentações jurídicas para desconhecê-la; em outro momento desconheceram a Constituição de 1999, e hoje chamam a “defender a Constituição de Chávez”.
Por isso eu resisto a que todo este processo vivido pela Venezuela seja analisado abstratamente. Nesses últimos dias tenho insistido com vários colegas que no cenário venezuelano seria um ato equivocado, pelo menos, apelar a argumentos ou análises “puramente” jurídicas para apontar culpados ou julgar decisões jurídicas polêmicas quando está em jogo o futuro do processo político. E sempre recalco que em matéria constitucional não há nada “puramente jurídico”, pois inevitavelmente as interpretações constitucionais levam em suas conclusões uma forte carga política: mencionemos, apenas para ilustrar, as diferentes posições ideológicas do que podemos entender por “democracia”, por “violação de direitos humanos”, que são alguns dos conceitos que dão conteúdo a qualquer texto constitucional.
Com isso, em nenhum caso, chamo a desconhecer o aspecto jurídico na análise da situação convulsa da Venezuela -isso seria incompatível até com os ideais da profissão que exerço-, mas sim compreender que na Venezuela se dá uma luta de classes de forma encarniçada, onde a direita jamais respeitou as regras do jogo democrático. A maioria dos que hoje rasgam as vestes para julgar juridicamente as atuações do governo de Maduro, parecem esquecer, hipócrita e lamentavelmente, o grande “espírito democrático” que tem animado esta direita desde o triunfo de Chávez em 1999: golpes de Estado, sabotagens, guerra econômica, cumplicidade para o assassinato de líderes políticos, instigação à violência, desconhecimento da ordem constitucional e das vitórias eleitorais do chavismo, etc. Para a oposição qualquer coisa sempre tem sido possível e em nome da “democracia” se tem permitido que fizesse tudo. Como permitir agora que tire a poeira de um espírito “leguleio” de protetora do “Estado de Direito e da democracia”, para julgar esse passo do presidente Maduro para uma Assembleia Constituinte e, em outro momento, as decisões da Sala Constitucional do Tribunal Supremo da Venezuela?
A grande confabulação da direita internacional e especialmente da direita latino-americana com a OEA como instrumento, -à que se uniram aqueles governos na região etiquetados de “centro-esquerda” – é verdadeiramente lamentável.
Alinharam-se com uma direita venezuelana que, há um bom tempo apostou em servir de agente catalisador do “golpe brando” desenhado pelas mentes do império norte-americano. A esquerda hoje no mundo não deve se confundir: na Venezuela a direita não quer solução política, quer um golpe de Estado.
 
*Professor do Centro de Estudos Hemisférico e sobre Estados Unidos – Original de La Jiribilla http://lajiribilla.cu/articulo/la-constituyente-y-el-legalismo-oportunista


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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