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ToggleLembra como foi o dia 6 de janeiro? O choque, a confusão e o medo. A constante atualização da página do Twitter ou olhos grudados nas notícias na televisão, vendo um bando de extremistas tentando derrubar o governo. A sensação de não saber o que iria acontecer a seguir e se isso afetaria o nosso dia a dia.
Para os venezuelanos, não há somente um 6 de janeiro. Há pelo menos meia dúzia. Uma data equivalente poderia ser 23 de janeiro de 2019, quando Juan Guaidó – uma figura de oposição pouco conhecida que apenas algumas semanas antes tinha sido apontado como presidente da Assembleia Nacional aparentemente do nada – se declarou como “presidente interino” do país com apoio dos EUA.
Ou poderia ser 23 de fevereiro de 2019, quando extremistas venezuelanos, operando da Colômbia, tentaram passar “ajuda humanitária” pela fronteira (a ajuda incluía equipamentos de choque para oponentes do governo, e depois queimaram os próprios caminhões para destruir as evidências).
Ou talvez 7 de março de 2019, quando ocorreu um apagão nacional por uma semana, supostamente como uma operação secreta que incluiu um ataque cibernético à barragem hidrelétrica mais importante do país. Ou 30 de abril de 2019, quando Guaidó tentou uma revolta militar (ele e mais ou menos uma dúzia de soldados conseguiram apenas segurar um viaduto em uma estrada por algumas horas). Ou em 1º de abril de 2020, quando a administração de Trump movimentou navios de guerra perto das águas venezuelanas. Ou 3 de maio de 2020, quando mercenários tentaram se infiltrar no país para sequestrar o presidente Nicolás Maduro (uma operação provavelmente autorizada por Guaidó).
Reprodução: Winkiemedia
Reprodução: Winkiemedia
Tentativas de mudar o regime na Venezuela não começaram com a administração de Trump, mas elas certamente foram intensificadas durante o seu turno. Empregando uma “campanha de pressão máxima”, o antigo presidente tentou empoderar uma facção extremista da oposição do país enquanto destruía a economia com sanções.
Essa estratégia era simples: pressionar o governo Maduro de todas as formas possíveis (inclusive com ameaças de guerra), levar cidadãos comuns ao desespero, para que eles ou os militares começassem uma insurreição, e estabelecer um governo paralelo pronto para intervir após o golpe.
Essa abordagem falhou tão espetacularmente que o Senador Chris Murphy a chamou de “um estudo de caso em péssimas práticas de relações internacionais. O “presidente interino” apontado pelos EUA, Juan Guaidó, agora tem uma taxa de reprovação de 88%. Os venezuelanos estão fartos de toda essa tribulação: 82% opõem as sanções e 83% rejeitam a intervenção militar.
Embora a administração Biden tenha descartado uma invasão, os venezuelanos se sentem sitiados da mesma maneira. Angel Prado, um líder de base e porta-voz do El Maizal, uma das mais de 3.200 comunas ou comunidades autônomas na Venezuela, lamenta o preço humano e econômico da política americana.
“É como uma guerra… a primeira bomba ainda não caiu aqui – embora um drone quase explodiu na cara do presidente [Maduro] – é um tipo diferente de guerra, mas ainda é uma guerra que nos afeta,” disse Prado. (A explosão referenciada por ele foi uma tentativa de assassinato do presidente Maduro e de quase todo o seu gabinete através de drones carregados com explosivos C-4 – outro 6 de janeiro em potencial.) Chamar de guerra pode soar como um exagero para os americanos, mas mesmo um exame superficial dos eventos recentes na Venezuela confirma sua assertiva.
Agressão americana à Venezuela 2013-2020
É impossível entender o que está acontecendo na Venezuela sem uma imagem clara de como os Estados Unidos têm sido envolvidos na mudança de regime. O governo Bush apoiou de forma infame um golpe contra o então presidente Hugo Chávez em 2002 – um golpe que durou 48 horas antes que milhares de pessoas saíssem às ruas para exigir, e ganhar, a reinstauração do governo Chávez.
Mais recentemente, os senadores Bob Menendez e Marco Rubio têm liderado o esforço bipartidário para derrubar o governo venezuelano desde março de 2013, quando o presidente Hugo Chávez morreu. Ele tinha ganhado facilmente uma eleição presidencial no final de 2012, vencendo seu oponente por onze pontos percentuais. Dois meses após sua morte, Nicolás Maduro, um ex-vice-presidente e ministro das Relações Exteriores, venceu por um triz, um ponto e meio, esse mesmo adversário. Rubio, Menendez, seus aliados no lobby de Cuba e no Departamento de Estado perceberam a vulnerabilidade. O Secretário de Estado John Kerry inicialmente recusou-se a reconhecer o resultado das eleições, prenunciando uma tática que a administração Trump usaria repetidamente.
Em 2014, o Congresso aprovou uma lei, patrocinada por Menendez e Rubio, apelando à Casa Branca para sancionar a Venezuela. Em 2015, o presidente Obama declarou emergência nacional nos Estados Unidos, argumentando que a Venezuela era uma “ameaça incomum e extraordinária”.
Em 2017, a administração Trump colocou na mesa a opção militar e sancionou a PDVSA, a empresa estatal de petróleo. A sanção acabou sendo uma sentença de morte para milhares de venezuelanos.
A sanção e ameaça ocorreram dois meses antes das eleições para governador em todo o país, que a oposição venezuelana tinha grandes esperanças de vencer. As suas pesquisas de opinião mostravam que venceriam em 18 dos 23 estados, e os líderes da oposição clamaram que as eleições deveriam ser interpretadas como um referendo sobre o presidente Maduro. Seu partido socialista acabou vencendo em 19 estados; não houve reclamações críveis de fraude.
Essas eleições merecem destaque por serem as últimas com participação plena da oposição. Após o constrangimento das eleições para governador, uma facção importante decidiu que um caminho democrático para o poder era inalcançável. Desde então, esta facção boicotou uma eleição presidencial em 2018 para preparar o terreno para janeiro de 2019, quando um legislador pouco conhecido, Juan Guaidó, foi nomeado presidente da Assembleia Nacional e se declarou “presidente interino” do país com o apoio dos EUA. Então, em 2020, esta facção boicotou as eleições legislativas porque não queria correr o risco de perder a presidência da legislatura, o que teria desferido um golpe fatal em todo o seu argumento a favor de uma presidência interina.
Os boicotes foram conduzidos em coordenação com a administração de Trump, que denunciou ambas as eleições como fraudulentas antes mesmo de serem realizadas. A administração de Biden continua com a política de Trump de se recusar a reconhecer os resultados.
A administração de Trump ainda foi além da interferência eleitoral evidente. Ela também sabotou duas tentativas promissoras de encontrar uma solução política para as múltiplas crises na Venezuela. A primeira vez aconteceu no início de 2018. Depois de meses de negociações na República Dominicana produzirem um esboço de acordo, os negociadores voltaram à Venezuela para consulta final. Nesse ínterim, o Departamento de Estado ameaçou um embargo do petróleo, insinuando que os EUA receberiam bem um golpe militar e disse que não reconheceria as próximas eleições – as mesmas ainda em negociação.
A segunda vez foi em agosto de 2019, quando Trump impôs o que o Wall Street Journal caracterizou como um “embargo econômico total” e disse que “o tempo para o diálogo acabou”. Com essa deixa, a facção da oposição deixou a mesa de negociações.
Guerra econômica contra a Venezuela
Ao longo dos últimos quatro anos, os Estados Unidos impuseram mais de 150 sanções à Venezuela. Isso inclui amplas sanções econômicas, como a capacidade da Venezuela de emitir títulos, suas indústrias de petróleo e ouro e até mesmo sua criptomoeda recém-lançada, a Petro. A maioria das sanções são a indivíduos, empresas, até navios e aviões. Eles aumentam o custo para fazer negócios: os prêmios de seguro sobem, as classificações de risco pioram, as taxas de juros sobem, entre outros aumentos de custos. Além disso, empresas, incluindo instituições financeiras, pararam de fazer negócios com a Venezuela por medo de serem sancionadas.
Ademais, há bilhões de dólares de fundos venezuelanos que estão congelados no exterior, sem acesso nem mesmo para suprimentos humanitários. Isso inclui 34 toneladas de ouro em poder do Banco da Inglaterra, que recusou um pedido do governo venezuelano de liberá-lo para as Nações Unidas, que venderiam o ouro para comprar alimentos e remédios para o povo venezuelano. O Banco – que afirma ser independente do governo britânico – diz que não pode liberar o ouro para o governo de Maduro porque o Reino Unido reconhece Juan Guaidó.
Para não ser superado pelos britânicos, a administração de Trump cometeu pirataria em alto mar. Em agosto de 2020, navios da marinha americana apreendeu um navio-tanque transportando combustível comprado pela Venezuela do Irã. Então, o combustível foi vendido no mercado aberto por $40 milhões, o dinheiro foi para um fundo americano para vítimas de terrorismo patrocinado pelos EUA , nenhuma delas era venezuelana. Essa não foi a primeira vez que os EUA gastaram fundos venezuelanos com despesas completamente não relacionadas. Em junho de 2020, foi reportado que a administração de Trump usou $601 milhões em bens apreendidos de empresas venezuelanas supostamente corruptas nos EUA para ajudar a pagar o seu muro na fronteira com o México.
O ato de pirataria levanta questões sobre porque a Venezuela, o país com as maiores reservas de petróleo do mundo, precisaria comprar combustível. A resposta é simples: as sanções devastaram a indústria de petróleo e a capacidade do país de refinar o petróleo e transformá-lo em gasolina. Em agosto de 2017, a administração de Trump emitiu uma ordem executiva mirando na PDVSA, a empresa estatal de petróleo. Este decreto impediu a empresa de reestruturar suas dívidas e de repatriar os lucros da Citgo, sua subsidiária nos EUA. Por fim, as sanções acabaram impedindo a importação de peças de reposição para manutenção e de aditivos químicos necessários para transformar óleo em gasolina e diesel.
Citgo, que já foi considerada a menina dos olhos dos ativos da PDVSA no exterior, agora está prestes a ser desmantelada e vendida aos credores da Venezuela. Antes das sanções, a Venezuela pagava suas dívidas em dia ou, pelo menos, chegava a um acordo com os credores. Porém, agora as sanções proíbem o reembolso a esses credores, e uma decisão judicial americana permitiu que a Crystallex, uma empresa canadense de mineração de ouro, cobrasse a dívida com a venda de peças da Citgo. Antecipando que a Venezuela poderia procurar vender a Citgo para evitar exatamente esse cenário, os senadores Rubio e Menendez pressionaram o governo Trump para impedir essa venda, o que ele logo fez.
A agressão econômica dos Estados Unidos contribuiu significativamente para que as receitas do governo caíssem de $ 56,6 bilhões de dólares por ano em 2013 para $ 477 milhões de dólares em 2020 – uma queda de 99%. O economista venezuelano Pasqualina Curcio estima que a guerra econômica custou à Venezuela $194 bilhões de dólares .
Embora o verdadeiro custo econômico possa ser debatido, o fato de as sanções terem causado graves danos à economia deve ser considerado como fato. Até as instituições governamentais americanas concordam neste ponto. Em fevereiro de 2021, uma investigação pelo Government Accountability Office descobriu que a economia venezuelana “caiu drasticamente desde a imposição das sanções dos EUA.
Sanções são tão fatais quanto a pandemia
Seria difícil para as pessoas nos Estados Unidos entenderem o impacto emocional causado por uma economia revirada se não estivéssemos vivendo uma pandemia que revirou tudo. As sanções venezuelanas são como uma pandemia que vem acontecendo por sete anos.
A queda vertiginosa da receita do governo, as dificuldades na importação de alimentos, remédios e outros suprimentos essenciais e o aumento do custo de vida têm um efeito profundo sobre os venezuelanos comuns.
“Encontrar comida, encontrar remédios, é muito difícil viver, encontrar gás, encontrar fontes de sustento – isso coloca muita pressão nas pessoas”, disse Lorena Giménez, da organização feminista de direitos humanos Género con Clase (Gênero com Classe). Ela explica como as mulheres suportaram o impacto das sanções, que afetaram até a disponibilidade e o custo dos anticoncepcionais. Sua organização comissionou uma pesquisa no ano passado que descobriu que as sanções causam “violência psicológica” e afetam seus direitos humanos.
As sanções devem ser vistas como uma violação massiva dos direitos humanos. A Relatora Especial das Nações Unidas, Alena Douhan disse isso após uma missão de investigação à Venezuela em fevereiro:
“A Relatora Especial observa com preocupação que as sanções setoriais sobre as indústrias de petróleo, ouro e mineração, o bloqueio econômico da Venezuela e o congelamento dos ativos do Banco Central agravaram a situação econômica e humanitária pré-existente, impedindo a obtenção de receitas e o uso de recursos para desenvolver e manter a infraestrutura e programas de apoio social, o que têm um efeito devastador sobre toda a população da Venezuela, especialmente aqueles em extrema pobreza, mulheres, crianças, trabalhadores médicos, pessoas com deficiência ou doenças crônicas ou potencialmente fatais, e o população indígena.” (ênfase adicionada)
Douhan também expôs que as sanções, a declaração do governo Obama de uma emergência nacional e a campanha de pressão máxima do governo Trump violam o direito internacional, incluindo a Carta da ONU e outros tratados assinados pelos EUA.
Um relatório de 2019 do Centre for Economic and Policy Research (CEPR) argumentou que “as sanções se encaixariam na definição de punição coletiva da população civil, conforme descrito nas convenções internacionais de Genebra e Haia, das quais os EUA são signatários.” Punição coletiva é o termo correto, já que todas as pessoas na Venezuela são afetadas pelas sanções dos EUA.
O mais preocupante da análise do CEPR foi a conclusão de que as sanções causaram mais de 40.000 mortes em 2017-2018. Em março de 2020, um ex-Relator Especial da ONU, Alfred de Zayas, estimou que as sanções mataram 100.000 pessoas . É assassinato em massa através do estrangulamento econômico.
Resiliência
“Apesar da situação econômica e do bloqueio que temos no país, somos um povo que constrói, muito otimista e muito esperançoso no que estamos fazendo”, enfatizou Prado. Essa resiliência transparece em conversas com venezuelanos como Prado e Giménez. Diante da crueldade da política dos EUA, essas não são pessoas que estão se desesperando.
Eles, como qualquer outro venezuelano, experimentam visceralmente os impactos das sanções diariamente, mas estão empenhados em encontrar soluções. Prado fala em preservar a soberania e independência do país, em garantir “a felicidade suprema para nosso povo”. Ele observa como a comuna El Maizal foi forçada a mudar para a agricultura orgânica, pois se tornou impossível importar pesticidas e fertilizantes químicos. A comuna também iniciou cooperação técnica com movimentos camponeses da América Latina.
“Não estamos preparados para resolver tudo, o bloqueio nos afeta. Embora tenha despertado em nós um nível de criatividade, de inventar coisas, sempre vai nos afetar”, disse Prado. No entanto, ele advertiu que a criatividade só pode ir até certo ponto. Sua maior preocupação atualmente é a escassez de óleo diesel, justamente quando o período de plantio está para começar. Três milhões de litros de leite e 20 toneladas de alimentos estão sendo perdidos todas as semanas, estragando em fazendas e armazéns sem poder ser entregues aos consumidores.
A administração de Trump deu um golpe final nos venezuelanos ao proibir as trocas de diesel em outubro de 2020. Por meio dessas trocas, a PDVSA, a empresa estatal de petróleo, conseguia fornecer petróleo bruto a empresas estrangeiras em troca de óleo diesel. As reservas de diesel do país começaram a chegar ao seu limite em janeiro. O diesel é necessário para a agricultura, geradores de energia hospitalares, assim como para a distribuição de alimentos, remédios e outros bens necessários. A administração de Biden ainda não deu nenhuma indicação de que levantará esta – ou qualquer outra – sanção.
Traduzido do inglês para o português por Carolina Coutinho Moreno Santos / Revisado por Tamyres Andrade
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