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Paulo Cannabrava Filho*
Foi-se Chávez na mais previsível das mortes anunciadas. Ninguém duvida de que lutou tão bravamente pela vida como, com a fé dos justos, lutou pela libertação de seu país e pela integração latino-americana.
Conheci a Venezuela quando até um ovo ou uma alface comprada numa quitanda ou supermercado tinha o selo “made in USA”. Conheci a Venezuela do requinte dos hotéis e dos bairros de luxo, com o sol refletindo nos viadutos de concreto, da universidade formando quadros de excelência para perpetuar o status quo. Venezuela de uma “civilização branca” metida a estadunidense, muitos com dupla nacionalidade, nos bares em que só se serve “blue label”.
De repente, a outra Venezuela que eu não conhecia, desceu dos morros, saiu das periferias, ergueu a voz e disse basta. O violento grito dos excluídos gerou o “Caracazo” que derrubou o governo elitista, excludente, autoritário e repressor de Pérez Jimenez. Impôs-se um período de certa tranquilidade social e política, contudo logo suplantado pela restauração do poder oligárquico, agora já em tempos neoliberais.
O petróleo, abundante, com mercado cativo (14% das importações de óleo dos EUA), a grande riqueza a sustentar esse sistema e alargar a brecha entre os mais ricos e a maioria da população. Apesar de ter sido estatizado nas décadas de 1960/70, o petróleo foi praticamente apropriado por uma máfia gananciosa e predadora. Para os apoiadores da máfia tudo, para a população, pobreza e repressão.
A Venezuela da máfia petroleira passou a ser mais excludente que a dos oligarcas e dos adecos (do partido Ação Democrática). Situação insustentável provocou o que poderíamos chamar de “segundo caracazo”. O povo nas ruas acabou com a farra de Andrés Pérez. E esse povo decidiu que não mais se calaria nem deporia as armas.
O “fenômeno” de Chávez ocorre porque ele, simplesmente, entrou no coro do grito dos excluídos e assumiu a responsabilidade como líder.
Conheci a Venezuela dos excluídos indignados e sublevados. A Venezuela das outras cidades, de povo de pele escura, que bebe anis e rum fazendo música nas calçadas, bem diferente da reluzente Caracas dos branquinhos que bebem uísque de 200 dólares. Nessas outras cidades a gente se dá conta do por que Chávez foi eleito, reeleito e, mesmo morto continuará sendo a principal força eleitoral e elegerá Maduro para sucedê-lo.
Conheci a Venezuela Bolivariana, semeada de canteiros de obras por toda parte: infraestrutura, indústria de base, mineração, refinarias, projetos agrícola, construção de hospitais, de clínicas básicas, vivendas populares, pontes e viadutos, milhares de escolas, dezenas de novas universidades. Venezuela sem analfabetos y com universidades acessíveis para todos.
Uma Venezuela que os grandes meios de comunicação não mostram pois se o fizessem derrubariam os argumentos com que diariamente desqualificam o processo, desmentiria as afirmações de que a Venezuela Bolivariana é um fracasso resultado da incompetência de seus líderes. Venezuela que caminha para o pleno emprego, certamente não é um fracasso.
Essa Venezuela que quer ser polo de integração latino-americana, que quer se integrar ao Brasil, ao Mercosul e à Unasul, é imprescindível tanto para a realização de um projeto nacional brasileiro como para o projeto maior de integração de uma América Nossa, do Pacífico ao Atlântico, do Caribe à Antártica. Esse é o futuro glorioso que podemos e devemos construir e que terá a objeção ferrenha do Império. Vencer esse obstáculo, eis o grande desafio da atualidade.
Em oito eleições anteriores, realizadas sob os olhares fiscalizadores de agentes de todo o mundo, Chávez obteve votação consagradora. O Império e as forças conservadoras da América Latina tentaram por todos os meios minar essa liderança. Dinheiro a fundo perdido para candidatos de oposição inventados por eles; guerra psicossocial através dos meios de comunicação e das redes virtuais; presença massiva de agentes dos órgãos de inteligência estadunidenses, franceses, israelenses, britânicos.
Com inteligência superior a de seus inimigos Chávez assegurou continuidade à Revolução Bolivariana através de eleições proporcionais e diretas, método utilizado como paradigma pelo Império para definir se é democrático ou não um sistema de governo. Até mesmo a TV Globo, normalmente porta-voz das mais rançosos conservadores defensores do status quo de submissão ao Império, teve que admitir, durante as exéquias, que Chávez se manteve no poder democraticamente.
Afirmar outra coisa seria admitir que o processo eleitoral que para eles define democracia já está fora de uso. Democracia, para eles, só existe com eleições por eles definidas como democráticas. Qualquer outro modelo que não conduza a manutenção da hegemonia pró-imperial é logo taxada de comunista, populista, ditatorial, fraudulenta.
Sai Chávez, entra Maduro. O que muda?
Teórica e politicamente nada deveria mudar. De acordo com a Constituição o vice-presidente assume. Em 30 dias haverá eleição e Maduro, já ungido sucessor, será eleito e o processo bolivariano seguirá seu curso.
Deveria ser assim e, será assim enquanto dure a emoção social das exéquias do líder. Não tardará muito para que oligarcas frustrados, executivos vendidos, intelectuais servis e proprietários de jornais subalternos reiniciem o processo conspiratório de desestabilização do processo transformador. Esse círculo vicioso ainda será paradigma do desenvolvimento em Nossa América e só se transformará em círculo virtuoso pela ação das massas e lideranças livres da servidão intelectual.
*jornalista brasileiro editor de Diálogos do Sul