Dentre as várias imagens que podem traduzir esse momento tão complexo da realidade brasileira, uma que tem sido recorrente é de “algo em suspensão”. Como se pudéssemos ver uma nuvem pairando acima dos acontecimentos do dia a dia, e que tudo permeia e que não se sabe muito bem como irá se dissipar.
Tal imagem é metáfora para muitas coisas. Talvez, a mais direta seja mesmo o vírus invisível que se instala nos corpos e tem consequências devastadoras e mortais para significativa parte deles, sobrecarregando os sistemas público e privado de saúde. Mas essa abordagem já está sendo amplamente abordada pela mídia e, por isso, escolho trabalhar nesse texto a imagem de suspensão aplicada ao nosso contexto político.
Mas o que está suspenso? O que é esse mal-estar que quase podemos tocar, que quase se materializa sobre nossas cabeças? Embora seja difícil nomear, sabemos que esse “algo” em suspensão tem a ver com nossa liberdade, com saúde do nosso corpo e mente, com a sanidade do nosso coletivo, nosso corpo social. Ele tem a ver com nossos direitos, com a possibilidade de estarmos amparados em sintonia com a ciência, com os saberes ancestrais, em harmonia com o meio ambiente, entre outros aspectos.
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O que é esse mal-estar que quase podemos tocar, que quase se materializa sobre nossas cabeças?
Mas a cada dia que passa vemos um governo federal cada vez mais delirante e absurdamente incompetente ao lidar com as necessidades brasileiras mais impositivas do momento, ou seja, o enfrentamento da pandemia que afeta o mundo de forma geral – política, social e economicamente falando. Delirante porque insiste em teorias de conspirações “comunistas” de dominação, além de se afastar dos ritos básicos da república e de um mínimo de pretensão democrática. E é justamente esse delírio que determina a absurda incompetência nunca antes vista na história do período pretensamente democrático, no pós-ditadura.
Sim, pretensamente democrático, porque nunca vivemos plenamente uma democracia tal como está descrita na nossa constituição. Fosse assim, a educação pública de qualidade seria garantida a todas as pessoas, desde o ensino básico, por exemplo. E se você ainda acredita em democracia plena, pergunte a uma pessoa negra moradora de periferia de uma grande cidade sobre seu direito de ir e vir, sobre seu direito à vida. Você verá que pra muitos dos filhos a pátria “amada” não é amável, não. E democracia plena ou é pra todas, todos e todes, ou não é.
E o que está em suspenso é justamente o caminho da vontade democrática plena, que agora não faz mais parte do discurso político, nem como pretensão. É esse horizonte da constituição garantidora de direitos que vai se suspendendo pouco a pouco, a cada fala absurda e impune do homem que ocupa a presidência. “Eu sou a constituição”, até isso ele disse. É esse distanciamento progressivo do caminho democrático que vai permeando tudo, vai suspendendo qualquer perspectiva de futuro, de forma tão incisiva que quase podemos tocar. Isso que está em suspenso parece poder escapar em um segundo.
Veremos o futuro repetir o passado tal como a letra de Cazuza nos alertou? Talvez não uma repetição como nossa mente é condicionada a pensar, com as mesmas estratégias e histórias similares. Por isso, sim, precisamos desentorpecer o que resta de qualquer sentimento de coletividade que exista em nós – individual e institucionalmente, para evitar que a distância do caminho da vontade democrática se torne tão grande que a gente não consiga mais voltar pra ele. E precisamos sair do torpor com urgência: o tempo não para.
Os fatos (não as opiniões ou ideias) mostram que os dados ainda estão rolando, mas quem está distribuindo as cartas são os ratos. É preciso desinfetar.
Verônica Lima, colaboradora da Diálogos do Sul
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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