Conteúdo da página
ToggleJamais um romance semiautobiográfico, escrito por Ferdinand Cèline, traçou de uma maneira tão forte e contundente as bases psíquicas e comportamentais de um nazifascista em sua formação. “Viagem ao fim da noite” é, entretanto, de uma maneira contundente, uma obra de arte de uma inesquecível crueza, denunciando com virulência o sofrimento do viver e a fragilidade da condição humana.
Sem se dar conta ainda do brotar da semente nazifascista no autorretrato de seu autor, o revolucionário Trotski comentou: “Viagem ao fim da noite, romance do pessimismo, foi ditado pelo horror diante da vida e pelo cansaço que ela provoca. Toda revolta ativa é ligada à esperança. Em Céline não há esperança.” Talvez Trotski, em 1933, não tenha ainda percebido que a revolta vazia de esperança, o niilismo absoluto, é uma porta aberta ao fascismo.
O livro quando lançado na França em 1932, alcançou a marca de 100 mil exemplares vendidos; a esquerda chegou a aplaudi-lo e Stalin o adotou como seu livro de cabeceira!
Aquele fora um momento literário da França marcado por dois extremos em obras semiautobiográfica: de um lado, Proust e o personagem “Marcel” com sua delicadeza, elegância, harmonia; de outro, Céline e seu personagem “Ferdinand Bardamu”, com seu palavreado vulgar, gírias e palavrões que até nos dias de hoje podem nos constranger.
Cèline sugere um Proust da ralé espiritual, da revolta vazia. “Viagem ao Fim da Noite” é o desenvolvimento de um personagem decadente, sem nada a construir, que passa a vida divagando sobre a sordidez do mundo e de si mesmo. Nele, o ser humano é um anti-heroico sofredor e sem perspectiva pessoal e sócia, sempre mau, mesmo quando pronuncia o nome de Deus, um rótulo utilitário.
Louis-Ferdinand Cèline, escritor e médico francês
Nascido em 1894, na periferia de Paris, no seio de uma família de classe média baixa, Céline incorporou-se ao exército francês e combateu na Primeira Guerra Mundial. Sofreu ferimentos, foi condecorado com a cruz de guerra. Declarado inválido, é enviado para Londres.

Em 1916, esteve nos Camarões a trabalhar numa empresa francesa madeireira, mas, logo, vai para a Bretanha com a Fundação Rockefeller, recolhendo informação sobre a tuberculose. Em 1919, casa-se com a filha do diretor da escola de medicina de Rennes.
Em 1925, abandona definitivamente a família e com um emprego na “Liga das Nações” viaja pela Suíça, Inglaterra, Camarões, Canadá, Estados Unidos e Cuba.
Em 1928, instala um consultório privado em Montmatre especializando-se em obstetrícia. Fracassando também nesta nova empreitada, abandona a clínica privada por um cargo público.
A sua obra mais aclamada é “Viagem ao fim da noite”, de 1932. Em 1936, surge “Morte a crédito”, “Bagatelles pour un massacre” (1938), a “Escola dos cadáveres” (1938) e os “Bonitos panos” (1941). Todas as obras pós- 1932 foram claramente inspiradas pelo antissemitismo, pelo racismo que busca a “raça pura”, ele se auto proclama membro do partido fascista francês.
Apoiou a invasão nazista de sua própria Pátria, participou da “República de Vichy”, tendo sido denunciado por Sartre como alcagueta de verdadeiros patriotas para a Gestapo.
O escritor Ernst Jünger, incorporado ao exército alemão, testemunhou em 1994, que era Cèline o homem à sua frente, em 1941, a exigir que judeus prisioneiros das tropas alemãs fossem fuzilados ou enforcados.
Após a queda do regime de Vichy, tendo sido condenado à morte pela Resistência Francesa, foge para a Alemanha junto com Pétain e Pierre Laval.
Com a queda de Hitler, foge novamente, agora para a Dinamarca, tendo sido julgado à revelia em França e condenado a apenas um ano de prisão e considerado uma “vergonha pública”. Anistiado, entretanto, retorna à França em 1951. Morre em 1961, em um consultório médico abandonado às moscas e na miséria.
“Viagem ao fim da noite”, a matéria-prima de um nazifascista
Se por um lado, o personagem Bardamu testemunha a decadência dos anos vinte do século passado, a desumanidade inerente do capitalismo, a crise do colonialismo francês, a miséria das periferias das grandes cidades, em nenhum momento ele desenvolve empatia pelo sofrimento humano (exceto um fugaz enternecimento por um pequeno paciente seu que vai a óbito).
“A miséria persegue impiedosamente o altruísmo e as mais delicadas iniciativas são castigadas do modo mais implacável. ” “A dor sempre se exibe, enquanto a necessidade e o prazer têm suas vergonhas. ”
“A única verdade desse mundo é a morte” baliza “a viagem” de Bardamu ao fundo da noite, sua busca desde os campos de guerra. Ricos e pobres, homens e mulheres, padres e crentes, maridos e esposas, vivem sutilmente ou não, para empurrarem, por interesse financeiro, o vizinho, o parceiro, o parente ou o amigo, para a destruição, para a morte.
“Nunca acreditei no que os homens dizem, no que pensam. É dos homens e somente deles que se deve ter medo, sempre. ” “O pior é morrer sem nunca compreender como os homens podem ser cruéis.”
Bardamu é um médico incompetente, que odeia sua própria profissão e não a abandona para não morrer de fome, sempre disposto a vender, por exemplo, um laudo para a internação psiquiátrica, ele confessa sempre haver se dedicado à morte e não à vida do próximo, afinal, “somos os infelizes da terra. ”
“O delírio de mentir é como uma droga e pega como a sarna. ” Ademais, “não existe vaidade inteligente. ”
Bardamu possui ódio por todos que o rodeiam, tenta somente suportá-los, antes de fugir. “Outrora a via fanática era ‘Viva Jesus’, fogueira para os hereges… ao passo que agora, aqueles homens que não querem lutar e nem assassinar ninguém, os Pacíficos infectos, devem ser agarrados e esquartejados… Que lhes arranquem, para que aprendam a viver, as tripas do corpo primeiro… e tudo isto para o bem da Pátria. ”
Antecipando o colaboracionismo com os nazistas por parte do autor, Bardamu diz: “Quando o ódio dos homens não comporta nenhum risco, os motivos surgem sozinhos. ” Afinal, “toda a covardia torna-se magnífica esperança para quem sabe fazer as coisas direito. ”
A descrição de todo o sofrimento infligido pelo colonizador francês no norte da África, com “filas de negros dando duro na beira do rio, debaixo da chibata”, surge como um contraponto. No entanto, em todo o contexto, “os crioulos” jamais são apenas vítimas da ambição, da maldade, pois “as suas raras energias que escapavam da malária, da sede, do sol, se consumiam em ódios mordazes”, sempre de um contra o outro, “numa passividade de abestalhados.” Por outro lado, as milícias torturadoras eram sempre selecionadas dentre a juventude “crioula”.
“Nunca ou quase nunca os humildes perguntam os porquês de tudo o que suportam. Odeiam-se uns aos outros e isso basta. ” Como isso nos soa atual no século XXI!
Quando de sua viagem pelos USA, um amigo confessa Bardamu: “Americano é tudo milionário ou filho da puta! Não há exceção e você terá que engolir muitos deles. ”. Antecipando-se a uma nova guerra mundial, prenuncia: “Aí então os americanos vão mais uma vez enriquecer, vendendo desde peles de ratos, cocaína a massas enlatadas. ”
Na origem de seu niilismo absoluto, Bardamu expressa seu ressentimento: “Sempre temi ser mais ou menos vazio, não ter nenhuma razão séria para existir. Sou individualmente um nada”.
“Afinal, a vida é só isso: um fiapo de luz que termina na noite. ”
Conclusão: “Viagem ao fim da noite” é um romance de extrema atualidade, da crueza e do vazio dos dias em que vivemos.
Àqueles que contrapõem o humanismo à barbárie do neoliberalismo, leitura indispensável.