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Vicenç Navarro: A despolitização do político

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

A frivolidade do suposto futuro sem trabalho

vicenc-navarroVicenç Navarro foi Catedrático de Economia aplicada na Universidade de Barcelona. Atualmente é Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha).
Este artigo analisa o estado de choque produzido no establishment político e mediático de Estados Unidos pelas políticas neoliberais e como juntamente com o triunfo de Donald Trump isso repercute na Espanha. Uma visão objetiva que explica a perplexidade geral que aflige a todos quanto acreditaram no pensamento único neoliberal e mostra o esforço por despolitizar o que é profundamente político na promoção do status quo:.“Os anos de vida de uma trabalhadora estadunidense vêm diminuindo, e  enfermidades que se acreditava tinham desaparecido no mundo capitalista reapareceram. São decisões políticas, não desenvolvimento tecnológico que estão criando essa situação”, conclui o autor.
Vicenç Navarro*
Existe hoje um debate nos EUA que tem grande relevância para a Espanha. Tem que ver com as causas da elevada deterioração do mercado de trabalho estadunidense e, particularmente, do descenso na capacidade aquisitiva da população, consequência da diminuição dos salários e da perda de postos de trabalho.
Para entender a importância e intensidade deste debate, há que estar consciente  de que o establishment político-midiático estadunidense está em estado de choque, pois não esperava a derrota  da candidata democrata, a sra. Hillary Clinton, e, menos ainda, a vitória do candidato republicano, o sr. Donald Trump, a quem sempre consideraram como um candidato com escassas possibilidades de êxito por estar fora dos cânones do que um candidato deve ser e/ou deve parecer. Seu comportamento teatral, contudo, atraiu grande atenção midiática, garantindo-lhe uma grande exposição, que habilmente utilizou para desacreditar o establishment político federal e à maioria dos grandes meios de comunicação, tarefa relativamente fácil de realizar, pois tais establishments políticos e mediáticos já são altamente impopulares entre a maioria das classes populares. Uma situação semelhante ocorre na Espanha, onde a maioria de população acredita que as instituições chamadas representativas os representam, e a maioria da população considera os grandes meios como não confiáveis na apresentação que fazem da realidade política do país (já documentei em artigos anteriores a evidência que apoia tal observação).
Na realidade, só dois candidatos transmitiram o fastio e o rechaço das classes populares para com os mencionados establishments. Um foi o candidato do Partido Democrata, o socialista Bernie Sanders, e o outro, o candidato do Partido Republicano, Donald Trump, da ultra direita estadunidense. Era óbvio que, dos dois, o mais temido pela estrutura do poder econômico e financeiro do país, e portanto, também pelo establishment político-midiático do país, era Bernie Sanders, pois era quem fazia uma análise mais assertiva das raízes do problema que afetava as classes populares(o casamento entre o poder financeiro e econômico, por um lado, e as instituições representativas, por outro lado, veiculado por um sistema eleitoral profundamente antidemocrático, que requeria, para ser mudado, uma revolução política). A grande maioria das pesquisas de opinião mostravam que o candidato Bernie Sanders poderia ter ganho as eleições se seu adversário fosse Donald Trump. Porém, repito, o inimigo número um para o establishment político-midiático estadunidense era Sanders, e foi esse establishment que se mobilizou para destruí-lo. Trump, por sua parte, mesmo quando não contou com a simpatia dos meios, nunca foi considerado como uma ameaça. Os meios o ridicularizaram. Era, antes de tudo, um homem do establishment financeiro, grande defensor do sistema capitalista estadunidense, vulnerável ao ridículo devido a seu comportamento teatral (e muito efetivo). Os meios nunca consideraram que ele pudesse ganhar, e a atenção que lhe dedicavam derivada do aspecto novidadeiro, escandaloso e irreverente. Porém quase nunca o levaram a sério, até o final, quando se viu que poderia ganhar.

Como responde agora o establishment político-midiático estadunidense ao resultado das eleições?

O establishment político-midiático nunca aceitou que houvesse razões para que grandes setores da população o rechaçasse, pois a economia –segundo tal establishment- estava indo muito bem. O economista, Prêmio Nobel e articulista do New York Times, Paul Krugman era e continua sendo um dos maiores defensores de tal posição. Essa leitura, contudo, se funda na escolha equivocada dos indicadores escolhidos para definir a eficiência e eficácia da economia, tais como a taxa de crescimento econômico ou o índice de paralisação do país. Indicadores mais sensíveis do bem-estar econômico, como a renda das famílias, mostravam e continuam mostrando o visível declínio das rendas familiares e o crescimento muito notável do endividamento das famílias.  Na Espanha o establishment político-midiático também assume que há melhora da economia, mostrando como indicadores de tal melhora o crescimento econômico e a queda no desemprego, sem levar em conta a enorme deterioração do mercado de trabalho.
A evidência da deterioração do mercado de trabalho era tão manifesta nos EUA que o argumento foi alterado e apareceram considerações que tentavam despolitizar a explicação da deterioração do mercado de trabalho e negar que tal deterioração se devia às políticas públicas neoliberais realizadas desde os anos 1980 tanto pelos governos republicanos (Reagan, Bush pai e Bush filho) como pelos governos democratas (Clinton e Obama), que sistematicamente favoreceram o rendimento dos proprietários e gestores das grandes corporações estadunidenses transnacionais (o que nos EUA chamam de classe corporativa) à custas do mundo do trabalho. Os responsáveis pela aplicação de tais políticas negam (com a ajuda dos meios e de grande parte dos think tanks ligados ao mundo do capital financeiro) que foram estas as causas, atribuindo tal deterioração (que finalmente, admitiram existir) às mudanças tecnológicas como a robótica, que tem eliminado milhões de postos de trabalho, responsável pela declínio nas rendas do trabalho. Como exemplo, citam a diminuição do número de trabalhadores no setor manufatureiro. A introdução da robótica nos setores industriais é apresentada como a causa da deterioração do mercado de trabalho, com uma diminuição do número de postos de trabalho, redução dos salários e dos benefícios sociais e uma baixa na qualidade de vida, apresentando essa deterioração como os “custos do progresso industrial”.

A falácia de tal argumento

Esta explicação adquiriu uma enorme visibilidade midiática e é parte da mensagem de que veremos “um futuro sem trabalho”, como resultado da revolução tecnológica, inclusive da robótica. Respondendo a essa avalanche ideológica, Dean Baker, codiretor do famoso e prestigiado Center for Economic and Policy Research de Washington, EUA, publicou durante o ano passado uma série de trabalhos que contêm uma crítica devastadora dos argumentos que atribuem a deterioração do mercado de trabalho predominantemente às mudanças tecnológicas. Destaca o que outros autores também já tinham destacada prévia e repetidamente. Se as mudanças tecnológicas foram responsáveis pela diminuição da ocupação, tal redução teria que ter sido acompanhada de um aumento da produtividade. Se numa empresa há dois trabalhadores, e, resultado da introdução de uma nova tecnologia, só é necessário um trabalhador no lugar de dois para produzir o mesmo trabalho, isso quer dizer que a produtividade de cada trabalhador aumentou (na realidade, dobrou), tornando um deles desnecessário. A mudança tecnológica, portanto, se tivesse sido a causa da diminuição do número de postos de trabalho teria que ter sido traduzida em um aumento da produtividade.
Pois bem, o número de trabalhadores na manufatura nos EUA tem sido reduzido e, não obstante, a produtividade, como média, não tem variado. Dean Baker mostra como a taxa de crescimento da produtividade tem variado muito pouco na maioria do período entre 1973 e a primeira década do século XXI. Não se pode, portanto, atribuir a diminuição da população que trabalha na manufatura à mudanças na produtividade (e, portanto, a mudanças tecnológicas). Dean Baker destaca, por exemplo, que uma das causas mais claras da redução de postos de trabalho é a mudança no marco das exportações-importações no setor manufatureiro. Quando as exportações nesse setor diminuíram e as importações aumentavam, aí sim se vê que diminui o emprego na manufatura. E é aí onde aparecem as causas políticas, pois tais variações de comércio exterior são causadas, em grande parte, pelos Tratados de Livre Comércio, que sistematicamente tem favorecido às grandes empresas transnacionais à custa da classe trabalhadora. Na realidade, grande parte das importações são de produtos de empresas manufatureiras estadunidenses ou de outras nacionalidades que produzem para o mercado de EUA, porém que se deslocaram para outros países (China ou México) em busca de salários mais baixos e condições de trabalho piores que as existentes nos EUA. Isso explica a animosidade nos bairros operários dos Estados em que havia concentração de manufaturas, como Michigan, Pensilvânia, Ohio e Wisconsin, que sempre votaram nos democratas (inclusive no candidato Obama em 2008) mas que no ano passado votaram no candidato Trump, uma vez que este (e, ainda mais Sanders) denunciou os Tratados de Livre Comércio. Visitem a esses bairros e verão os resultados desses Tratados como o Nafta (tratado entre EUA, Canadá e México).
Porém o impacto dos Tratados de Livre Comércio é muito maior que o produzido pelo deslocamento das fábricas e seus postos de trabalho previamente localizados no território de EUA para outro país. Em tal deslocamento se perdem postos de trabalho estadunidenses, mas o maior impacto desse deslocamento não é o deslocamento em si, mas sim o medo e temor que se difunde entre todos os trabalhadores do setor manufatureiro, pois a ameaça por parte do empresário de ir para outro país e fechar o posto de trabalho é uma ameaça constante, ameaça que é cada vez mais real como consequência do enorme enfraquecimento dos sindicatos, consequência, de novo, de leis e normas anti-sindicais, aprovadas tanto pelos governos republicanos como democratas e tanto no âmbito federal como no estadual (quer dizer, dos estados autônomos).

A utilização da variável tecnológica é uma variável política

Essa tentativa de despolitizar o que é profundamente político aparece também na promoção (por parte dos establishments político-midiáticos) do argumento de que a revolução tecnológica está nos levando a um futuro sem trabalho, esquecendo que o importante não é a revolução tecnológica em si, mas sim o tipo, orientação e modo de aplicação de tal revolução. O mundo do futuro, como o mundo do presente, será o que as relações de poder (sobretudo de classe social) determinarem. Hoje, como resultado do enorme domínio do mundo do capital na configuração da forma e utilização das mudanças tecnológicas, o mundo do trabalho está sendo debilitado enormemente, utilizando tal capital da revolução tecnológica para debilitar mais e mais este mundo.
Se as relações de poder mudassem, com o mundo do trabalho no controle do desenvolvimento tecnológico (tanto em seu conteúdo como em sua aplicação), tal desenvolvimento poderia estar orientado em outras direções para favorecer a maioria das classes populares, facilitando a eliminação do trabalho indesejado, a redução do tempo de trabalho (o crescimento da produtividade ocorrido nos últimos 50 anos permitiria uma redução notável de um 30 por cento do tempo) e sua melhor distribuição, assim como a notável expansão de postos de trabalho nas áreas sociais (como saneamento, educação, serviços sociais, habitação, cuidado da infância e da velhice, entre outros) e energéticas, estabelecendo novas formas de energia e mudanças no sistema produtivo. As necessidades nesses setores são enormes, necessidades que hoje estão muito desatendidas, realidade que é especialmente acentuada em países onde o mundo do trabalho é débil, como no sul da Europa, inclusive na Espanha.
Se Na Espanha,a porcentagem da população adulta que trabalho nos serviços públicos do Estado do Bem-estar (um dos mais baixos da UE – 15) se fosse semelhante ao da Suécia, este país teria uns 3.5 milhões mais de postos de trabalho, reduzindo-se significativamente o desemprego. O fato de que na Suécia seja um adulto de cada cinco e na Espanha seja um de cada dez têm, unicamente e exclusivamente, a explicação de que na Suécia o mundo do trabalho é muito mais forte e tem maior influência sobre o Estado do que no sul da Europa. Suécia tem maior desenvolvimento tecnológico que a Espanha, contudo produz mais empregos. Como ocorre em praticamente todos os supostos problemas econômicos, as variáveis políticas (e não as tecnológicas ou econômicas) são as determinantes. O futuro dependerá de quem exerce maior poder sobre as instituições políticas, financeiras, econômicas e mediáticas. Se continua sendo o mundo do capital, o bem-estar das classes populares (que São a maioria da população) continuará em declínio, alcançando limites que nos regrediria a etapas anteriores. Os anos de vida de um trabalhador estadunidense vem diminuindo, e enfermidades que já se acreditava que tinham desaparecido no mundo capitalista desenvolvido reapareceram. São decisões políticas, não desenvolvimento tecnológico, que estão criando essa situação. Que tecnologia criar e para que usos utilizá-la é definido pelo grupo ou classe social que a controla. Assim de óbvio.
* Catedrático de Ciências Políticas e Políticas Públicas. Universidade Pompeu Fabra – Original do blog do autor: http://www.vnavarro.org/?p=13821Artículo publicado na coluna “Dominio Público” no diário PÚBLICO, 19 de janeiro de 2017.
 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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