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Vícios privados, virtudes públicas: como terceirizar lucros e socializar prejuízos na marra

Enquanto o mundo dito civilizado aproveita os serviços públicos para contratar empregados estáveis, por concurso, no regime bolsonariano estabilidade no emprego é pecado mortal
Amaro Augusto Dornelles
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

O governo é só sorriso. O ministro da economia – e o que sobrou de sua equipe econômica – não perde oportunidade de lembrar, no meio de seu indefectível blá blá, blá dos noticiários: a “privatização bolsonariana” segue em curso, impávido colosso… Nada mais lógico.

Afinal, trata-se de uma questão de honra; de afirmação do Ministério do Brasil, diante da deidade suprema: o Investidor. Não para a “ralé”, que trabalha para manter a “12.ª economia” do planeta Terra. Mas o fato é que, após perder mais de ano sem conseguir “fazer decolar” a alardeada privatização dos Correios – assim como de nacos da Petrobras – a equipe econômica trata de compensar com publicidade sua inépcia para planejar a economia do país.

“O governo fala em privatização pensando única e exclusivamente no lucro do capital, jamais na qualidade do serviço prestado à população. Não toca no principal: na agência reguladora. Elas são justamente as rédeas do governo para controlar os excessos das concessionárias, obcecadas pelo lucro”, constata Paulo Feldmann, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA), da USP; e professor visitante em duas universidades húngaras, além de pesquisador da Universidade Fudan, na China. Morou na Europa e nos EUA — onde trabalhou para multinacionais como Citibank, Microsoft, EY e Philips.

Engenheiro, com doutorado pela FGV, Feldmann presidiu a Eletropaulo (estatal) e outras empresas ao longo de 35 anos. Com esta vivência, ele diz que, nas economias afluentes, tais agências defendem os interesses do consumidor. Além de lutar pelo fortalecimento dos órgãos reguladores, o especialista em energia defende que o Brasil deve aproveitar uma das raras vantagens de ser um país em desenvolvimento, qual seja: “não precisar reinventar a roda”.

Agências Reguladoras: Vitais

É só ver o que deu certo em outros países e o que não deu”, define. Como têm mais capital, os países desenvolvidos tomam iniciativas antes de aparecerem os problemas. Se algumas coisas dão errado, outras dão certo. O processo de implantação é depurado, em sintonia fina com a demanda. 

Com a experiência de quem já presidiu a Eletropaulo e conhece o mercado de dentro — e após trabalhar para multinacionais ianques e europeias fora do país — o professor doutor garante: “Nas privatizações que deram certo no mundo as agências reguladoras estavam por trás de todo o processo e acompanhamento dos serviços”.

Mas, afinal, como fazer as agências regulatórias funcionarem bem? “Antes de mais nada, elas devem ser formadas por profissionais de carreira, concursados”, prescreve o especialista. A razão é simples: só assim eles ganham conhecimento específico no trabalho. Com o passar dos anos, as pessoas podem se aprofundar onde for mais importante.

O gigante entorpecido da América Latina, no entanto, padece de um mal letal, uma peste conhecida como “cargo de confiança” — a indicação política capaz de passar por cima do conhecimento técnico, do interesse social e abrir espaço para a corrupção sem limites.

Enquanto o mundo dito civilizado aproveita os serviços públicos para contratar empregados estáveis, por concurso, no regime bolsonariano estabilidade no emprego é pecado mortal

Palácio do Planalto
A afinidade entre os golpistas que roubaram o mandato de Dilma Rousseff se torna mais evidente a cada dia.

Corrupção Grossa

“A direção de uma agência reguladora jamais poderia ser ocupada por indicação política”, lamenta Feldmann, para quem, a questão central (o velho busílis) é que mandatos de agências não podem coincidir com a troca da gestão política. Ou seja, o mandato na agência deve ultrapassar a troca de governo para evitar substituição de direção e técnicos a cada quatro anos. Esta seria a fórmula para entrar no “círculo virtuoso das privatizações bem sucedidas”.

Ele toma, por exemplo, o Banco Central. Ele regula (nos EUA no Brasil) os bancos, entre outros atores econômicos. “O presidente não tem o direito de trocá-lo, goste ou não goste dele. Este é o segredo do bom funcionamento dos serviços públicos em todo o mundo”, ressalta. Na França, Emmanuel Macron foi eleito há dois anos e não pôde indicar diretores de estatais. Troca só de ministros e assessores. Por isso, a França é considerada a nação com o melhor serviço público do mundo. No Brasil, o tema que não sai da pauta é a reforma administrativa.

Cronicamente Inviável

“O mais importante seria manter os especialistas das agências reguladoras no cargo”, insurge-se o docente. E na hora de precisar contratar, “sempre chamar os concursados”. Apenas os ministros podem ser nomeados pelo presidente eleito. É moda neste Brasil, complexado como cão vira-lata, dizer que o serviço público não presta. A maioria das empresas funciona muito bem – pelo menos até este demente transformar o Palácio da Alvorada em quartel.

Mas como vai funcionar algo direito se a cada eleição troca toda amarilha? “Isso torna o serviço público cronicamente inviável”, ironiza o gestor da velha Eletropaulo. Troca o ministro e junto vão os amigos, sejam eles de seu partido, ou não, alveja ele: “O primeiro e o segundo escalão são a tragédia do serviço público brasileiro, esta rotatividade a cada 4 anos acaba com qualquer sonho de especialização e contribuição para a melhoria do serviço prestado”.

Portal da Corrupção

Anatel, Anvisa, Aneel… Quanto mais importantes econômica e politicamente são as agências reguladoras, mais assoladas elas são pela corrupção nacional e internacional neste país quintal dos EUA, onde o Consenso de Washington impera como nunca se viu. Sobre isso, leia reportagem Privatização de araque de Guedes e Bolsonaro é absurda, diz professor da USP. Como concurso público virou palavrão e agora é barrado por Bolsonaro em pessoa, está cada dia mais difícil contar com funcionários de carreira. É assim que o governo Federal se entrega à negociação política e escancara o “portal da corrupção”.

A história sempre traz alguma lição. No caso específico da Aneel, segundo Feldmann, eles deveriam cuidar dos interesses do consumidor. Foi para isso que a empresa foi criada. O problema é que uma agência reguladora afeta muito a vida das empresas privadas. E aí entram os lobbys, grupos de pressão, etc. Todos se juntam e indicam nomes para dirigir e trabalhar nas agências. Típico caso da raposa tomando conta do galinheiro, ri Paulo Feldmann sem mostrar os dentes.

O País e o precipício

Enquanto o mundo dito civilizado aproveita o serviço público para contratar empregados estáveis por concurso — para desenvolver conhecimento e know how de modo a melhorar a qualidade do serviço prestado — no regime bolsonariano estabilidade no emprego é pecado mortal. No último dia 8 de dezembro, o Estadão estampou em primeira página: “Contratação de concursados é a menor em 10 anos”. (Já a devastação da Amazônia é a maior nestes mesmos 10 anos).

A afinidade entre os golpistas que roubaram o mandato de Dilma Rousseff se torna mais evidente a cada dia. Afinal, desde o governo infame de Michel Temer os concursos estão banidos da pátria. A tropa bolsonariana vem recorrendo a trabalhadores temporários para suprir as necessidades, o que tem gerado protestos de sindicalistas, que se manifestam denunciando uma reforma administrativa silenciosa. Dados do Ministério da Economia informam que 665 funcionários públicos ingressaram no serviço público de janeiro a outubro. E não há previsão de contratações até o final do ano.

Afinidade de Golpistas

Se cai o ingresso em carreiras públicas por concurso, o governo aproveita a brecha e entope empresas que prestam serviços públicos com a contratação de temporários, na maioria das vezes absolutamente ignorantes com relação a seus novos trabalhos. Até outubro deste ano (o pior do resto de nossas vidas?)  22.871 pessoas entraram no serviço público com contratos de prazos definidos, que variam de seis meses a seis anos. Em 2010 eles não passaram de 9.500.

A maior parte dos “felizes” contratados para a “boquinha” foram direcionados para demandas emergenciais. Só o INSS – o “Anão Maldito” promete voltar com a privatização da Previdência, além da CPMF – contratou temporariamente 8.230 servidores aposentados e militares inativos – por mais que boa parcela da população morra de fome por falta de trabalho. Tudo ao melhor estilo bolsonariano de governar: deixa a bomba estourar para só então correr atrás de solução, sem precisar fazer licitação pública.  Este é um país que vai para a frente… Do precipício.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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