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Victor Neiva: Relatório médico de um país extremamente enfermo

O paciente apresenta sintomas de esquizofrenia, possivelmente originada já em sua concepção, caracterizada por rompantes de duas personalidades bem distintas
Victor Neiva

Tradução:

O paciente é o Brasil e quem firma o diagnóstico sem registro e em inequívoco exercício irregular da profissão, vive em Brasília, é advogado dos bons, e está vendo as coisas da política no seu nascedouro.

Paciente hidratado com fartura por uma infinidade de rios e pelo enorme contato com o oceano, sempre corado porque tropical e muito bem nutrido de tudo que a natureza pode oferecer. Apesar disso, definitivamente, não se apresenta nem lúcido e muito menos orientado. Demonstra sinais de um profundo conflito interno, com sinais de confusão mental e até de automutilação. A parte de sua vestimenta verde possui clarões com manchas de sangue demonstrando que o paciente possivelmente se corta, bem como há discrepâncias notórias entre a apresentação de joias caríssimas e sinais de desnutrição, manifestada no desgaste muscular, além de apresentar pés descalços e mãos calejadas.

O paciente apresenta sintomas de esquizofrenia, possivelmente originada já em sua concepção, caracterizada por rompantes de duas personalidades bem distintas

Reprodução / Facebook
De fato, o risco de isquemia ou derrame é iminente em virtude de sua falta de circulação dos nutrientes democráticos

Quanto ao histórico clínico, o paciente apresenta sintomas de esquizofrenia, possivelmente originada já em sua concepção, caracterizada por rompantes de duas personalidades bem distintas. Inicialmente relacionada a problemas nutricionais, quando se notabilizou a expressão Belíndia, com uma parte bem alimentada como a Bélgica, e outra faminta como a Índia, o fato é que atribuir à falta de alimentos ou de recursos esta característica é uma estupidez, eis que absolutamente incompatível com a fartura que a Providência lhe proporcionou.

Assim é evidente que a existência de carestia é decorrência de um problema psíquico, e não o problema psíquico derivado da carestia. Há duas personalidades no paciente em claro conflito. A primeira, considerada Dona do Poder por Raimundo Faoro, aristocrática, derivada da corte que aqui chegou, tem sinais inequívocos de psicopatia e alienação mental e só vê as potencialidades brasileiras como matéria prima para reprodução de modelos estrangeiros, inicialmente português e após inglês, francês e hoje estadunidense. A psicopatia se verifica em surtos de agressividade, o que é possivelmente a causa da automutilação.

A segunda, tolhida dos recursos pela primeira e, portanto pobre, é de doçura, determinação e inteligência raras. Acostumada a tirar leite de pedra, fez no sertão, nos cortiços e na favela uma das mais belas e genuínas culturas do mundo. Como exemplo, temos o samba, o xote, o frevo,.

A esquizofrenia passou por dois tratamentos significativos em seu passado. O primeiro bastante duro e agressivo, com revoltas e ditadura, chamada de Estado Novo, possibilitou alguma destinação de recursos para os órgãos mantidos pela segunda personalidade, bem como alguma reconstrução de autoestima, trazendo um quê de nacionalismo para quem se sentia sempre aquém dos modelos espelho. Apesar disso, teve como efeitos colaterais a restrição ao desenvolvimento cultural, a legitimação de parte da opressão e a radicalização de parte dos órgãos mantidos pela primeira personalidade. 

A segunda fase do tratamento foi democrática, com o aprofundamento do desenvolvimento oferecido pela primeira, a constituição de instituições e partidos, além da abertura cultura e de liberdade de expressão que viabilizam a sua melhor manutenção a convivência de algum diálogo entre as duas personalidades. O tratamento, em suas duas fases reduziu os sintomas de esquizofrenia e viabilizou o melhor aproveitamento de suas maravilhosas potencialidades. 

De fato, iniciado o trabalho dos órgãos da primeira personalidade de maneira mais rústica, até mesmo pela carestia que lhes era inerente, com a melhor distribuição dos recursos, se viu melhor nutrido, e, com o diálogo e a convivência, puderam trocar experiências. Daí surgem os chamados anos dourados e algumas das mais belas e até rebuscadas manifestações culturais que ele pôde produzir, como a Bossa Nova, a arquitetura modernista de Niemeyer e Lúcio Costa dentre outros.

Além disso, do ponto de vista intelectual e político, passou-se à elaboração de projetos de vanguarda de educação, desenvolvimento, erradicação da fome e democratização, bem como à ocupação do sertão em um país que vivia apenas com parte de seus recursos materiais utilizados. 

Ocorre que o não tratamento adequado dos efeitos colaterais da primeira fase do tratamento e das inatas características psicopáticas da primeira personalidade, mantendo-os no controle de a maior fonte dos recursos, que é a terra, parte do sistema nervoso (a comunicação), as reservas de gordura e, pior de tudo, o sistema imunológico (os milicos) ocasionou o surto. Se sentiram no Direito de assumir de novo todo o controle do paciente e o levaram a um profundo trauma.

O trauma foi caracterizado por um grave movimento de rotação que, embora não se possa confirmar pela impossibilidade de se proceder à ressonância magnética, indica a existência de lesão axonal difusa, principalmente no hemisfério direito do cérebro, responsável pelos movimentos do lado esquerdo e pela rima, ritmo, música, pintura, imaginação, imagens, modelos e harmonias.

Para que os leigos entendam, Lesão Axonal Difusa (LAS) é o rompimento da comunicação dos neurônios no cérebro causado por um movimento rotacional abrupto do crânio. É como um mal contato ou a desconexão dos cabos. Em casos muito graves, transforma o paciente em um vegetal, mas em casos menores pode justificar demência, perda de equilíbrio (ataxia). É como se a rede fosse desfeita.

A consequência no paciente foi o hiperdimensionamento da outra área para compensar a perda momentânea da outra, o agravamento da agressividade, com a quase paralisação das manifestações culturais e o domínio de todo o corpo pelo viés psicopático. 

Como o paciente é muito forte e, parte dele, acostumada a progredir em condições inóspitas, já superou em parte o pior desta característica, mas parece que o lado afetado pela (LAS) também passou a incorporar parte de agressividade, não abandonada pela outra, o que incrementou a disputa pelo corpo entre as duas personalidades, talvez daí as manchas de sangue. 

A se manter esta dinâmica a tendência é uma certa paralisação do paciente, podendo, de fato, se tornar catatônico perante os fatos do mundo e da realidade, gastando toda a energia que lhe resta nesta batalha interna pelo seu domínio.

O problema é que a instituições e o sistema nervoso, após o trauma, responsáveis pela viabilização do diálogo e da possível superação da esquizofrenia, após o trauma, passaram a sofrer de carência dos componentes de república e democracia para o seu funcionamento. O executivo foi fracionado e tem como alternativa o aparelhamento para se manter. O Legislativo tornou-se fundamentalmente fisiológico e é incapaz de discutir um projeto de nação, eis que os os partidos hoje existentes sequer se propõe a este desafio.

E o pior e o Judiciário, sequer percebeu que o trauma passou e que é hora de mediar conflitos e promover os valores da democracia e dos direitos humanos. Está formado por uma infinidade de corporações que vivem a lógica do “farinha pouca, meu pirão primeiro” e perdem mais a caça de recursos, sem perceber que o seu volume de colesterol já está a entupir suas veias. 

De fato, o risco de isquemia ou derrame é iminente em virtude de sua falta de circulação dos nutrientes democráticos. A resposta dada tem sido cada vez mais refratária à cidadania. Atualmente aquele que deveria ser o mediador e árbitro dos conflitos da sociedade sequer se sente obrigado a ouvir os argumentos das partes, bastando apenas que encontre um silogismo que confirme a sua pré-compreensão para dar o assunto encerrado. Além disso, tem amesquinhado o valor da honra e do foro íntimo das pessoas, compensando o aviltamento dos valores mais relevantes de uma sociedade a migalhas, cada vez menores. E, como se não bastasse, sequer se sente compromissado em uma solução célere.

Prognóstico é extremamente grave e pode levar o paciente ao suicídio.

Como o paciente é forte e percebeu o problema circulatório, procurou um cardiologista que procurou colocar um stentil onde o entupimento era maior, chamado de Conselho Nacional de Justiça, tratando apenas o sintoma e não a causa. Mas ele veio com defeito de fabricação, eis que composto majoritariamente por setores do problema e com muitas limitações para atuar. Assim, apenas retardou o agravamento da doença. Houve alguns sucessos com relação ao direito de saúde das células tronco, mas, apesar, disso, esbarrou em problemas estruturais que impedem até mesmo a realização plena desta demanda.

Como resultado, o paciente como um todo, já está fazendo de tudo para contorná-lo. Cria procedimentos extrajudiciais de resolução e conflitos. As células-cidadãs para resolver os seus problemas de união ou os decorrentes de seu falecimento fazem de tudo para não procurá-lo. A compra de moradia já é regulamentada por procedimento que pode rescindir o contrato sem passar por ele. Até os órgãos de governo, se o problema não tiver significativa relevância, preferem deixar de lado a cobrança, ou sujar o nome da célula-cidadão.

Outro efeito é que, como esta instituição não dá resposta aos anseios da sociedade, gerando uma situação de impunidade e de insegurança negocial, não se difere mais células-cidadãs boas e doentes de moral, fazendo com que, a cada negócio firmado, aumente o número de exigências documentais e etapas burocráticas para evitar que se tenha que recorrer ao Judiciário ou que, caso por fatalidade não tenha como evita-lo, tenha reduzidas o volume de incerteza e imprevisibilidade cada vez maior que lhe aflige.

Toda esta dinâmica agrava a tensão, a agressividade e a virulência do paciente, aprofundando sensivelmente o seu conflito interno. Se não houver tratamento específico para este problema, é pouco provável que o prognóstico se torne favorável. 

Assim, tem-se como hipótese diagnóstica a esquizofrenia agravada por Lesão Axional Difusa e carência de Justiçol, que tem como componentes os princípios republicano e democrático, além de justiça social. Os originais, não os genéricos ou similares. 

Como tratamento, recomenda-se ao paciente o controle do conflito por respeito mútuo, mesmo que às custas de eventual dopagem, bem como o tratamento com Justiçol pelas vias venosa, oral e até em supositório. Já para o problema Judicial, prescreve-se, além disso, o uso de semancol no limite máximo possível, tomando-se apenas o cuidado para evitar overdose e não com os demais efeitos colaterais não letais.

Prognóstico: caso seguido à risca o tratamento, o prognóstico é extremamente favorável, tornando o paciente uma grande nação. Caso contrário, pode levá-lo ao suicídio.

*Colaborador de Diálogos do Sul


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Victor Neiva Advogado, Bacharel em Direito graduado pela Universidade de Brasília em 1999 e pós graduado, em Direito Ambiental, pela mesma instituição em 2006. Compôs a banca de advogados atuante na Associação Brasileira de Anistiados Políticos, matéria que tem atuação marcante e reconhecida.

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