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Morreu Videla. Morreu um ser desprezível. Católico fundamentalista, arderá pelos séculos dos séculos no inferno. Suas perversidades só são comparáveis às dos nazistas
Roberto Pizarro*
Assassinatos, torturas, violações, roubo de crianças e a débacle econômica e social marcaram seu regime. Foi cabeça de uma gangue de militares que, com o apoio da oligarquia, assaltou o poder e encabeçou a maior tragédia da história argentina, inclusive a absurda guerra das Malvinas. Pelo menos morreu na prisão, com duas condenações a prisão perpétua por delitos de lesa humanidade.
Em 24 de março de 1976 instalou-se a ditadura de Videla. O governo de Isabel Perón e López Rega caía em pedaços pela corrupção, a desordem econômica e a ação repressiva paralela da Triple A, em meio aos protestos que cresciam no movimento sindical e à ação das organizações guerrilheiras. Diferentemente do que sucedeu com o golpe no Chile, a derrubada de Isabel teve certo reconhecimento em nível mundial, com a crença ilusa de que se disciplinaria a repressão, a ordem voltaria à Argentina e prosperariam os negócios. Não foi assim. O Governo de Videla mostrou-se o mais criminoso de toda a história argentina, com níveis de corrupção similares ao do governo que fora derrubado.
Videla teve também a pretensão de refundar a economia argentina. Estado terrorista e modelo econômico neoliberal foram as duas caras de uma mesma moeda. O exército encarregou-se de destruir fisicamente a resistência dos setores progressistas, sindicatos e organizações de esquerda, enquanto Martínez de Hoz, o Ministro da Economia, ocupou-se de acabar com a indústria e eliminar as históricas conquistas da classe operária argentina. O resultado foi catastrófico: dívida externa multiplicada por quatro e uma regressão inédita na distribuição da renda. O que não importava a Videla já que:
“Nosso objetivo era disciplinar uma sociedade anarquizada. Com relação ao peronismo, sair de uma visão populista e demagógica; com relação à economia, caminhar em direção a uma economia de mercado liberal. Queríamos também disciplinar o sindicalismo e o capitalismo de prebendas.”
Quando, em novembro de 1975, no Governo de Isabel, graças à Operação Condor, entrei em Vila Devoto, havia só dois presos por cela. Com o golpe militar de Videla as cárceres se massificaram. Chegaram os dirigentes sindicais, pessoas do povo, estudantes e intelectuais. Passamos a ser sete presos por cela. Já não eram os militantes convictos, os combatentes da guerrilha peronista ou guevarista e alguns estrangeiros dos países vizinhos que convivíamos em Vila Devoto. A prisão transformou-se em um inferno. Os gritos dos que se agarravam aos catres para impedir que os carcereiros os conduzissem à tortura ou à morte começaram a ser ouvidos diariamente. Juízes, padres, militares, carcereiros e policiais confabularam para torturar, assassinar os presos e ameaçar seus familiares. Não só em Vila Devoto. O país inteiro era uma prisão. O Estado impôs o terror e a vingança. O general Ibérico Saint Jean resumiu os objetivos do Governo militar: “Primeiro vamos matar todos os subversivos, depois seus colaboradores; depois os indiferentes e por último os tímidos”.
Com o retorno da democracia, os presidentes Alfonsín e Menem, por covardia ou complacência, evitaram estimular processos contra os genocidas. As leis de Ponto Final e Obediência Devida protegeram os criminosos. Impôs-se “a medida do possível”. Por isso as mães e avós da Praça de Maio não os perdoam. Só com Nestor Kirchner restitui-se a justiça, embora seu governo fosse minoritário no Parlamento. Não hesitou um momento em devolver a memória a seu país, julgando os culpados que aterrorizaram os argentinos durante a ditadura de Videla. Foram derrogadas as leis de impunidade e reconhecido o trabalho das Mães e Avós da Praça de Maio. Exigiu-se que as forças armadas retirassem os retratos dos ditadores de todos os estabelecimentos militares e criou-se um museu da memória na ex Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), antro do terrorismo de Estado. Hoje os ditadores e executores de assassinatos e torturas perpetrados pelo Estado estão condenados ou em processos judiciais.
Videla foi visto pela última vez nos tribunais de justiça, em meados de junho do ano passado. Naquela ocasião, acusado do delito atroz de roubar os filhos das presas políticas, que eram depois assassinadas. Velho, com o cabelo branco e parco, mais magro que em seus tempos de glória, o ditador arrastava os pés, incrédulo frente a um destino inevitável. Ninguém se compadecia do homem frágil, com as precariedades de um velho. Porque ninguém podia esquecer o monstro que transformou a Argentina em um campo de concentração e que comandou o extermínio de trinta mil jovens.
Quando morreu Massera, Almirante que transformou a ESMA em um campo de torturas, o poeta Benedetti dedicou-lhe um poema, “Os canalhas vivem muito, mas às vezes morrem”. Sua poesia serve também para celebrar a morte de Videla:
“Vamos festejá-lo. Venham todos. Os inocentes. Os prejudicados. Os que gritam de noite. Os que sonham de dia. Os que sofrem o corpo. Os que alojam fantasmas. Os que nunca se esquecem. Morreu o canalha.” 23-05-13
*Roberto Pizarro é economista, acadêmico, consultor e político socialista chileno, ex ministro de Estado do presidente Eduardo Frei Ruiz-Tagle (1994-2000). Atualmente é reitor da Universidade Academia de Humanismo Cristão.