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Vigência de Mariátegui na psicanálise

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Saúl Peña Kolenkautsky* 

Saúl Peña KolenkautskyJosé Carlos Mariátegui está e estará sempre vigente. Sua qualidade de ser humano, a lucidez de seu pensamento crítico sobre os outros e sobre si mesmo, sua individualidade, sua coerência e seu compromisso o situam em um presente permanente.

Ao reflexionar sobre ele parece-me indispensável reconhecer que não somente seu fundamento ideológico, filosófico e político se mantém vigente como também seus aspectos pessoais e axiológicos são insubstituíveis em sua criatividade e constituem as fontes da consistência, sensibilidade e amor pelo país.

mariategui por ChermanMariátegui era práxis, ação e vida, uma contraposição entre biografia e época. Critica sua sociedade e aspira a revolução sem violência. Para ele o moral e o ético estão integrados com o ideológico. Têm a imagem de uma comunidade igualitária e navega em direção contrária à corrente.

O que sobressai em Mariátegui, além de seu talento e sua contribuição ideológica e filosófica, é sua extraordinária qualidade de ser humano e de pessoa com os valores, atributos e qualidade que já mencionamos e que continuam vigentes como um modelo de identificação, de inspiração, de admiração e de respeito. Paralelamente o apreço ao ser humano é substantivo em sua vida e seu que fazer. Ao perder injustamente a liberdade manifesta: “Não fujo nem atenuo minha responsabilidade, a de minhas opiniões as aceito com orgulho por não estarem sujeitas ao procurador,  à polícia nem aos tribunais e por ser estranho a todo gênero de complots caboclos ou conspirações distante de confabulações absurdas”. A palavra “revolução” está intimamente vinculada para ele com o autêntico, não morre nunca nem dentro nem fora e menos ainda nos dias de silêncio. Incontrastável honestidade de sua conduta e existência.

Para ele é indispensável a integração criativa do atual com o passado, no pessoal e no social, em uma transformação fértil e uma mudança integradora de aspectos pretéritos essenciais e transcendentes em forma livre e diferenciada. Valora o milenário espírito andino que continua vibrando em seu interior e permanece intacto em nosso inconsciente com reconhecimento de nossa mestiçagem e da liberdade que subsiste em nossos sonhos, em nossa realidade interna e em nossa imaginação. Prevalece uma ideologia inconsciente que se expressa como a filosofia de nosso olhar no mundo do espírito.

Em uma atitude carente de preconceitos diferencia uma ideologia ou filosofia de uma fé ou crença que não necessariamente são excludentes e correspondem a aspetos inerentes ao humano.

Integra o irracional com o racionalismo não conservador em defesa da liberdade, da intuição, da arte e da revolução socialista. É o ideólogo mais significativo e transcendente do Peru, um humanista autêntico, interessado no social e no conhecimento do homem.

O socialismo, para Mariátegui, não significava a solução de todos os problemas nem a anulação dos conflitos, era, certamente, uma meta para aglomerar os indivíduos, dar-lhe uma identidade individual e coletiva pela qual valesse a pena viver. Um moral e uma prática natural. O rumo se forjava no caminho.

A heterodoxia da tradição histórica peruana, o amalgama entre mundo andino e ocidente, faz com que o socialismo não pudesse ser imitação nem cópia, mas uma identidade original.

Aproxima-se da classe operária, com a plena consciência da exclusão e marginalização de que é vítima e que é indigna à pessoa. Essa aproximação é fundamental.

Tem uma relação muito íntima e próxima com a alteridade não só individual mas social, coletiva, frente a sua percepção das enormes injustiças materiais, de privação, limitações nutritivas, afetivas, emocionais, educativas, intelectuais e éticas, integrando, ampliando e aprofundando o conhecimento o homem na complexidade da realidade peruana e da cena contemporânea. Como bem disse Freud, o inconsciente não tem tempo. Distingue-se no Amauta seu conhecimento, sua paixão, criatividade, originalidade, autocrítica e antidogmática com fins de transformação autenticamente revolucionária.

Mariátegui transmitia uma necessidade pedagógica que chamo de mutualidade: sabe-se o que se quer mas não pra onde se vai. A paixão aguça o intelecto e contribui a tornar mais clara a intuição.

Reivindicava um mito como construção imaginária coletiva oposta a qualquer liderança individual, como um projeto utópico. Mariátegui propunha a construção de uma alternativa socialista que transcendia o mundo dos intelectuais: fundir-se com as classes populares. Uma proposta capaz de unir as paixões coletivas numa atitude contestatária, contrária a qualquer tradição hierárquica ou autoritária. Pensamento alternativo e antagônico. Enfrentamento entre a evolução e a decadência.

Amata, a revista fundada em 1926 e dirigida por José Carlos Mariátegui, transmite sua amplitude humanista, sua tentativa de não só interpretar o mundo mas transformá-lo para conhecermos melhor a nos mesmos, sem deixar de lado a universidade. O Peru dentro do panorama do mundo.

O conflito entre os invasores e os invadidos não foi resolvido a não ser na aparência. A única possibilidade é restituir ao invadido com justiça autêntica à plenitude de seus direitos autóctones, a recuperação das línguas quéchua e aimará e a possibilidade de exercer uma identidade bicultural.

Trata-se de olhar profundamente, reconhecendo os preconceitos, que o inimigo está dentro de si mesmo, que o problema não é exclusivamente racial, fenomenologicamente falando, o problema é da raça do espírito, é diferenciar a pessoa em sua profundidade.

Como recuperar ante a miséria, a privação cultural, afetiva, ética e emocial, a possibilidade de uma identidade plena? Como poder desinfetar, desintoxicar e curar um processo social anômalo em todas as esferas e classes e alcançar uma autêntica recuperação?

O trauma da conquista persiste devido a sistemas injustos, utilitários, perversos, deformantes e à desnaturalização claudicante, demagógica e falsa.

Mariátegui não leva em conta os indecisos nem os indiferentes que são como germes contagiosos, debilitantes e deteriorantes que por prevenção é melhor excluí-los ou permitir que saiam.

Inclina-se por uma tribuna livre, aberta a todos os ventos do espírito. Concebe uma cultura e uma arte agnósticas.

Definindo-me como um psicanalista dialético, existencial, heterodoxo e antidogmático, estou consciente da importância do vínculo originário entre Mariátegui e a psicanálise, seu desenvolvimento, valorização e suporte. No primeiro número da revista Amauta publica  Resistencias al psicoanálisis  que se pode traduzir em profundidade como resistências ao inconsciente,  reconhecendo a Freud como o revolucionário da alma humana, com quem se aparentava dialeticamente mantendo sua identidade, autonomia e diferença. Aspectos comuns à ideologia mariateguista e à freudiana na essência e na expressão profunda que se sustenta em sua filosofia, práxis e no que denominou ideologia inconsciente.

Acreditava na tolerância das ideias, mantendo as discrepâncias e as diferenças. Como psicanalistas descobrimos que muitas vezes rechaçamos ideias de outros porque  não nos agradam, sem que isto queira dizer que não sejamos consequentes e sim que a tolerância se confunda com midiatizações, claudicações, confusões   que não permitem distinguir o próprio do alheio, o autêntico do impostor e o genuíno do falso. Por não utiliza ruma dialética discriminatória, validando a ideologia própria, corremos o risco de uma idealização, de um não reconhecimento do outro ou de uma limitação na possibilidade de integrar aspectos positivos.

É importante conhecer os problemas peruanos submersos no mundo e seus movimentos renovadores no político, filosófico, científico, artístico, literário, etecetera. Si tudo que é humano é nosso, como disse o Amauta, não se pode excluir o outro. A dúvida racional ajuda a admitir o novo depois de um exame sério. O inconsciente recupera no homem a possibilidade de integrar-se e de completar-se e, assim, resgatar uma ética autêntica, não sob uma repressão hipócrita, falta e danosa, sustentada em uma pseuda moralidade que incrementa a enfermidade.

Marx por si mesmo, em sua tentativa de aproximação à verdade, interpretava o inconsciente das ideologias ao mostrar que as classes idealizavam ou mascaravam seus motivos e que atrás de seus princípios políticos, filosóficos e religiosos, se sobrepunham seus interesses e necessidades econômicas.

Mariátegui anota que a interpretação econômica da história é uma psicanálise generalizada do espírito social e político. Ele vê uma equivalência nas acusações de pansexualismo à psicanálise com a acusação de pã economicismo na teoria marxista, por desconhecimento e outras razões, reduzindo a concepção marxista do processo histórico a uma pura mecânica econômica que desconhece a amplitude e profundidade que o conceito de economia tem para Marx. A satisfação institntiva primária não é necessariamente excludente do reconhecimento de valores superiores. Reconhecendo influências mútuas, Freud e Marx dão prioridade à pessoa, ao vínculo, ao outro e à sociedade.

A proclividade a considerar a atitude revolucionária como uma simples neurose será produto do instinto de classe que determina esse juízo reacionário e reducionista.

A pretensão de muitos cientistas, ideólogos, filósofos, religiosos, psicanalistas é se situar em um terreno objetivo e científico, desconhecendo a importância dos sentimentos que se impõem com demasiada frequência sobre o raciocínio e sua ideologia inconsciente. A subjetividade objetiva e a paixão lúcido podem conduzir a descobertas muito importantes.

O potencial criativo é resultando de uma integração, o caule representado pelo torpe não só se refere ao alimento dado pelo espírito mas também a uma identidade própria, diferenciada que lhe dá significado e transcendência ao humano, determinante da possibilidade de uma liberdade, responsabilidade e escolha.

As flores e os frutos resultam da raiz e do caule existencial que adquirem uma identidade própria e autônoma. É quando já se pode falar do homem ético, axiológico, ideológico, político, livre que assume uma identidade, um compromisso, uma filosofia, uma escolha, uma responsabilidade e uma transcendência dialética. Tanto o marxismo como a psicanalise têm, sem dúvida, fontes instintivas e primitivas, mas também experiências sustentadas por prioridades existenciais, discriminando sua verdadeira essência revolucionária que não pode ser reduzida a uma simples neurose social.

A revolução está impregnada de sexualidade e não exclui aspectos de natureza fanática nem ideológica vivencial. O marxismo para Mariátegui é uma espécie de psicanálise do espírito sócio político.

Quando fala sobre seu amor à aventura do conhecimento o equipara à aventura da conquista amorosa.

Sua obra é algo mais que a aplicação do marxismo e transcendo sua contribuição fundamental. Isto devido a que no criador o essencial está situado naquele espaço diante do inesperado que é onde surge o novo, o que não se conhecia e onde se produz uma experiência de mutualidade que provavelmente está vinculada a um orgasmo existencial diante do próprio descobrimento de si próprio ou ao descobrimento mútuo com o outro.

Este descobrimento vai gerar um vínculo com o passado, com a lembrança, com a origem e a natureza de sua essência, de seus atributos e qualidades fundamentais, de sua inspiração e daquilo que a nutre, daquilo que a forma, de sua identidade, do que a distingue e diferencia em sua amplitude, em sua vitalidade, em seu tempo, seu ritmo e seu estilo.

Mariátegui não segue uma norma academicamente explícita, não elaborou um manual metodológico, uma teoria expressa, um abc para a analise correta, um dever ser epistemológico. Sua contribuição não é um tratado sistemático mas um livro vivo em que a ideologia e a ciência política são respostas a uma conjunção do imediato, do real, do presente, que funde o mítico, o artístico criativo e o elemento doutrinário e racional representando plástica e antropomorficamente qualidades idiossincráticas de uma pessoa que quer dar forma mais tangível à paixão política.

É surpreendente que um homem com a capacidade de abstração conceitual de Mariátegui, em sua busca da vontade coletiva, eleja o empírico não o teórico, mas o experimentador. A natureza sistemática e viva de sua obra, sua forma dramática e mitológica sugerem uma tarefa imprevisível. Não basta com fazer explícita sua substância singular, já que esta não depende da objetividade na representação mas de sua participação íntima, subjetiva e pessoal, eliminando toda mediação que comunica diretamente seu espírito, que repete, e que conserva sua diferença. Ele disse mais de uma vez: “Repito que não sou um crítico imparcial e objetivo, meus juízos se nutrem de meus ideais, de meus sentimentos, de minhas paixões”, quer dizer daquilo que eu chamo a integração de sua ideologia inconsciente com sua ideologia consciente, sua paixão lúcida, “contratransferência criativa” e “subjetividade objetiva”.

É para o Peru a personificação vida da vontade coletiva. Creio que Mariátegui necessitava estar unido mas ao mesmo tempo separado da vida comum, única forma de manter a indispensável diferenciação, individualização, separação e identidade. Alcança o dado biográfico, a anedota, a origem social, a mestiçagem do corpo e do espírito, o drama físico e moral, a agonia e a morte. O indivíduo para Mariátegui, torna-se metáfora da vida coletiva.

Em meu trabalho sobre “Psicanálise e Violência” publicado na revista Tiempo y vida (outubro 1980), na última conclusão manifestava que para mim o reconhecimento consciente e inconsciente da morte é a fonte de maior criatividade para o ser humano.

Sua morte prematura trunca um processo social, sua magnífica vida era já um processo social em si mesma. Não se simboliza na letra ou no canto de uma gesta imaginária, se encarna direta e fisicamente em um homem cujas confissões valem como método, ética ou princípio metafísico. Como ele mesmo disse: “Meu pensamento e minha vida constituem uma só coisa, um único processo”  que compreende sua morte e o pensamento de sua íntima e estreita proximidade. Aventureiro e metafísico, possui um estilo generosamente dotado de equanimidade, de harmonia, de intensidade, consistência, consequência e bom cerne. Dizer tudo e pronto, sua concepção agônica, subscreveria esta frase de Rilke que ele cita y com a qual me identifico plenamente “O homem nasce com sua morte, sua morte está com ele; é a conjunção e talvez a essência mesma da vida, o destino do homem se cumpre se morre sua morte”.

Procura o mito “pelos caminhos universais pelos quais nos recriminam vamos nos acercando cada vez mais a nós mesmos” no significativo final dos Siete Ensayos.

Outra característica mariateguista é a multiplicidade temática que lhe permite beber de todas as fontes, pintando-as com sua própria cor e de clara aproximação à tais fontes que produz  transbordamentos disciplinares e extra disciplinares. Mariátegui não é o apologista sectário e dogmático.

Uma das característica essenciais é a intimidade que revela o mais profundo do ser e não nos distancia de nosso espírito universal.

Não se trata de mostrar os resultados de uma busca mas de dar conta dessa busca, viagem, passeio ou aventura íntima e social. “Partimos para o exterior não em busca do segredo dos outros mas do segredo de nós mesmos”; quer dizer, algo que sempre deve estar presente, começar por si mesmo. E não ha mais que seguir suas palavras quando diz: “Eu conto minha viagem em um livro de política, Espelucín conta o seu em um livro de poesia, ha diferença de temperamento mas não de espírito. Os dois embarcamos na barca de ouro em busca de uma ilha boa, os dois na aventura encontramos a Deus e descobrimos a humanidade.”

Não é evadir-se da vida, é produzir o real. Enfatiza o espírito do conteúdo e a necessidade de alcançar um destino, um ser nacional e universal com efetiva liberdade, dignidade e bem-estar.

A revolução política de Mariátegui está em seus textos em plano de manifesto, é uma revolução da linguagem política, do estilo do vernáculo no nível inconsciente, é uma revolução do espírito, uma linguagem de intensidade e de paixão lúcida.

Identifico-me com o fato de não buscar a objetividade, nem coerência nem simplicidade nem sequer um tema original, talvez por ser algo nietzschiano, como Mariátegui, pelo maneira de escolher os temas além dos temas. Não fazer separações bizantinas entre conteúdo e forma nem daquilo do que um livro diz e a maneira como está dito. Mais além da crítica só cita por amor. Não amava o autor restrito à produção intencional e deliberada de um livro, mas aqueles cujos pensamentos formavam um livro espontânea e inadvertidamente. Apesar de que muitos projetos de livros agitavam sua vigília sabia antecipadamente que só realizaria o que um imperioso impulso vital lhe ordenasse e também conforme a um princípio de Nietzsche, esperava e reclamava ser reconhecido por dar todo seu sangue por suas ideias.

*É professor na Alemanha, escreveu para a Cátedra Mariátegui – Lima, Peru


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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