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Zibechi: irresistível retorno dos militares ao poder no Brasil é questão de tempo

Um governo presidido pelo general Mourão, representaria um paradoxo: 35 anos de democracia eleitoral desembocaram no retorno militares ao governo
Raúl Zibech
Diálogos do Sul Global
Montevidéu

Tradução:

“Bolsonaro não governa mais e o Brasil vive uma desobediência civil”, escreveu o colunista Merval Pereira na edição de 26 de março do diário O Globo. Não é qualquer jornalista nem qualquer meio. Pertence à cadeia Globo. O Globo é o diário de maior circulação no Brasil e Pereira é um dos jornalistas mais próximos da família Marinho, proprietária do grupo. 

O Globo apoiou o golpe de Estado de 1964, manteve estreitos laços com todos os governos militares e foi opositor ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Por isso, suas críticas a Bolsonaro podem ser tomadas como um termômetro do que pensa o grande empresário brasileiro. 

A rigor, o ainda presidente de Brasil, ou “anti presidente” como o batizou a jornalista Eliane Brum, nunca teve uma posição confortável.

Desde os primeiros meses de 2019, quando assumiu a presidência, foi o vice Hamilton Mourão, ex-general de linha dura, o encarregado de cerzir os desgarramentos diplomáticos provocados pela incontrolável verborreia de Bolsonaro.

Pereira sustenta que o presidente “está isolado por sua própria escolha”. Efetivamente, rompeu com o seu próprio partido, o PSL, com o qual chegou ao governo, com o Congresso, com todos os governadores e, como se fosse pouco, com o principal cliente comercial do Brasil, a China.

Mas o dado mais recente, disparado diretamente pela banalidade no manejo pelo presidente da crise sanitária provocada pelo coronavírus, é o que Pereira denomina como “um movimento de desobediência civil instalado no país”. 

Em meados de março começou uma corrente ininterrupta de panelaços nas maiores cidades, em resposta à minimização presidencial dos impactos do coronavírus.

Bolsonaro disse que a crise “passará em breve”, que é apenas “um resfriadinho” e que não vê motivo para fechar as escolas, pois o impacto principal é para os maiores de 60 anos. 

Mais grosseiro ainda: “O brasileiro mergulha no esgoto e não acontece nada”. 

Foi um tapa na cara à credibilidade das classes médias urbanas na ciência, nas recomendações de isolamento social da OMS e no que vêm fazendo os governos do mundo.

Um governo presidido pelo general Mourão, representaria um paradoxo: 35 anos de democracia eleitoral desembocaram no retorno militares ao governo

Palácio do Planalto
Hamilton Mourão, ex-general de linha dura, encarregado de cerzir os desgarramentos diplomáticos provocados por Bolsonaro.

O ruído das panelas

Em São Paulo, por exemplo, os panelaços aconteceram nos mesmos bairros de classe média em que Bolsonaro obteve quase 80 por cento dos votos há 18 meses. 

No meu modo de ver, os panelaços alertaram a maioria do empresariado, os grande meios e um setor das forças armadas, sobre a gravidade da situação. 

Inclusive um meio tão conservador como O Estado de São Paulo, próximo às forças armadas, no editorial do mesmo 26 de março, adotou um tom incendiário: “O presidente parece desejar ardentemente o confronto – com os governadores, com o Congresso, com os meios e até com membros de seu próprio governo – para criar um clima favorável a soluções autoritárias”.

O diário apela aos brasileiros “a desconsiderar totalmente o que diz o chefe de Estado”, em particular seu insólito apelo a romper a quarentena e volver à “normalidade”. Especula-se com que ele pode chegar a dissolver o Congresso e instalar um governo ditatorial.

Um dia antes, terça-feira 25, o diário Valor Econômico, porta-voz dos interesses financeiros e industriais, vinculado à Folha de São Paulo, o outro grande meio brasileiro, publicou uma coluna intitulada “Carta de renúncia”, assinada pela jornalista Maria Cristina Fernández.

Nela aparece um dado fundamental. Estaria sendo articulada uma “saída elegante” de Bolsonaro, na qual estariam de acordo inclusive os militares, em troca da anistia aos seus filhos, Carlos, Eduardo e Flávio, conhecidos como 01, 02 e 03.

Aparece um general

Os três podem ser acusados de vários delitos perante a justiça, inclusive do assassinato de Marielle Franco, pelo estreito contacto que Flávio tinha com os assassinos (El País, 9 de fevereiro de 2020).

O grande vencedor seria o vice Mourão, o qual há alguns dias tomou distância das declarações do presidente sobre o coronavírus. E desse modo ficou em posição de se converter em seu substituto. 

Uma das chaves foi dada pelo governador de Goiás, Ronaldo Caiado, do direitista DEM, um aliado de primeira hora do presidente que agora o acusa de irresponsável e de “lavar as mãos responsabilizando outras pessoas por um colapso econômico”. 

“Um estadista tem que ter coragem suficiente para assumir as dificuldades”, sentenciou Caiado.

É exatamente o perfil de Mourão. Férreo defensor da ditadura militar (1964-1985), Mourão foi afastado do Comando Militar do Sul, um dos mais poderosos do país, pelas críticas públicas que fez em 2015 ao governo de Rousseff.

Em 2017, quando governava Michel Temer, pediu uma “intervenção militar” que acabasse com a corrupção da classe política no Brasil (La Nación, 6 de agosto de 2018).

No meio da crise, o Comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, publicou um vídeo dirigido aos militares no qual assegura que o combate ao coronavírus “pode ser talvez a tarefa mais importante da nossa geração”. 

Olhar para trás para ver adiante

Militares que na década de 1960 consideraram que sua principal tarefa era o combate ao comunismo, se prestam agora a retornar ao poder com a escusa, igualmente precária, de “salvar o povo e o Brasil”. 

Se a crise se encaminhasse para um governo presidido pelo general Mourão, estaríamos diante de um paradoxo: 35 anos de democracia eleitoral desembocaram no retorno completo das forças armados ao governo, que já contam com mais de cem dos seus nos escalões mais altos da administração. 

Seria algo assim como um “governo militar democrático” para gerir um “Estado policial digital”, um modelo que está provando ser exitoso para os interesses do 1% mais rico durante esta crise sistémica.

O desafio, e o problema, é que o Brasil costuma marcar tendências no continente. 

Os trabalhadores e os setores populares deveremos reaprender a lutar em condições de repressão, controle policial-militar da sociedade e de precariedade material na vida cotidiana.

Um retorno à década de 1960, quando organizar-se implicava riscos que só podiam ser afrontados com fraternidade, solidariedade e integridade ética. 

Raúl Zibech, Jornalista uruguaio. 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Raúl Zibech

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