Heitor Villa-Lobos, falecido há 60 anos, jamais poderá ser esquecido. Ele foi o principal responsável pela descoberta de uma linguagem peculiarmente brasileira em música de arte, o maior expoente musical de todo tempo moderno.
Carioca, nascido em 1887, filho de Raul Villa-Lobos, músico amador, foi este quem lhe deu as primeiras instruções e adaptou uma viola usada para que o pequeno Heitor iniciasse seus estudos de violoncelo. Aos 12 anos, pobre e órfão do pai, Villa passou a tocar violoncelo em teatros, cafés e bailes. Em 1903, terminou com bolsa de estudos os estudos básicos no Mosteiro de São Bento.
Costumava juntar-se aos grupos de choro, que foi sua primeira paixão, tocando violão em festas e em serenatas. Foi nessa época que conheceu e tocou em parceria com músicos como Catulo da Paixão Cearense, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e João Pernambuco.
Villa, entretanto, possuía uma necessidade íntima de conhecer a fundo a musicalidade e o folclore de nosso povo. Tendo como recursos unicamente sua viola e a capacidade de ensinar, realizou suas famosas viagens pelo norte e nordeste do Brasil, que duraram mais de sete anos. Os instrumentos musicais regionais, as cantigas de roda e os repentistas deixaram-no absolutamente impressionado. O jovem Villa assimilou em cada povoado, em cada cidade, nas tribos indígenas, nos sons dos animais da mata, a musicalidade de nosso povo e seus regionalismos.
Não sem razão é lhe atribuída a “descoberta musical” do povo brasileiro. E nosso folclore será a base sobre a qual ele edificará sua imensa criação artística, que por toda uma vida nem mesmo doenças chegaram a interromper. Será uma exuberante floresta tropical de obras, maravilhosa, imbricada, extasiante.
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O maestro Heitor Villa-Lobos
Retorna ao Rio em 1912 e já em 1913 casa-se com a reconhecida pianista Lucília Guimarães. O domínio exímio do piano, que principiara com uma tia, ele o deveu à sua primeira esposa.
Se as primeiras composições de Villa-Lobos trazem a marca dos estilos europeus da virada do século XIX para o XX, contendo influências de Wagner, Puccini, Cesar Frank e dos impressionistas, será nas “Danças Africanas” (1914) que ele iniciará seu “repúdio” aos moldes europeus e principiará o desenvolvimento de uma linguagem própria, que viria a se firmar nos revolucionários bailados “Amazonas” e “Uirapuru” (1917), elogiados por ninguém menos Debussy.
Villa chegará à década de vinte, perfeitamente senhor de seus recursos artísticos, revelados em obras que conquistaram até mesmo o Velho Mundo.
Já aquilo que podemos denominar de uma segunda fase musical, é essencialmente pianística, cheia da leveza da descoberta. Nela encontramos as “Cirandas”, a “Lenda do Caboclo”, a “Prole do Bebê”. As experiências pessoais com o folclore brasileiro resultaram em “O Guia Prático”, uma coletânea de canções destinadas à educação musical nas escolas.
Em 1922, Villa-Lobos participa da Semana da Arte Moderna. Nesse momento, ele deu forma musical a uma boa parte da poesia do modernismo brasileiro, destacando-se a adaptação do lirismo íntimo de um Manuel Bandeira, assim como às “Quatorze Serestas” de 1925. Deste período ainda teremos o “Noneto”, quase uma panorâmica folclórica do interior brasileiro, traduzida pelo gênio do compositor. Também os “Choros” e a “Alma Brasileira”, para voz e piano, aquela que inclui um dos pontos mais altos de toda a nossa musicalidade, o “Rasga Coração”.
Mário de Andrade comentou que Villa, ao universalizar o elemento básico da música, que é o canto popular, não o traiu, mas nele despertou o que há de mais humano.
Será um Villa, já formador de opinião, que viajaria a estudos para a Europa em 1924 e novamente em 1927, financiado pelo milionário carioca Carlos Guinle, retornando ao Brasil em 1930. Durante esse tempo no Velho Mundo, seu estilo eclético incorporou uma forte influência de Debussy e de Stravinsky, tendo ainda adensado um profundo estudo de Bach e de outros mestres do passado.
No retorno, Villa engaja-se na nova realidade produzida pela Revolução de 1930; realiza uma turnê por cidades, e introduz a “Cruzada do Canto Orfeônico”, levada a cabo na cidade do Rio de Janeiro. Em 1932, Vargas, de quem Villa-Lobos tornar-se-ia grande amigo, assinou um decreto que tornava obrigatório o ensino de canto orfeônico nas escolas. No mesmo ano, foi criado o Curso de Pedagogia de Música e Canto Orfeônico para Professores do Distrito Federal, projetos de Heitor Villa-Lobos.
Através de seu projeto de educação musical, Villa-Lobos procurava aproximar-se das massas populares, objetivando incutir-lhes os ideais de civismo, disciplina e ordem. De acordo com o historiador Arnaldo Contier, pela primeira vez no Brasil, um grande número de pessoas, em coro, teria entoado marchas e canções cívicas.
Villa-Lobos definia o canto orfeônico como um “fator poderoso no despertar dos sentimentos humanos, não apenas os de ordem estética, mas os de ordem moral, sobretudo aqueles de natureza cívica. Influi, junto aos educandos no sentido de apontar-lhes… a noção de disciplina, não mais imposta sob a rigidez de uma autoridade externa, mas aceita, entendida e desejada. Dá-lhes a compreensão da solidariedade entre os homens, da importância da cooperação, da anulação das vaidades individuais e dos propósitos exclusivistas…”
Mirelle Ferreira em sua tese sobre Villa, concluiu: “O grande interesse do maestro ao desenvolver seu projeto era ensinar música às crianças nas escolas públicas. Ainda que fosse bem remunerado pelo Estado, não podemos afirmar que o dinheiro movia seu trabalho. Embora expressasse uma postura política alinhada ao Estado Novo, a preocupação principal dela era a música, o ensino, a educação.”
No ano de 1937, o mestre desenvolverá a “Missa de São Sebastião” e a suíte “O Descobrimento do Brasil”, obra prima de uma polifonia desvairada, tropical, quase do tamanho de um “O Guarani” de Carlos Gomes do século passado.
O casamento de Villa com Lucília Guimarães termina na década de 1930, conflituoso como já o era de há muito. Lucília jamais lhe concederia o divórcio.
Em 1936, Villa conhecerá Arminda Neves d’Almeida, a Mindinha, com quem viverá até a morte, em 1959. A ex-aluna foi sua grande companheira tanto nos momentos mais difíceis, após a cirurgia de câncer a que deverá se submeter em 1948, quanto nos momentos de maior glória mundial vivida nos anos de 45. Deve-se a ela a compilação e a divulgação de parcela imensa da obra de Villa que permanecera inédita durante a vida.
Em 1942, quando o maestro Stokowski e a The American Youth Orchestra foram designados pelo presidente Roosevelt para visitar o Brasil, o maestro solicitou a Villa-Lobos que selecionasse os melhores músicos e sambistas, a fim de gravar a coleção “Brazilian Native Music”. Villa-Lobos reuniu Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Cartola, que sob sua batuta realizaram apresentações e gravaram uma coletânea de discos, pela Columbia Records. Esta coleção, de enorme repercussão, incluiu definitivamente a música brasileira no repertório internacional de vanguarda.
Em 1944/45, Villa-Lobos viajou aos Estados Unidos para reger as orquestras sinfônicas das cidades Boston e de Nova York. Apareceu pessoalmente no filme da Disney “Alô, Amigos” (1940), ao lado do próprio Walt Disney, seu fã.
Em uma entrevista, em Nova York, Villa-Lobos foi perguntado sobre o uso de melodias indígenas em sua música. Ele respondeu que usava, sim, mas que eram melodias tão antigas que os índios atuais não as conheciam. Pergunta: “Se as melodias foram esquecidas pelos índios de hoje, como o senhor conseguiu entrar em contato com elas?”. Villa-Lobos, rápido: “Pelos papagaios. Os papagaios brasileiros ouviram essas melodias há muitos anos e não as esqueceram. Eles vivem até uma idade muito avançada. Ouvi os papagaios e anotei as melodias”.
Tirada típica do caráter e temperamento do compositor, um trocista emérito.
Em 1945, fundou a Academia Brasileira de Música.
A fase que muitos chamam de neobarroca de Villa, estendeu-se pelos quase quinze anos posteriores, cujos maiores destaques foram as “Bachianas Brasileiras” em número de nove, para diversas formações instrumentais e vozes. Um tributo a Bach, que nosso maestro considerava o maior folclorista de todos os tempos. As “Bachianas Brasileiras” são uma síntese absolutamente “sui generis” e genial, que funde sob as formas pré-clássicas elementos do folclore brasileiro, como a música caipira, com a intenção explícita de construir uma versão brasileira dos “Concertos de Brandemburgo”.
Trabalho de genialidade inigualável, alguns trechos se tornaram mais populares que outros: o quarto movimento da Bachiana n° 2, a tocata “O Trenzinho do Caipira”, a ária “Cantilena”, que abre a Bachiana de n° 5; o coral “O Canto do Sertão” e a dança “Miudinho”, ambos na Bachiana n° 4.
Appleby, um de seus biógrafos, destaca que o compositor, sempre bem humorado, também se dedicava a fantasiar os relatos sobre seu passado. “A cada pessoa ele contava uma história diferente sobre suas viagens entre 1905 e 1911, sobre o tempo em que teria morado em tribos indígenas”. Ao analisar o legado do compositor, o biógrafo diz que “Villa-Lobos criou o reconhecimento internacional da música brasileira que tornou possível o sucesso, mais tarde, da música popular brasileira”, colocando-o como o precursor de Tom Jobim, Caetano Veloso e Chico Buarque.
“Villa-Lobos não ligou para diferenças estilísticas entre música clássica e música popular”, afirma. “Tentou exprimir a alma brasileira com as ideias dele, formulando seu estilo individual.”
Não constitui exagero afirmar-se que com Heitor Villa-Lobos, a música brasileira alcançou a sua independência!
*Carlos Russo Jr é colaborador da Diálogos do Sul
Bibliografia:
Carpeaux, O.M.. Uma nova história da música. Zahar Editores.
Sadie, S.. Dicionário Grove de Música: edição concisa. Zahar Editores,1994.
Contier, A.. Identidade cultural e estética nacionalista na música brasileira (1922-1945).
Appleby, D.. Heitor Villa-Lobos: a bio-bibliography. Greenwood Press, 1988.
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