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Tragédia anunciada: neoliberalismo e normalização do fascismo produziram Milei

Ascensão do candidato foi enormemente facilitada pelo contexto mais amplo de direitização social e política, associado à crise econômica argentina
Gilberto Calil
Esquerda Online
São Paulo (SP)

Tradução:

A imprensa corporativa argentina recebeu com enorme surpresa a votação obtida pelo candidato “libertário” Javier Milei durante as PASO (Primárias Abertas Simultâneas Obrigatórias), uma votação prévia na qual os eleitores antecipam o voto no partido de sua preferência, definem quem será o candidato sempre que há mais de um aspirante daquele partido, e definem quais partidos poderão participar do processo eleitoral, sendo necessário obter um mínimo de 1,5% dos votos nas PASO para disputar a eleição. As PASO têm uma importância grande também pelo fato de que normalmente os índices modificam-se muito pouco entre elas e a eleição propriamente dita, sendo portanto um forte indicativo da tendência eleitoral.

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O resultado foi impactante, com uma vitória contundente do candidato da extrema-direita, que a despeito da frágil estrutura partidária de seu La libertad avanza, obteve 30% dos votos e foi o mais votado, à frente da soma dos candidatos do direitista Juntos por el Câmbio (28,2%) e do kirchnerista Unión por la Pátria (27,3%). Outras duas formações superaram a barreira mínima e participarão das eleições: o conservador Hacemos Nuestro País (3,8%) e a frente de esquerda (FIT – Unidade), com 2,65%.

Ascensão do candidato foi enormemente facilitada pelo contexto mais amplo de direitização social e política, associado à crise econômica argentina

Redes sociais Javier Milei
Javier Milei

O crescimento da extrema-direita argentina

Observando à distância, é impactante observar a expressiva votação de um candidato que relativiza os crimes da ditadura militar em um país como a Argentina, no qual a justiça foi feita e a memória dos crimes da ditadura é cotidianamente reforçada. Ainda assim, não deveria haver surpresa com o triunfo de uma candidatura que expressa um profundo mal-estar frente à prolongada crise argentina, ainda que paradoxalmente receita doses ainda maiores das mesmas políticas ultraneoliberais que estão na base desta crise.

Javier Milei, economista ultraliberal que se esforça para apresentar-se como um crítico “antissistema” destacou-se inicialmente pela maneira folclórica que se apresenta – despenteado, com vocabulário chulo pretensamente “autêntico” e aberta oposição ao “politicamente correto”. Sua ascensão foi enormemente facilitada pelo contexto mais amplo de direitização social e política.

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De forma análoga ao processo que facilitou a ascensão do bolsonarismo no contexto das manifestações reacionárias de 2015-2016 apoiadas também pela direita tradicional, o discurso fascistizante de Milei foi sendo normalizado pela radicalização da direita tradicional argentina, reunida no Juntos por el Cambio, e até mesmo de setores da coligação governante kirchnerista.

Práticas fascistas

O sociólogo Daniel Feierstein relacionava, já em 2019, um conjunto de práticas sociais em sua avaliação são de caráter fascista que passaram a ser propagadas por representantes das principais forças políticas:

1) campanhas de delação contra professores, em moldes análogos aos que no Brasil foram disseminadas pelo Escola sem Partido;

2) combate às políticas de gênero, em perspectiva crescentemente fundamentalista;

3) criminalização das lutas sociais, contra camponeses, docentes e grupos defensores dos direitos humanos;

4) cerceamento ao jornalismo independente;

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5) estímulo ao porte de armas e à “justiça com as próprias mãos”;

6) perseguição a opositores políticos, com linchamentos virtuais e processos judiciais;

7) antissemitismo e normalização da ação de grupos neonazistas. De acordo com Feierstein, embora estas posições fossem difundidas em especial pela direita tradicional, alguns aspectos como o radical punitivismo penal foram assumidos inclusive por expoentes do kirchnerismo. Não é difícil compreender que este movimento produz a normalização da extrema-direita, alargando os limites do que parece ser “aceitável”.1

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No contexto da pandemia, a direita macrista (Juntos por el Cambio) assumiu crescentemente uma posição negacionista e em oposição às políticas de contenção defendidas pelo governo nacional2. Esta posição favoreceu, uma vez mais, o discurso de Milei, que sentiu-se ainda mais à vontade para propagar seu radical discurso ultraneoliberal individualista, que em nome da “liberdade individual” caracterizava como ditatorial qualquer política visando a preservação da vida, utilizando inclusive argumentos e práticas muito semelhantes às do bolsonarismo.

“Liberal na economia, conservador nos costumes”: fascista

Javier Milei é um candidato fascista, ainda que não se apresente como tal. O eixo do seu discurso é a defesa de uma radical diminuição da ação estatal na economia, em termos próximos aos do anarcoliberalismo, apresentando-se como libertário, na tradição do libertarianismo estadunidense (ver vídeo abaixo. No entanto, associa esta defesa fundamentalista da liberdade individual a um profundo e radical conservadorismo no campo dos costumes, que favorece o apoio de grupos reacionários de caráter fundamentalista religioso.

Ainda que pareça bizarra, esta fórmula assumida igualmente pelo bolsonarismo e sintetizada na associação Bolsonaro-Paulo Guedes, remonta aos Estados Unidos da década de 1970, quando o “libertário” Murray Rothbard propôs a síntese entre conservadorismo social e cultural e ultralibertarianismo econômico, para o que cunhou a expressão “paleolibertarianismo”.

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Rothbard propunha o abandono de posições tradicionalmente defendida pelos libertarians estadunidense, como a defesa da legalização do aborto e do uso recreativo de “drogas”. Com isto, visava facilitar o apoio dos setores socialmente conservadores, em especial aqueles vinculados ao fundamentalismo religioso.

Esta síntese, que hoje se resume na propalada fórmula “liberal na economia, conservador nos costumes”, permitiu que Rothbard participasse do processo de guinada reacionária no Anos Reagan e atualmente inspira inúmeros movimentos de extrema-direita, em especial aqueles vinculados à rede internacional inspirada em Steve Bannon e que conta com Eduardo Bolsonaro como um de seus principais articuladores, reunindo o bolsonarismo, os espanhóis do VOX, os governos fascistizantes da Hungria e Polônia e o La Libertad Avanza de Milei.

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Eduardo Bolsonaro mantém ligação próxima com Milei, atua na articulação internacional destes grupos de caráter fascista e realizou 125 viagens internacionais com esta perspectiva (das quais 11 à Argentina)3. Foi na Argentina que Eduardo Bolsonaro buscou a última cartada do bolsonarismo para descredibilizar as urnas eletrônicas às vésperas do segundo turno, com a live realizada com o “consultor político” Fernando Cerimedo, destacado intelectual da extrema-direita argentina, colunista do La Derecha Diario e que endossou todas as afirmações mentirosas do bolsonarismo contra a lisura das eleições.

O fascismo de Milei como sintoma da crise política

A despeito de seu caráter reacionário, o fascismo emerge e ganha força sempre em contextos de crise política e crescente descontentamento. No processo argentino, como em diversos outros países, progressivamente a rebeldia tornou-se de direita, como sugere o provocativo livro do historiador Pablo Stefanoni,4 cujo subtítulo deixa evidente que não deveria haver surpresa com o êxito político de Milei:

“Como o antiprogressismo e a anticorrupção política estão construindo um novo senso comum (e porque a esquerda deveria levá-los a sério)”. Feierstein acrescente que o “que se vayan todos”, consigna política vazia e despolitizante assumida por parte da esquerda argentina, facilitou o avanço do fascismo, tendo seu sentido facilmente capturado por ele: O ‘que se vayan todos’ tendeu a homologar projetos contraditórios. A focalização do inimigo na ‘casta política’ alienou a compreensão dos processos mais estruturais da ação social”5.

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Isto porque “O fascismo do século 21 se constrói sobre esta demonização da política, mas, ante o fracasso na gestão da maioria destes regimes empresariais, busca agora projetar os ressentimentos e frustrações através da habilitação do ódio, o qual requer construir um inimigo sobre o qual descarregá-lo”6 Estes inimigos sociais são construídos pelo fascismo reiteradamente, na “ameaça comunista”, no “professor doutrinador” ou na instrumentalização do sentimento de insegurança7.

A responsabilidade do kirchnerismo

A crise política, social e econômica na Argentina é intensa e inegável. O atual governo, tendo como presidente Alberto Fernández e como vice Cristina Fernández de Kirchner, foi eleito com larga margem de votos, em um contexto de agravamento da crise em consequência das políticas neoliberais de Macri. Colocava-se, portanto uma expectativa de retomada de uma perspectiva desenvolvimentista, ainda que em um cenário internacional adverso (que se agravou com a pandemia).

Fernández chegou a ter expressivo apoio popular, nos primeiros meses da Pandemia, quando sustentou políticas efetivas de contenção. No entanto, como demonstra Feierstein, frente à radicalização negacionista das direitas (liberal e fascista), seu governo assumiu uma política errante e contraditória, e embora mantendo no nível discursivo a defesa da contenção, na prática flexibilizou todos os controles e viu a reversão dos êxitos iniciais. Para piorar, Fernandez foi flagrado em uma festa clandestina de aniversário de sua esposa, em julho de 2000, o que favoreceu enormemente o discurso dos negacionistas e fez sua política parecer hipócrita.

As opções políticas deste governo na gestão econômica, ao contrário do que dele se esperava, reforçaram o modelo neoliberal e agravaram a crise em todas as suas dimensões. Seu ponto culminante foi o acordo com o Fundo Monetário Internacional, que inclusive levou à ruptura entre Cristina Kirchner e o presidente.

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A presença de Sérgio Massa como Ministro da Economia sintetiza as contradições do governo. Em 2015, Massa apresentou-se como candidato independente, tentando se situar em uma posição intermediária entre o kirchnerismo e a direita tradicional, tendo sido o terceiro mais votado. Reconciliou-se com o kirchnerismo e assumiu o Ministério da Economia em julho de 2022, assumindo a posição de “super-ministro”, mantendo políticas de corte neoliberal.

Sua imposição como candidato por parte da estrutura partidária do Unión pela Pátria vincula diretamente a candidatura desta coligação com os fracassos na área econômica8. Para muitos no campo progressista, o esperado era que o avanço da extrema-direita dividisse os votos do campo conservador, fazendo minguar a votação do Juntos por el Cambio. No entanto, a comparação com os resultados eleitorais de 20199 demonstra que dois terços dos 30% da votação conquistada pelo fascismo foram obtidos no campo kirchnerista, que perdeu mais de 20% dos votos (de 47,6% para 27,3%.

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O Juntos por el Cambio também recuou, mas menos de 4% (de 32,1% para 28,2%)10. A esquerda anticapitalista, por sua vez, foi incapaz de incorporar o sentimento antissistema e sua principal formação teve uma redução de votos, de 2,86% em 2019 para 2,7% na PASO. Além disso, pesquisas indicam que Milei avançou sobretudo entre os mais pobres e entre os mais jovens, um eleitorado muito mais propenso ao kirchnerismo (ou à esquerda) do que ao macrismo.

Esta lição é válida também para o Brasil e para outros países nos quais o fascismo está na oposição, construindo ou reafirmando uma postura pretensamente antissistêmica e apostando no fracasso da gestão para se colocar (novamente) como alternativa.

O fracasso do governo Fernández nos indica, uma vez mais, que os efeitos das políticas neoliberais são o melhor fermento para o crescimento do fascismo, e que portanto, qualquer perspectiva antifascista consequente deve assumir como parte desta luta o enfrentamento às políticas neoliberais, mesmo que propostas por governos “progressistas” e em nome da luta contra o fascismo.


Notas

1 FEIERSTEIN, Daniel. La construcción del enano fascista: los usos del ódio como estrategia política en Argentina. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2019, p.68-91.

2 FEIERSTEIN, Daniel. Pandemia: un balance social y político de la crisis del Covid. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2021. Em especial os capítulo 2 (De la negación y otros demônios) e 3 (Proyección, paranoya y otras teorías conspirativas).

3 https://noticias.uol.com.br/colunas/juliana-dal-piva/2023/08/07/eduardo-bolsonaro-fez-125-reunioes-com-ultradireita-na-america-latina-e-eua.htm

4 STEFANONI, Pablo. La rebeldía se volvió de derecha? Buenos Aires: Siglo XXI, 2022. O libro tem uma versão brasileira, publicada pela Edunicamp.

5 FEIERSTEIN, Daniel. La construcción del enano fascista, p. 132.

6 Idem, p. 133.

7 Cinco dias antes da eleição, o assassinato de uma criança de 11 anos comoveu a Argentina e foi objeto de uma cobertura sensacionalista da mídia corporativa argentina. Considerando-se a centralidade do tema da segurança no discurso de Milei, é muito provável que este episódio o tenha beneficiado.

8 Nas PASO, Massa enfrentou um jovem candidato vinculado ao “peronismo de esquerda”, Juan Grabois, que praticamente sem nenhum apoio dos dirigentes mais destacados, obteve 5,9%, contra 21,4% de Massa.

9 Comparamos aqui o resultado das PASO de 2023 com o da eleição de 2019, sem desconsiderar o fato de que o resultado efetivado na eleição em outubro próximo pode ter diferenças.

10 Além destes, em 2019 teve votação expressiva o candidato liberal Roberto Lavagna, terceiro mais votado, com 8,2% dos votos. Em 2023, Lavagna apoiou Schiaretti, igualmente o terceiro mais votado, mas com votação mais baixa, de 3,8%. Portanto é provável que parte de seus votos tenha sido também capturada por Milei.

Gilberto Calil | Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Editor da Revista História & Luta de Classes. Presidente da ADUNIOESTE e integrante da direção do ANDES-SN. Tem pesquisas sobre fascismo, hegemonia, Estado e Poder, Gramsci e Mariátegui


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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