A notícia do falecimento da histórica dirigente das Mães da Praça de Maio, Hebe de Bonafini, comoveu ontem de manhã (20), quando todos estavam ligados ao Mundial de Futebol no Catar, e o primeiro anúncio chegou via Twitter da vice-presidenta Cristina Fernández de Kirchner, que escreveu: “Queridíssima Hebe, Mãe da Praça de Maio, símbolo mundial da luta pelos Direitos Humanos, orgulho da Argentina. Deus te chamou no dia da Soberania Nacional… não deve ser casualidade. Simplesmente obrigada e até sempre”.
O governo do presidente Alberto Fernández decretou três dias de luto e a notícia se espalhou pelo mundo, comovendo especialmente aqueles países cujos governos populares desafiavam a dependência e as “ameaças Imperiais”.
Também por Twitter, o presidente Fernández se despediu: “com profunda dor e respeito a Hebe de Bonafini, Mãe da Praça de Maio e lutadora incansável pelos direitos humanos. Compartilho esta coluna habitual comovido pela morte de Hebe, da qual fiquei sabendo recentemente. Por ora, só consigo dizer que, na cabeça do orgulho nacional, e da admiração do mundo, há um lenço branco. Que isso é imortal, como Hebe”.
Co-fundadora da Mães da Praça de Maio, em plena ditadura militar, em 1977, ela esteve nas rondas de mulheres de lenços brancos que se convocaram para exigir à Junta Militar da ditadura – instalada depois do golpe de estado de 24 de março de 1976 – que lhe informassem onde estavam seus filhos sequestrados e desaparecidos.
Enquanto o terror silenciava e paralisava o país, as Mães, em uma vigília solitária na frente da Casa Rosada (de governo) desafiaram tudo, depois de terem batido nas portas dos quartéis, da Igreja, embaixadas, sem receber nenhuma resposta.
Bonafini, a quem a ditadura lhe desapareceu dois filhos e uma nora, tinha 93 anos e seguia lutando há 46. Sua saúde havia se abalado nos últimos meses. Esteve internada e continuava sob controles médicos apesar de que nunca deixou-se de escutar sua voz diante de momentos álgidos, como a tentativa de assassinato contra Fernández de Kirchner em 1º de setembro passado.
Então, denunciou o crescimento de grupos fascistas no país e também nos setores mais radicalizados da direitista coalisão Juntos por el Cambio, como na Proposta Republicana (Pro) que lidera o ex-presidente Mauricio Macri.
Fiz uma entrevista a Hebe na Casa das Mães, em frente à Praça do Congresso, e ao finalizar lhe perguntei se teve medo em algum momento. Ela me respondeu que a força que a mobilizava eram seus filhos e todos os desaparecidos. “Todos são meus filhos. Todos são minhas forças”. Ali mesmo fundou a Universidade das Mães.
Reprodução – Twitter
Hebe de Bonafini: “Não sei parar quando falo, nem dizer o que não sinto”.
Ao lhe perguntar se ela era militante antes do desaparecimento de seus filhos, com toda sinceridade respondeu: “Foi no mesmo dia em que meus filhos desaparecidos me transformaram no que sou agora, em militante. Eu me ocupava em ter sua comida favorita para quando eles chegavam, para que se sentissem bem. Me ocupava da casa, suas roupas, tudo, e não soube até o dia em que comecei a buscá-los que eles estavam militando, que quando falavam muito baixo não estavam falando de sua vida, estavam conspirando. Fui junto às outras mães a nos enfrentar à polícia com a única arma que tínhamos: o lenço branco. A polícia não sabia o que fazer ante este grupo de mulheres, que chorando ou aos gritos clamavam por seus filhos. Não havia tempo para o medo. Por isso, para mim, todos eram meus filhos. Também surpreendemos à ditadura porque houve imprensa estrangeira. Não sabiam o que fazer”.
Presidentes da América Latina exaltam Hebe de Bonafini, líder das Mães da Praça de Maio
Forte, decidida, impulsiva, de uma sinceridade onde não cabiam as diplomacias, ela foi em frente, se solidarizou com todos os povos em luta. Entendeu a quem se enfrentava a América Latina. “A revolução cubana me deu forças. Vendo tudo o que faziam em sua resistência e a fortaleza desse povo, de grande generosidade. Para mim, em Cuba tiveram sentido as palavras dignidade, justiça, solidariedade. O comandante Fidel Castro e todos os dirigentes e o povo cubano nos receberam com muito respeito”.
Em relação à sua personalidade de temperamento forte que lhe trouxe mais de um problema, ela disse: “Não sei parar quando falo, nem dizer o que não sinto”.
Pela Universidade das Mães passaram presidentes como Hugo Chávez Frías, Evo Morales, entre outros, além dos que chegavam à Argentina para conhecer a luta pelos direitos humanos, de como se mantiveram os familiares desde os primeiros dias da ditadura.
A presidenta das Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, recordou a Bonafini como uma grande lutadora. “Tivemos diferenças, mas era uma grande lutadora, é um dia muito triste para todo o país”, sustentou e acrescentou: “Um dia de luta para toda a Argentina (…) Não deixa nada que não seja sua força, com erros como temos todas. Seguramente vamos ter saudades, porque pessoas assim enchem a história”.
Em um dos textos mais belos, a jornalista e escritora Sandra Russo. em “Maternidade e Rebeldia”, na Página/12, escreveu: “Sua voz áspera, carregada sempre de palavras indizíveis, foi durante décadas o som que se escutava muito ao fundo, aí onde jazem as verdades incômodas, essas que ninguém mais se anima a dizer. Hebe ressignificou a maternidade para todas e todos nós”.
Stella Calloni | Colunista da Diálogos do Sul em Buenos Aires.
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