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ToggleEm 7 de dezembro de 2022, o Congresso peruano debatia uma nova moção de vacância contra o presidente Pedro Castillo. Posteriormente, Castillo, em uma mensagem televisionada, decretava a dissolução do Parlamento, a instauração de um governo de concentração nacional e convocava novas eleições parlamentares em um prazo de nove meses.
Depois deste anúncio vários ministros do governo renunciaram, concretamente o ministro de Relações Exteriores, o do Trabalho e o da Justiça. Por sua vez, a vicemandatária Dina Boluarte, também se manifestou contra o que fora anunciado pelo presidente. No mesmo sentido se pronunciaram o Tribunal Constitucional e as Forças Armadas.
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O congresso peruano, com 101 votos a favor, aprovou finalmente a destituição de Pedro Castillo com o argumento de “incapacidade moral”, e ele foi posteriormente detido pela Polícia, situação em que se encontra atualmente.
Dina Boluarte, vicepresidenta da República, assumiu a presidência interina do país e, ao longo dos meses seguintes houve manifestações massivas de apoio a Castillo, duramente reprimidas pelo novo governo, deixando meia centena de mortos e muitos feridos.
A vitória eleitoral de Pedro Castillo nas eleições gerais de 2021 ocorreu em um contexto em que, por um lado, manifestava-se a profunda crise política do país, e por outro lado, a agudização de uma polarização que reúne elementos conjunturais e estruturais mais profundos.
Um ano após golpe contra Castillo, presidente legítimo segue preso sem acusação concreta
Dizia Mafalda, icônico personagem do cartunista argentino Quino, que às vezes o que é urgente não deixa tempo para o que é importante. Nesse sentido, ainda que as dimensões da crise política do Peru se estendam a dinâmicas estruturais e problemáticas que envolvem várias décadas da história do país, há alguns dados recentes que sintetizam este cenário crítico e que são fundamentais para compreender as urgências do Peru.
De 8 a 19 de novembro de 2020, o Peru mudou de presidente em três ocasiões. Desde julho de 2016 e antes da posse de Castillo, o país teve quatro mandatários, três deles destituídos pela ferramenta de “moção de vacância”, isto é, mediante a destituição por meio de uma maioria do Congresso, sem passar pelo voto cidadão.
Ainda que Castillo tenha tentado, em várias ocasiões, articular-se com os demais grupos políticos, finalmente não conseguiu o apoio nem dos outros nem dos seus.
O uso e abuso desta ferramenta, que também foi a utilizada contra Pedro Castillo, gerou controvérsias fora e dentro do país. As manifestações contra o papel do Congresso e a favor da elaboração de uma nova Constituição foram crescendo durante os anos anteriores à vitória de Castillo. Assim, depois de vencer no segundo turno, o novo presidente tinha um mandato claro: resolver a urgência que o país atravessava e que questionava diretamente o papel que estava desempenhando o Parlamento e que impossibilitava a governabilidade e, por sua vez, a redação de uma nova carta magna.
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Foto: Braian Reyna Guerrero/Flickr
Breve passagem de Castillo pela Presidência e sua deposição serviram para ampliar o campo de visão sobre a realidade e o conflito peruano
O cenário de Castillo
A realidade política experimentada pelo breve governo de Pedro Castillo não se diferenciou muito deste cenário anterior; só aumentou. O presidente enfrentou até três processos de vacância que não obtiveram a maioria suficiente na câmara; e teve sérios problemas para legislar devido ao boicote continuado do Congresso, onde não tinha maioria; e, por sua vez, fez frente aos enfrentamentos internos na formação política Peru Livre, a que pertencia. Ainda que o mandatário tenha tentado, em várias ocasiões, articular-se com os demais grupos políticos, finalmente não conseguiu o apoio nem dos outros nem dos seus.
No primeiro turno de 11 de abril de 2021, nenhum candidato conseguiu obter mais de 20% dos votos. Castillo foi o que mais se aproximou, com 18,9% de apoios. Em segundo lugar ficou Keiko Fujimori, filha expresidente peruano, Alberto Fujimori, com 13,4% dos votos. Este cenário explicitava para muitos analistas a evidência de uma ruptura cada vez mais profunda entre o poder oligárquico capitalino representado em Lima, que superava o antagonismo fujimorismo vs anti-fujimorismo; e o resto do Peru, entendido como a maioria rural, camponesa, indígena e postergada – usando o termo do revolucionário nicaraguense Augusto C. Sandino – em seus direitos sociais, econômicos e políticos, que viam no professor rural o representante de seus interesses. Sendo estas comunidades rurais, sobretudo indígenas, por sua vez, as vítimas principais do fujimorismo, não é de estranhar que representassem e que continuem representando as forças populares de apoio mais sólido do Peru Livre e de Pedro Castillo.
Visões antagônicas
Esta vitória surpreendente explicitou duas posições antagônicas: a esperança dos que exigiam uma mudança e o medo dos outros, daqueles que sentiam que uma mudança podia arrebatar-lhes a posição de privilégio de que desfrutavam.
Sendo estas comunidades rurais, sobretudo indígenas, as vítimas principais do fujimorismo, não é de estranhar que representassem as forças populares de apoio mais sólido do Peru Livre e de Pedro Castillo.
Além do que era urgente, esta vitória também abriu espaço para o início de um debate sobre o que era importante: a desigualdade no país, o divórcio entre o mundo rural e o mundo urbano capitalino, entre as sociedades camponesas e indígenas e as grandes famílias do país, sobre o controle dos recursos naturais ou sobre a redistribuição justa dos lucros de exportação das múltiplas matérias primas que possuem. Entre muitos outros temas que o que era urgente fora eclipsando ou deixando em segundo plano.
Além de saber se Pedro Castillo soube ou não realizar o mandato de que o investiram, a verdade é que sua breve passagem pela Presidência e a forma como foi deposto serviram para ampliar o campo de visão sobre a realidade e o conflito peruano.
O presente no Peru
Neste aniversário dos fatos que levaram à prisão de Pedro Castillo, a atualidade política do país está marcada pela libertação do expresidente Fujimori por motivos “humanitários”, o que incide ainda mais no aspecto simbólico da ruptura social no país. Por outro lado, os dois setores aliados para a destituição de Castillo aparecem enfrentados por acusações cruzadas entre a presidenta interina Dina Boluarte, investigada por sua responsabilidade na repressão durante as manifestações, e Patricia Benavides, procuradora da Nação, questionada por uma rede de corrupção.
O Governo de Dina Boluarte, que se nega a qualquer tipo de antecipação eleitoral, também é questionado por sua falta de legitimidade para o cargo dentro e fora do país; mas também por sua responsabilidade por delitos que podem ser sujeitos a consideração como crimes de lesa humanidade, tal como indica a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em seu informe intitulado 'Situação dos Direitos Humanos no Peru no contexto das manifestações sociais', publicado em maio último.
Por sua vez, Castillo defendeu nesta segunda-feira, 4 de dezembro sua excarcelação diante do Tribunal Constitucional do Peru, assegurando que nunca pretendeu dar um golpe de Estado, e sim expressar uma mensagem “de caráter político inesequível”, assegurando que eram outros os que tinham “um golpe preparado há muito tempo” e indicando ao Congresso, à Procuradoria e a outros grupos de poder que, aqueles que, segundo o exmandatário, foram os responsáveis por tornar inviável a governabilidade do país. Ainda com vários processos pendentes, Castillo se encontra imerso em um processo judicial complexo que pode se estender no tempo, e ainda que finalmente seja absolvido, as consequências políticas já são irreversíveis.
O mesmo povo que sofreu as esterilizações forçadas de Fujimori, o roubo de bebês, o espólio continuado de suas riquezas, a humilhação constante de umas instituições em que não confiam, a repressão e a violência, a esperança e a desesperança, lembrou este aniversário exigindo nas ruas de Lima “que saiam todos”; ou em Tacna e Moquegua, seus direitos sobre a água. Finalmente, o urgente e o importante dão-se as mãos em meio à atual encruzilhada peruana.
Carmen Parejo Rendón | RT en Espanhol
Tradução: Ana Corbisier
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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