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ToggleTexto atualizado em 16.02, às 18h12, para correção de informações sobre o entrevistado*
Fantasmas do Massacre no Haiti assombram generais brasileiros. É o caso da fatídica Missão de Estabilização da ONU no Haiti, Minustah, comandada pelo exército brasileiro – talvez o maior vexame militar do Brasil. Sempre é bom lembrar.
Há quase duas décadas, inadvertidamente o governo Lula escolheu militares, que futuramente seriam parte da equipe Bolsonaro, para ir ao Haiti. Entre os quais, o capitão Tarcísio de Freitas.
Na madrugada de 6 de julho de 2005, as tropas da “missão de paz” fizeram uma operação de “pacificação” na maior favela da capital haitiana, Porto Príncipe, conhecida como Cité Soleil, (Cidade do Sol).
Segundo testemunhas, cerca de 300 homens exageradamente armados invadiram o bairro e fuzilaram 63 pessoas, deixando outras 30 feridas. Na época, o comandante da Minustah era a ‘flor de general’ Augusto Heleno, futuro ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), responsável pela inteligência do “anti-governo” de Jair Bolsonaro (PSL).
Milicos acima da lei
A chacina foi denunciada na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A documentação tem como base depoimentos de moradores, além do relatório elaborado pelo Centro de Justiça Global e da Universidade de Harvard (EUA). Na denúncia, a Minustah foi acusada de permitir a ocorrência de abusos, favorecer a impunidade e contribuir para a onda de violência no país caribenho. Todos os crimes são imprescritíveis, mas não para o Brasil: até hoje os governos se omitem, inclusive os do PT.
Já naquela época, o escândalo causou constrangimento ao Palácio do Planalto, chefiado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006). Afinal, quem nomeou o contingente foi a presidência da República.
A questão militar no Brasil está longe de ser resolvida. Fonte ligada ao Ministério da Defesa confirmou ao jornal Brasil de Fato que o governo teria recebido uma solicitação da ONU para substituir o comando das tropas no Haiti. Foi o que aconteceu dias depois, com a chegada do general Urano da Teixeira da Matta Bacellar para o comando.
Produzindo conflitos
O pesquisador Luis Felipe Magalhães, coordenador-adjunto do Observatório das Migrações em São Paulo (NEPO – Unicamp) e pós-doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), esteve no Haiti, onde realizou pesquisa de campo e entrevistou acadêmicos e moradores da capital haitiana.
Um dos temas trabalhados em seu estudo foi a atuação das forças armadas na “missão de paz” no país: “A Minustah muitas vezes produziu conflitos em locais onde não havia conflitos”. E a maioria das entrevistas fala precisamente da comuna de Cité Soleil. “A Minustah está lá, não sabe como operar, não conhece a dinâmica política e das disputas territoriais locais, e a partir do momento que ela entra e faz ações sem estratégia, ela piora o conflito”, analisou Magalhães: “Isso eu ouvi de diversos pesquisadores e diversas pessoas que entrevistei lá”.
Para o pesquisador da PUC-SP, o terremoto ocorrido em 2010 revelou a inoperância da Minustah na manutenção da paz e o agravamento dos conflitos, justamente pela ausência de planejamento estratégico para a contingência. Ele teria constatado que a gloriosa força brasileira não havia criado nenhuma logística territorial de manutenção da segurança alimentar – o que seria um aspecto indispensável para a manutenção da paz e diminuição dos conflitos.
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Militares brasileiros da MINUSTAH em operação na Cité du Soleil, em março de 2011
Experiência criminosa
“A Minustah não tinha desenvolvido essa logística, não sabia como levar operativos, doações, tudo aquilo que o mundo estava doando e transferindo para Porto Príncipe. Por isso, nesse caso, manifestou os mesmos erros que demonstrou em ações militares pontuais: piorou a questão”, explica Magalhães.
Em 18 de fevereiro de 2018, Bolsonaro demitiu Gustavo Bebiano (PSL) da Secretaria-Geral da Presidência da República. Este foi substituído pelo general Floriano Peixoto. No mesmo dia, o jornal Valor Econômico publicou uma reportagem na qual destacava o aumento do poder da “tropa do Haiti” no Planalto. Paulo Cunha, professor de Ciências Políticas da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), diz ser “inegável” o fato de o grupo ter se articulado a partir de experiências vividas em missões externas do exército.
“Embora as Forças Armadas – exércitos em particular – na história não sejam blocos monolíticos, militares se constituem enquanto um bloco articulado, inegavelmente”, afirma Cunha.
Ainda na avaliação de Cunha, além de Peixoto e do general Augusto Heleno, outros três ministros estiveram no Haiti na época dos crimes contra os caribenhos e a humanidade: o general Fernando Azevedo e Silva, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz e o capitão Tarcísio Gomes de Freitas.
Governo Lula 3
Em 2 de outubro de 2023, a ONU votou uma resolução permitindo a atuação de uma nova força internacional no Haiti. O Quênia se ofereceu para liderar a ação – e enviar mil homens – com a participação de Jamaica, Bahamas e Antígua e Barbuda.
O plano das Nações Unidas e dos EUA era outro: que o Brasil enviasse as tropas e liderasse a missão no país. Biden já havia pressionado Lula durante o encontro em fevereiro de 2023, em Washington, e desde então o presidente brasileiro se mostrou indisposto a dar cabo da ideia. Vale mencionar que a própria Casa Branca e o Canadá se recusaram a enviar militares à nação caribenha.
Ao invés de membros das FFAA, em junho o governo brasileiro sugeriu ao primeiro-ministro haitiano, Ariel Henry, enviar agentes da Polícia Federal para dar apoio logístico e de inteligência e treinar a Polícia Nacional haitiana no combate ao crime. As informações foram dadas à BBC Brasil em agosto por Valdecy Urquiza, delegado e diretor de Cooperação Internacional da Polícia Federal (PF).
Duas questões pesaram na decisão brasileira. Segundo o jornalista Jamil Chade, uma delas é a crise institucional fruto do envolvimento dos militares nos planos golpistas para manter Bolsonaro no poder. O outro fator seria a visão do Governo Lula de que qualquer operação sem foco no desenvolvimento do Haiti permitiria o surgimento de novas crises.
Amaro Augusto Dornelles | Jornalista e colaborador da Diálogos do Sul.
Edição: Guilherme Ribeiro
* Ao contrário do que constava no texto original, Luis Felipe Magalhães não é cientista político e sim economista e demógrafo. Atualmente, é pesquisador da Unicamp e não mais da PUC-SP.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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