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ToggleEmpresários cubanos são cautelosos ao avaliar as aplicações práticas e a sustentabilidade das novas medidas do governo dos Estados Unidos para favorecer o setor privado na ilha, ante uma possível mudança de administração no país vizinho e a persistente diferença bilateral.
“Creio que todas as medidas que contribuam para o desenvolvimento do comércio e do empresariado sempre serão vistas por nós com bons olhos, mas é preciso materializá-lo”, avaliou para IPS Suselmis Martín, diretora-geral e fundadora da pequena empresa privada SMG Branding focada desde 2019 na criação, desenvolvimento e posicionamento de marcas cubanas.
Martín ressaltou a oportunidade para que empresários cubanos sem visto de turismo ou de negócios para ir aos Estados Unidos possam abrir e utilizar contas de forma remota.
“Trata-se de uma facilidade, tanto para a exportação de serviços como os de minha empresa, ou para que colegas e negócios importem equipamento e matérias-primas de um mercado muito próximo, com melhores preços e tempos de entrega mais rápidos. Mas muitas vezes é complicado pagar” devido às disposições do embargo, afirmou esta comunicadora.
O engenheiro Pavel Sánchez, administrador-geral da média empresa privada Ecomadera Cubana, concordou em que as atividades de importação e exportação “são complexas para nós, sobretudo no que se relaciona com os movimentos financeiros de e para Cuba. Encontrar soluções para esta situação é uma dor de cabeça cotidiana”.
Em seu diálogo com IPS, Sánchez ressaltou que as medidas de Washington “mudam algumas regras do jogo e ainda que quiséssemos um alcance maior, abre outros canais para estas operações comerciais. Este é o ponto em que poderíamos beneficiar-nos se, por fim, sejam implementadas”.
Localizada no município de Fomento, na província central de Sancti Spíritus, Ecomadera Cubana sobressai desde 2014 pela produção de madeira plástica ou eco madeira, resultado do processamento de diferentes tipos de polímeros com a qual elabora tábuas, colunas, vigas e viguetas adequadas a distintas construções.
Principais pontos da medida
Embora tenham sido anunciadas há dois anos, em 28 de maio último o Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC, em inglês), do departamento do Tesouro dos Estados Unidos, autorizou o acesso de empresários cubanos independentes a serviços de internet, aplicações e sites de comércio eletrônico, junto com vias para pagamentos eletrônicos e atividades comerciais com esse país.
As diretrizes permitem a empresários independentes do setor privado cubano abrir, manter e utilizar à distância contas bancárias nos Estados Unidos.
Também autoriza serviços com operação pela internet como os dos sites de redes sociais, as videoconferências e os serviços que operam na nuvem.
E ainda, restabelece a autorização – suspensa em setembro de 2019 – para transações “U-turn” que são transferências de recursos que se originam fora dos Estados Unidos e, também, terminam fora dos Estados Unidos em que nem a fonte, nem o beneficiário estão sujeitos à jurisdição deste país.
Segundo o disposto, ficam excluídos dos benefícios alguns funcionários e membros do Partido Comunista de Cuba (PCC), o único legal no país, incluídos nas listas regulatórias de Washington.
Além de considerá-las “limitadas” e de buscar “situar em uma posição de vantagem o setor privado”, uma declaração do Ministério de Relações Exteriores ressaltou que as decisões “não tocam no corpo fundamental do bloqueio contra Cuba nem nas sanções adicionais que formam a política de máxima pressão” para a ilha.
Não obstante, o governo cubano indicou que “estudará estas medidas e, se não violarem a legislação nacional e significarem uma abertura que beneficie a população cubana, ainda que apenas um segmento, não criará obstáculos para sua aplicação”.
Obstáculos do projeto
Para o economista Omar Everleny Pérez Villanueva, “sempre é complexo interpretar qualquer medida de flexibilização” dos Estados Unidos para Cuba “porque se mantém o bloqueio – como é conhecido internamente o embargo vigente desde 1962 –, com um emaranhado legal muito complexo, e a ilha continua na lista de países patrocinadores do terrorismo”.
Para o governo cubano, tal designação, estabelecida em janeiro de 2021, busca justificar a aprovação de sanções.
Além de proibições financeiras e penalizações a pessoas e bancos que realizem determinados intercâmbios comerciais com os incluídos na lista, aumenta o risco-país para operações comerciais.
Pérez Villanueva indicou que as novas medidas chegam a menos de seis meses das eleições presidenciais nos Estados Unidos.
“Para que empresários cubanos abram contas bancárias seria preciso modificar muitos aspectos legais que talvez, a partir de janeiro de 2025, seja necessário mudar se houver uma nova administração. Duvido que isso se materialize agora; talvez depois das eleições, dependendo do partido que ganhar”, afirmou o especialista, em entrevista com à IPS.
As decisões da Casa Branca são “um primeiro passo de muitos que é preciso dar”, opinou a engenheira civil Yulieta Hernández, presidenta da média empresa privada Pilares Construções, especializada desde 2021 na construção, manutenção, reparação, reabilitação e remodelação de imóveis.
Hernández afirmou à IPS que empresários cubanos “não têm acesso a vistos de negócios para buscar oportunidades nos Estados Unidos. É um aspecto que estas medidas não contemplam”.
Perguntou-se: “quantos bancos permitirão a abertura de contas a empresários cubanos diante da elevada percepção de risco para efetuar operações financeiras com a ilha?”.
Aludiu às vultosas multas recebidas por entidades bancárias devido a violações do regime de sanções de Washington sobre a ilha.
“Existe uma probabilidade altíssima de que as comissões sejam muito elevadas. E, nas condições atuais do setor privado em Cuba isto pode repercutir negativamente e fazer com que a medida não seja aproveitada ao máximo”, argumentou a empresária.
Empresas no fogo cruzado
O crescimento do setor privado neste país insular caribenho de 11 milhões de habitantes e economia centralmente planejada teve que lidar com avanços, retrocessos e críticas a sua gestão partindo de diversos espectros ideológicos.
Algumas posições têm ojeriza ao setor por considerá-lo um instrumento de grupos nos Estados Unidos para desmontar o sistema socialista na ilha e avançar em um processo de restauração capitalista.
Outras críticas apontam a atividade importadora que alguns desenvolvem e a venda de produtos finais sem valor agregado, enquanto outros argumentam que sua autorização serve para constituir empresas privadas por parte de “testas de ferro” e ser um pretexto do governo para importar produtos, burlar o embargo e obter divisas.
A criação de micro, pequenas e médias empresas (mipymes) limita-se a setores não estratégicos. São atores econômicos legitimados nos documentos reitores do PCC e na Constituição, como parte do modelo socialista de desenvolvimento.
Sua atividade é considerada complementar às da empresa estatal socialista, catalogada como sujeito principal da economia interna.
São mais de 11 mil as mipymes, em sua maioria privadas, autorizadas a constituírem-se desde setembro de 2021, em um contexto marcado pela covid-19, o fortalecimento do embargo estadunidense, desabastecimento de alimentos e insumos de primeira necessidade, e o malogrado ordenamento monetário acentuado pela dolarização parcial da economia e a inflação disparada.
Autoridades afirmaram que as mipymes agem em igualdade de condições que o resto dos atores econômicos reconhecidos e que não haverá retrocessos nem freios na abertura ao também chamado setor não estatal.
No entanto, economistas insistem na ausência de mercados atacadistas para que os privados se abasteçam; que carecem de incentivos reais para exportar, pagam elevados impostos sobre as vendas e utilidades e foi eliminada para eles a isenção de impostos em seu primeiro ano.
Além disso, diferentemente das entidades estatais, não são subsidiadas em caso de perdas.
Permanece sem solução a concretização de um mercado cambiário oficial onde as mipymes adquiram de maneira suficiente e sem irregularidades as divisas, a fim de efetuar atividades de comércio exterior por meio de empresas estatais intermediárias.
Estatísticas oficiais indicam que o setor não estatal na ilha representa 15% do produto interno bruto cubano (PIB) e cobre cerca de 35% do emprego no país.
Quanto às atividades de comércio exterior, em 2023 realizaram importações superiores a 1 bilhões de dólares, mas as exportações não ultrapassaram os 200 milhões, equivalentes a 0,2% do total exportado.
“Não só o governo dos Estados Unidos tem que responder afirmativamente às instituições bancárias. Também é preciso ver como Cuba se expressa no dia a dia das operações comerciais, e aproveitar esta pequena brecha no bloqueio para implementar medidas que beneficiem o empresariado cubano”, considerou Pérez Villanueva.
Na opinião do economista, “não se trata só de dizer que as medidas de Washington beneficiam uma parte do setor privado. O governo cubano também pode flexibilizar os nós górdios que mantém sobre a empresa estatal e favorecê-la”.