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Toggle“Não é o ‘pensamento’,
e sim o que realmente se pensa,
o que une ou diferencia os homens.”
Antonio Gramsci, c. 1932[1]
“Filho:
Espantado com tudo, me refugio em ti.
Tenho fé no melhoramento humano,
na vida futura, na utilidade da virtude,
e em ti.”
Com estas linhas apresentou Martí, em 1882, seu poema Ismaelillo, dedicado ao nascimento de seu único filho. Nelas estão presentes, no essencial, sua visão da vida no mundo, das tarefas a cumprir nela, e das razões que as inspiravam. Desta visão, e da ética correspondente a sua estrutura, resultou um pensar martiano, que abrange ao mesmo tempo tanto a estrutura fundamental do raciocínio político, cultural e moral de José Martí (1853-1895), como o processo que leva à formação e desenvolvimento desta estrutura entre 1875 e 1895, no período que vai de seu exílio político no México a sua morte em combate em Cuba.
Em sentido amplo, o desenvolvimento deste pensar faz parte do campo mais amplo da história da cultura em nossa América e, em particular, da história da capacidade das ideias para incidir na transformação social e na mudança política, uma vez incorporadas à consciência coletiva. Por isso mesmo, vincula-se à história das ideologias em luta em nossa região, desde aquelas que legitimaram e questionaram o liberalismo oligárquico na segunda metade do século XIX, até as que hoje o fazem com relação ao neoliberalismo (oligárquico também, ainda que seja de outras oligarquias) entre fins do século XX e começo do XXI.
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Este vínculo se expressa em dois níveis relacionados entre si: o da atualidade do que pensou Martí em seu tempo, e o da vigência de seu pensar no nosso. Ambos os níveis compartilham quatro elementos estruturantes de seu raciocínio político-cultural: sua fé no melhoramento humano, na utilidade da virtude, na necessidade de lutar pelo equilíbrio do mundo, e na unidade do gênero humano.
Cinco autores
A análise deste pensar encontra apoio em cinco autores em particular. Por um lado, em seus compatriotas Cintio Vitier (1921-2009), poeta e filólogo, e o também poeta e ensaísta Roberto Fernández Retamar. Por outro, o ideólogo e filósofo Antonio Gramsci (1891-1937); o historiador Immanuel Wallerstein (1930-2019) e o sociólogo Aníbal Quijano (1928 – 2018).
Gramsci, como sabemos, abordou entre outros temas os problemas relativos ao papel da obra de Karl Marx na formação da cultura contemporânea, prestando especial atenção à capacidade das ideias para incidir na vida social e política, e ao papel da ideologia -“entendida […] como fase intermediária entre a filosofia e a prática cotidiana”- na formação e no desenvolvi mento desta capacidade.[2] A esse respeito, disse,
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Para a filosofia da praxis as ideologias não são certamente arbitrárias; são fatos históricos reais que é preciso combater e revelar em sua natureza de instrumentos de domínio, não por razões de moralidade, etc., e sim justamente por razões de luta política; para tornar intelectualmente independentes os governados dos governantes, para destruir uma hegemonia e criar outra, como momento necessário da subversão da praxis. […] ela afirma explicitamente que os homens tomam consciência de sua posição social e, portanto, de seus objetivos, no terreno das ideologias, o que não é uma pequena afirmação de realidade; a mesma filosofia da praxis é uma superestrutura, é o terreno em que determinados grupos sociais tomam consciência de seu próprio ser social, de suas forças, de seus objetivos, de seu futuro.[3]
Análises
A obra de Wallerstein, por sua vez, trouxe para a análise sistêmica dos processos históricos, relevando entre outros aspectos a incidência dos fatores político-culturais naqueles. Quijano, por sua vez, incorporou à crítica da geo-cultura do moderno sistema mundial a colonialidade eurocêntrica que a caracteriza. Em 1992, ambos compartilharam a elaboração de uma visão do papel da América na formação e no desenvolvimento do mercado mundial que ganha uma importância cada vez maior. “O moderno sistema mundial” disseram ali nasceu ao longo do século XVI. A América – como entidade geossocial – nasceu ao longo do século XVI. A criação desta entidade geossocial, a América, foi o ato constitutivo do moderno sistema mundial. A América não se incorporou em uma já existente economia-mundo capitalista. Uma economia-mundo capitalista não teria existido sem a América.[4]
Na formação desta economia, do sistema geopolítico que a organiza, e da geocultura que a expressa, a América trouxe ainda quatro novidades vinculadas entre si: a colonialidade, a etnicidade, o racismo “e o próprio conceito da novidade.” Desta perspectiva, podemos ver que a crítica a esta geocultura – organizada em torno ao que da visão eurocêntrica era o conflito entre civilização e barbárie como justificativa do colonialismo – faz parte intrínseca da obra martiana, em particular em seu ensaio Nossa América, que é como a ata de nascimento de nossa contemporaneidade.
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Esta relação crítica com a geocultura eurocêntrica contribui com a compreensão da universalidade do legado martiano, e em particular a vigência de seu pensar. Precisamente por isso, o pensar martiano teve e terá um papel de primeira na formação das opções dos povos de nossa América ante os problemas de nosso tempo. Ali, seus eixos fundamentais de organização e desenvolvimento vinculam já este pensar aos desafios maiores que nos propõe a transição civilizatória em que estamos imersos e, em particular, à tarefa de garantir a sustentabilidade do desenvolvimento humano ante a crise socioambiental que o ameaça.
Advertência
Deste pensar nos chega, para esta circunstância, uma advertência cuja atualidade se sustenta na sistematicidade, na historicidade e na vocação universal inerentes à concepção do mundo que a motiva. Em nossa América, diz,
Estamos em tempos de ebulição, não de condensação; de mescla de elementos, não de obra enérgica de elementos unidos. Estão lutando as espécies pelo domínio na unidade do gênero.[5]
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Nisso estamos, desde a fé no exercício da unidade do gênero na melhoria humana que facilite tornar útil a virtude na luta pelo equilíbrio do mundo. Nisso consiste ser martiano neste nosso tempo. Isso é o que nos une, e o que nos diferencia de outros.
Alto Boquete, Panamá, 28 de junho de 2024