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ToggleCristina Fernández de Kirchner, ex-presidenta da Argentina, voltou à cena política. Desta vez foi no México, convidada pelo Instituto Nacional de Formação Política do Movimento de Regeneração Nacional (Morena), a força encabeçada pelo presidente Andrés Manuel López Obrador, para a conferência de encerramento do curso internacional “Realidade Política e Eleitoral da América Latina. Uma utopia vinda do sul. Propostas para o futuro da região”.
Confira nossa seção especial: Eleições na Venezuela
Esta nova aparição pública ocorre em meio ao desenvolvimento do vergonhoso processo pela tentativa de magnifeminicídio contra sua pessoa atravessado pela impunidade dos autores intelectuais, que hoje ocupam os ministérios do governo de Javier Milei. Um fato que marcou o rompimento democrático na Argentina, em um cenário de recrudescimento da violência e da perseguição política contra referências de projetos populares em toda a região.
Cristina viajou acompanhada pelos senadores Oscar Parrilli e Anabel Fernández Sagasti, e pelas prefeitas Mayra Mendoza (Quilmes) e Mariel Fernández (Moreno). Depois da conferência iniciou uma agenda que manterá até esta quarta-feira(7), e que incluiu uma reunião com o Comitê Executivo do partido MORENA, um encontro com o escritor Paco Ignacio Taibo II, biógrafo de Pancho Villa e de Ernesto “Che” Guevara e um jantar com mulheres que assumirão funções com Claudia Sheinbaum, presidenta eleita.
Todo o arco político esperava as palavras de Cristina Kirchner, especialmente para conhecer sua posição sobre o processo eleitoral que se desenvolveu em 28 de julho passado na Venezuela, do qual saiu reeleito o presidente Nicolás Maduro. Eleições que põem novamente o país bolivariano como centro de ataque de toda a ultradireita regional e global.
Apoio de Cristina Kirchner ao comunicado conjunto
A ex-presidenta declarou que “compartilha totalmente o comunicado que em 1° de agosto assinaram AMLO, Lula e Gustavo Petro”, mas explicou com clareza quais são as chaves para compreender o que está acontecendo na Venezuela, quem está por trás da ofensiva contra seu governo democraticamente eleito e que elementos devem considerar as organizações para posicionar-se a esse respeito.
O primeiro eixo orientador de sua exposição foi o seguinte: “no marco da utopia pela paz (na região) é que temos que abordar o problema da Venezuela”. E lançou uma mensagem muito clara para a militância e os dirigentes: “além de nossas empatias ou antipatias, a primeira caracterização, vale sempre lembrar, que quando estamos falando da Venezuela estamos falando da primeira reserva de petróleo global convencional”.
Partindo deste eixo central, Cristina percorreu a história recente da Venezuela, ressaltando o golpe de Estado contra Hugo Chávez, a guerra comunicacional, o bloqueio econômico, os cenários de geração de violência – as chamadas guarimbas – e o “costume dos opositores de assumir presidências que são questionadas ou não são aceitas por todos”, lembrando Pedro Carmona e Juan Guaidó. Nesta trajetória, disse, inscrevem-se a tentativa da direita de proclamar desta vez Edmundo González como presidente, somando-o à guerra por todos os meios, a sabotagem informática que sofreu o Conselho Nacional Eleitoral, de que poucos falam.
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A ex-presidenta reconheceu os resultados eleitorais de 28 de junho emitidos pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), percorreu os mais de 30 processos de eleição democrática na Venezuela, e somou-se ao concerto de pedido de atas: “peço, mas não somente pelo povo venezuelano, pela oposição, pela Democracia, pelo próprio legado de Hugo Chávez: publiquem as atas”. Um comentário que não foi muito bem recebido na Venezuela.
Em seguida, disse sentir-se contente por ver María Corina Machado, líder da oposição venezuelana, em uma manifestação em Caracas naquele mesmo dia, porque “nos tinha comunicado que estava na clandestinidade pelo Twitter. Mas hoje a vi encabeçando uma marcha em Caracas. De modo que felizmente teve pouco tempo de clandestinidade”. Disse isso com uma dose de ironia, já que é o relato que a direita local e internacional tenta instalar para mostrar o governo eleito de Nicolás Maduro como uma ditadura.
A frente interna
Imediatamente apelou a recuperar a política da coerência: “O governo que iniciou o processo que me perseguiu depois, (…), estes que hoje nos falam de democracia, foram os que contribuíram com armas para a derrubada de um governo democrático em 2019 (Bolívia); e também nos inteiramos de outros grandes democratas, os que governam (na Argentina) cujos deputados e deputadas, que visitam nos cárceres os genocidas da ditadura de 76 e têm um projeto na mão para propiciar sua libertação; estes são os que falam de democracia e dizem que há ditadura na Venezuela”.
A ex-presidenta deixou claro que o atual governo argentino, presidido por Javier Milei, está desempenhando um papel central na Argentina e na região, levando adiante a estratégia de construção da narrativa de fraude eleitoral para legitimar a tentativa de golpe de Estado na Venezuela. Também fez parte da orquestra o ex presidente Mauricio Macri, que se mostrou muito próximo do atual mandatário libertário nos últimos tempos.
No entanto, em 2 de agosto, depois que os partidos apresentaram-se diante do tribunal Superior de Justiça (TSJ) com as atas, no marco do recurso de amparo iniciado pelo presidente Maduro – convocação a que Edmundo Gonzalez, principal candidato da oposição, não compareceu -, ficaram evidentes contradições entre o Ministério argentino de Relações Exteriores e a própria chanceler Diana Mondino. A chancelaria baixou o tom das declarações e com uma hora de diferença ignorou Mondino, que tinha declarado González Urrutia o vencedor.
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Diferentes meios de comunicação argentinos declararam também em 2 de agosto que Javier Milei está avaliando convocar os países que votaram na Organização de Estados Americanos (OEA) para desconhecer Maduro como presidente eleito, para uma reunião em Buenos Aires. Segundo o diário Âmbito Financeiro, “Depois da tentativa fracassada da OEA de aprovar um documento contra Nicolás Maduro, Javier Milei tenta posicionar-se como uma referência regional contra o chavismo, diferenciando-se de Lula”.
A articulação de ultradireita, a chamada Internacional fascista regional, com centro de comando principalmente nos Estados Unidos, e cada vez de forma mais evidente, desde o núcleo de poder econômico global – com referências como Elon Musk – hoje tem como epicentro a Venezuela.
O que estranha (ou talvez não), é o posicionamento majoritário do amplo campo nacional e popular, progressista e de “esquerda” na Argentina: a maioria das expressões políticas questionou o processo eleitoral venezuelano e exigiu a publicação das atas, apontando suas críticas para a ação do governo de Maduro, sem fazer alusão à incitação à violência e à tentativa de golpe de Estado por parte da direita. Neste sentido foram as posições lamentáveis do bloco de Deputados da União pela Pátria, da Confederação Geral do Trabalho (uma das centrais sindicais), da Frente Renovadora e sem falar no vergonhoso comunicado do Polo Operário.
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São contadas as declarações felicitando o presidente eleito Nicolás Maduro e o protagonismo do povo exercendo sua vontade, em sintonia com o direito à autodeterminação do povo venezuelano, e denunciando a estratégia golpista. O silêncio também foi uma das vias escolhidas, enquanto se multiplicam focos de violência que perseguem e assassinam pessoas identificadas como chavistas (como o caso de uma mulher mais velha que foi apunhalada em sua casa), organizam linchamento de líderes, incendeiam farmácias populares, hospitais, prefeituras, veículos e sedes partidárias.
Em tempos de tanta complexidade, os posicionamentos “a meias”, ou de questionamento das garantias democráticas das eleições de outro país, abonam a narrativa de uma direita que, ademais, tem a sua disposição os dispositivos midiáticos e de redes sociais. Cabe destacar a ação dos governos da Colômbia, Equador, Uruguai e Costa Rica, entrincheirados atrás de Javier Milei (e do governo estadunidense), insistindo sistematicamente na necessidade de Maduro – desconhecendo as funções do CNE venezuelano – torne públicas as atas da eleição, e reconheça a suposta derrota.
A OEA outra vez
Isso em perfeita sintonia com a Organização de Estados Americanos (OEA), braço de manobra de interesses estadunidenses, que tentou aprovar uma resolução contra as eleições na Venezuela. Ante o fracasso da votação, seu Secretário Geral, Luis Almagro, lançou um apelo de captura internacional contra Maduro, presidente eleito. “Os fungos da democracia”, nas palavras de Cristina Kirchner, com sua dupla vara.
A estratégia prévia de instalação da fraude eleitoral e a tentativa de um novo plano “Guaidó 2.0”, ficou demasiado evidente, análise feita pelo próprio Jaime Durán Barba – padrinho e estratega de campanhas das direitas na Argentina, Equador e no Brasil -. Tanto Machado como González Urrutia vinham denunciando há meses, como se possuíssem “bola de cristal”, que no domingo 28 o governo consumaria a fraude.
Parecem não ser suficientes os argumentos, a evidência histórica ou, simplesmente, como disse Cristina Kirchner, o respeito à autodeterminação do povo venezuelano de eleger seu governo democraticamente e em paz. Preocupam principalmente as organizações, espaços políticos, influencers e meios de comunicação que tentam, ou dizem tentar, construir uma alternativa a um governo de ultradireita na Argentina que está disposto também a dirigir o senso comum com guerra midiática e psicológica, aprofundando um cenário de empobrecimento brutal e de violência política.
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O amplo campo nacional e popular deveria, além de respeitar o processo político, ser grato a uma Venezuela que, desde a chegada à presidência de Hugo Chavez, só mostrou generosidade, no quadro de um projeto de integração regional a partir da soberania, que foi central para que a Argentina pudesse recuperar-se da crise de 2001, primeiro com Néstor Kirchner e depois com Cristina Fernández de Kirchner.
As eleições na Venezuela são um ponto de inflexão na política regional, e tem especial importância diante do desafio de articular uma força popular de oposição ao governo de Milei na Argentina, parte de uma articulação de ultradireita cuja estratégia está cada vez mais evidente, em uma região cada vez mais desigual.
São tempos de grandes definições. O apoio internacional das organizações populares ao povo venezuelano, que foi exemplo de resistência e que voltou a eleger Nicolás Maduro seu presidente, é fundamental para caminhar para uma região de paz.
Pode compreender-se certa moderação ou tempo de espera para posicionar-se de mandatários ou líderes que têm em seu poder modificar os equilíbrios geopolíticos. Mas das organizações sociais, populares, é muito perigoso o silêncio ou a opinologia. Citando Cristina, “temos que afastar da região qualquer tipo de conflito que altere nossa Paz, senão estamos fritos”. Senão, ganha a violência; e os tempos se tornam cada vez mais urgentes.