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Mercantilismo, colonialismo e imperialismo: os processos da crise no Panamá

Já é tempo de esclarecer e prever tudo que seja necessário, para deixar para trás o século XVI e suas sequelas, ainda hoje presentes na vida dos panamenhos
Guillermo Castro H.
Diálogos do Sul Global
Alto Boquete

Tradução:

“A primeira coisa em política, é esclarecer e prever.”
José Martí, 1889.[1]

A explosão social ocorrida no Panamá no mês de julho passado confirmou o velho dito de que em política não há surpresas e sim surpreendidos. Essa explosão constituiu, de fato, o evento que abriu passagem para a crise – tomara que final – dos resultados de um processo histórico de longa duração que levou à inserção do Panamá no mercado mundial como um enclave de serviços para a circulação de bens, capitais e pessoas.

De lá para cá, esse processo provocou contradições que já não tem capacidade para resolver. Estas contradições têm dois focos principais de origem. Ao longo do tempo, o enclave de serviços estabelecido no século XVI concentrou o fundamental da atividade econômica do Panamá em torno de um único corredor interoceânico, depois de fechados naquele século outros corredores ativos antes da conquista europeia, e a ponte terrestre que vincula as Américas Central e do Sul.

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Essa concentração incluiu, ainda, a do controle do corredor principal por Estados estrangeiros até o final do século XX, a dos benefícios do trânsito nos setores sociais que controlam estes Estados, e a submissão do conjunto dos recursos humanos e naturais do país às necessidades e demandas do corredor principal.

O outro foco está no conflito entre a organização natural do território a partir de bacias hidrográficas que geram corredores que vão do Caribe ao Pacífico, e uma organização territorial da economia e do Estado a partir de um eixo que vai do corredor interoceânico à Costa Rica, ao longo do litoral do Pacífico. O que criou condições que até a presente data favorecem o atraso econômico e a iniquidade social em todo o litoral do Caribe, e no imenso território do Darién histórico.

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Falamos, pois, de uma estrutura, termo que segundo Fernand Braudel, “domina os problemas de longa duração”, a partir da formação de “uma realidade que o tempo tarda enormemente em desgastar e em transformar.” Isto tem especial importância em nosso caso, pois alguns traços dessas realidades “obstruem a história, a entorpecem e, portanto, determinam seu transcorrer” e, no plano cultural, geram “enquadramentos mentais [que] representam prisões de longa duração.” [2]

A realidade de que se fala aqui é aquela cujas bases foram assentadas pelo proto mercantilismo espanhol do século XVI, a partir do qual vinculou-se o Istmo ao processo mais geral e complexo de formação e desenvolvimento do mercado mundial criado pelo capitalismo.

Dentro desse processo, uma nova fase se iniciou com a construção por capitalistas norteamericanos da primeira estrada de ferro interoceânica das Américas entre 1850 e 1855, depois da conquista da Califórnia pelos Estados Unidos em 1848.

A partir da década de 1880, a passagem do mercado mundial para sua fase imperialista deu lugar, no contexto da realidade previamente existente, a um novo processo, de duração média: a organização do trânsito a partir da criação de um protetorado militar estrangeiro no Istmo.

Já é tempo de esclarecer e prever tudo que seja necessário, para deixar para trás o século XVI e suas sequelas, ainda hoje presentes na vida dos panamenhos

Brasil Escola
A partir do Tratado Torrijos-Carter (1977 a 1999), a disputa pela renda do canal viu-se transferida para o interior da sociedade panamenha




A França e a “inquietação” dos EUA

Esse processo, que determinaria em grande parte o nosso futuro, começou em meados da década, ante a inquietação provocada nos Estados Unidos pela iniciativa francesa de construir um canal ao longo da rota da estrada de ferro interoceânica do Panamá.

Assim, em 1885, José Martí podia informar a seus leitores de La Nación, em Buenos Aires, que a Nicarágua “contratara com o governo dos Estados Unidos” a cessão, quase completa, de uma faixa de território que de um Oceano a outro cruza a República, para que nela construa o governo estadunidense e mantenha, às suas custas, um canal, com fortalezas e cidades dos Estados Unidos em ambos extremos, sem mais nenhuma obrigação senão uma reserva de direitos judiciais em tempos de paz para as autoridades nicaraguenses, e o pagamento de uma porção dos produtos líquidos do canal, e das propriedades existentes no território cedido ao governo americano.[3]

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Dezoito anos depois, esse projeto seria realizado depois da intervenção estadunidense na separação do Panamá da Colômbia em 1903 e da assinatura do Tratado Hay-Bunau Varilla, em um país submetido a um regime de protetorado militar que se prolongaria ao longo de todo o século XX.

Uma vez construída a via interoceânica – e em particular a partir da década de 1930 – tomou corpo uma tenaz disputa entre ambos os países em torno do exercício da soberania nacional sobre o território do Istmo, e o usufruto da renda gerada pelos serviços oferecidos pelo Canal, ou associados a ele.

Em 1947, a rejeição popular a um convênio que buscava ampliar presença militar estrangeira no território nacional abriu caminho à luta aberta contra o regime de protetorado, que entrou em uma fase decisiva a partir do levante popular contra o enclave do canal em janeiro de 1964, até desembocar na assinatura e execução do Tratado Torrijos-Carter entre 1977 e 1999.

A partir de então, a disputa pela soberania nacional e pela renda do canal viu-se transferida para o interior da sociedade panamenha, agora transfigurada em outra pela soberania popular e pelo uso da renda do canal, agora captada pelo Estado nacional.

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Isso deu lugar a um processo de decomposição política interna que acabou por gerar um grave conflito que foi resolvido pela intervenção das forças armadas norteamericanas em dezembro de 1989, ocasionando centenas de vítimas civis. Esta intervenção levou ao desmantelamento do regime militar e instalou no governo a coalizão conservadora que fora vitoriosa nas eleições de maio de 1989.

No plano dos eventos – o mais curto dos prazos –, a explosão social de 2022 pôs em crise o regime político surgido daquela intervenção, tão neoliberal no plano econômico como conservadora no político e classista no social. O que obrigou o governo a aceitar um diálogo com as organizações populares o qual, além de abordar com êxito limitado demandas imediatas – como a redução de preços do combustível, dos medicamentos e da cesta básica –, viu ampliada sua agenda até incorporar problemas de complexidade maior, como o modelo econômico vigente, a crise da segurança social, e a corrupção nas relações entre o Estado e o setor privado.

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A esse diálogo se une agora o setor privado, que de 1990 para cá monopolizou o controle das relações entre a sociedade e o Estado nacional. Na prática, poderia criar a possibilidade de que o processo aberto pela explosão social desembocasse na convocação de uma assembleia constituinte originária capaz de abrir passagem para a construção do país que desejamos – próspero, equitativo, sustentável, democrático e soberano.

Essa possibilidade depende muito de que a nova visão do país que vai tomando forma na vida nacional encontre uma linguagem capaz de expressá-la, e de abrir finalmente as prisões do pensamento tradicional que considera natural nossa situação de iniquidade e dependência.

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Aqui já é tempo de esclarecer e prever tudo que seja necessário, para deixar para trás o século XVI e suas sequelas, e compreender que a longa duração que começa agora pode ser a da nação que merecemos chegar a ser, ou o ingresso pleno em uma circunstância de putrefação da história, como Frederico Engels a chamou uma vez.

Alto Boquete, Panamá, 18 de setembro de 2022

Notas
[1] “Congresso Internacional de Washington. Sua história, seus elementos e suas tendências. I. Nova York, 2 de novembro de 1889”. La Nación, Buenos Aires, 19 de dezembro de 1889. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales. Havana, 1975. VI, 46-47.
[2] “A longa duração.” A história e as ciências sociais.(1960: 60-106): Alianza Editorial, Madrid. Cap.3. http://posgradocsh.azc.uam.mx/cuadernos/induccion/Braudel-CAP3_LARGA_DURACION.pdf
[3] “Cartas de Martí”. La Nación, Buenos Aires, 22 de fevereiro de 1885. VIII, 87-88.

Guillermo Castro H. | Colaborador da Diálogos do Sul desde Alto Boquete, Panamá.
Tradução: Ana Corbisier.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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