A Ilha de Cuba tem uma história acidentada e muito peculiar. Nela não faltaram episódios de heroísmo e originalidade que destacam a experiência cubana no contexto da trajetória latino-americana, como as Guerras de Independência do final de século XIX, a Revolução vitoriosa em 1959 e a subsequente afirmação socialista do seu processo de construção nacional. Digna de nota é também a vocação internacionalista, solidária, que a Revolução assumiu desde o início.
A par dos êxitos alcançados nas suas primeiras décadas de existência, dos quais os mais sobressalentes soem ser os aclamados patamares de justiça e igualdade social, garantidos por níveis elevados de escolarização e a qualidade e universalização alcançados pelos serviços de saúde, boa parte desses resultados foram garantidos pela adesão de Cuba ao bloco socialista capitaneado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que lhe proporcionou preços vantajosos para seus produtos exportados e importados (sobretudo o petróleo provido pelos soviéticos). O custo dessa adesão e dos termos de troca favoráveis foi a especialização de Cuba numa pauta primário-exportadora (herança do longo período colonial) e a adoção do rígido e burocrático sistema de planejamento e gestão típicos do padrão soviético.
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O impacto do fim do bloco socialista e o colapso da URSS entre o final da década de 1980 e 1992 recaiu pesadamente sobre Cuba, que assiste a partir de então as sucessivas e vertiginosas quedas da atividade econômica, da disponibilidade de produtos internos, da receita das exportações, levando a crises cambiais e a severas imposições de ajustes fiscais. Tais medidas conduzem a inevitáveis repercussões no nível de vida da população e, o que é pior, afetam gravemente os patamares de justiça e igualdade social que sempre estiveram no ideário da revolução. Se associarmos os drásticos efeitos dessas medidas às disruptivas consequências do sempre renovado e extremamente cruel bloqueio econômico e comercial dos EUA sobre as finanças (e a vida em geral) de Cuba, o cenário do desastre se completa. Por fim, o sistema político predominante na ilha desde a adesão ao bloco socialista em meados dos anos 1960, marcado pala excessiva centralização e o controle burocrático sobre a sociedade (embora fosse responsável por êxitos à sua época e se justificasse em parte pelas ameaças constantes que o regime sofria de seus inimigos), tem impedido a flexibilidade e abertura necessárias para responder democrática e criativamente às novas situações verificadas desde a última década do século passado, dificultando a legitimação de políticas e a construção de consensos.
“Entre a utopia e o cansaço: pensar Cuba na atualidade”
A complexidade da situação cubana requer uma análise multifacetada, capaz de dar conta dos diversos aspectos que ela apresenta e dos desafios que ela propõe. Ao lado disso, afastar-se o quanto possível das polarizações ideológicas que Cuba sempre suscita. É, portanto, muito bem-vinda a coletânea de artigos agrupados sob o título “Entre a utopia e o cansaço: pensar Cuba na atualidade”. A diversidade temática dos capítulos vai muito além da economia e da política para compreender assuntos tão inusuais quanto a agroecologia, a moradia, as forças armadas, a religião, as questões de gênero e raça, junto com prospecções de futuro. Tal olhar sobretudo crítico permite ao leitor uma invejável perspectiva, panorâmica e abrangente, da realidade cubana e dos ingentes dilemas que ela enfrenta.
Nesse amplo painel, estranhamos a ausência da narrativa “oficial” (representantes credenciados do governo, do Partido, da imprensa, da Universidade), pois, por mais estereotipada que eventualmente possa ser, trata-se da institucionalidade legítima do país, cuja voz e ponto de vista têm peso considerável nas disputas de poder que se travam na ilha, bem como no imaginário político dominante. Tal ressalva não é atenuada pelo fato de que, em 2 dos 22 artigos que compõem o livro, integrantes do Parido e do Governo opinam sobre assuntos específicos. É pouco e limitado, haja vista o que está em jogo: a própria continuidade do regime socialista em Cuba, o “ser ou não ser” da Revolução. Assim, pela relevância e atualidade do tema, e pelo que falta ainda acrescentar, se justifica um volume dois da publicação, com visões e interpretações progressistas alternativas, a que se deve somar as emergentes lideranças dos novos movimentos sociais.
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A maioria dos artigos apresenta boa qualidade analítica, com destaque especial para os de número 11 – sobre a internet em Cuba, o 21 – sobre as relações entre a juventude e a revolução e o 22 – sobre o legado utópico e sua permanência. Não obstante essa tônica geral, algumas interpretações (bem poucas, na verdade) exageram numa versão negativista que beira a duvidosa superficialidade, e ecoam a vulgaridade do sentimento anticubano de direita, como é o caso do autor do artigo 17, sobre os emigrantes, que equipara a Cuba atual à Cuba de Batista (!), um absurdo que descontextualiza situações completamente distintas e desafios radicalmente novos.
Em geral, a visão predominante que fica da leitura da obra sobre a realidade cubana e suas perspectivas é pessimista – duro dizer -, deixando àqueles leitores que compartilham ou compartilharam em alguns momentos de suas vidas das esperanças levantadas poderosamente pela Revolução Cubana, um travo amargo.
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Avançando sobre o que os organizadores do livro expressam na Introdução – isto é, que “(…) os impasses da Revolução Cubana têm menos a ver com a inviabilidade da experiência socialista do que com a brutalidade do sistema que a cerca; uma dinâmica totalizante que não admite um lado de fora e impede que se produzam formas de vida para além do mundo da mercadoria. Desse ponto de vista, Cuba nunca foi uma ilha” (p. 16) -, minha síntese teórica aponta aqui para duas constatações: a primeira delas remete ao postulado de Marx e Engels em A Ideologia Alemã (São Paulo, Hucitec, 1993, pp. 50-1), o qual propõe que as mudanças exclusivamente locais, caracterizadas pela escassez e que não se situem num plano histórico-universal, malgrado intenções mais que valorosas de seus protagonistas, conhecerão inapeláveis derrotas e a “imundície anterior” será restabelecida. Duvidoso se esse cenário e perspectiva histórico-universal possuía de fato tal significado na época soviética; foi tentado, tinha esse potencial, mas sua derrocada nos anos 1990 antes prova o contrário. Tanto no nível das forças produtivas, quanto no das relações de produção, sem falar do âmbito da superestrutura política, científica e cultural (sempre com notórias exceções), a URSS foi incapaz de construir uma efetiva alternativa histórico-mundial à hegemonia capitalista.
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A segunda consideração atesta, para este resenhista, a validade das premissas da teoria do Sistema-Mundo – teoria surgida na França em meados do século XX, a partir da produção do historiador francês Fernand Braudel e teve como seguidores mais conhecidos e prolíficos Wallerstein, Arrighi, Samir Amin e Gunther Frank, entre muitos outros -, premissas tais que consideram a economia mundial capitalista dominante no mundo desde o século XVI de nossa era como um sistema integrado, que abrange a tudo e a todos, porém contraditório, em constante mudança e altamente polarizado (“desenvolvimento desigual e combinado”). Essa é a unidade de análise relevante, para os adeptos dessa visão, e não cada país em particular. Isso explica muito das vicissitudes da experiência cubana aqui considerada. Torna-se ainda mais forte nessa primeira quadra do século XXI, quando a supremacia capitalista se tinge de colorações de extrema-direita.
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Por fim, vale um último registro. O livro é muito bem escrito e organizado. Excelente diagramação. Bem ilustrado, com ótimas e pertinentes fotos. O que não passaria de uma obrigação de qualquer obra que se pretenda séria, hoje, infelizmente, no mercado editorial brasileiro, é digno de nota, pois aqui se multiplicam coletâneas apressadas e oportunistas que não poupam sequer intelectuais de renome, proliferam erros grosseiros de ortografia e sintaxe, dificultando até mesmo a compreensão de passagens inteiras dos textos. Aqui, por certo, isso não ocorre. Méritos para a Editora e para os organizadores da publicação.