Em qualquer curso introdutório de Ciência Política ensina-se que o conceito de política vem do grego Politeia que se refere às atividades que os cidadãos realizam para decidir os destinos de sua cidade ou Polis. No espaço da cidade-Estado grega realizava-se a eclésia ou assembleia, na qual por meio do uso da retórica os participantes expunham suas ideias para convencer o conjunto dos cidadãos de que suas propostas eram as melhores opções para decidir sobre o destino da comunidade ou da coletividade.
Isto por certo foi definido como o aspecto normativo da Política, pois o que se percebe desde a época dos gregos e foi posteriormente descrito magistralmente por Nicolau Maquiavel em O Príncipe, é que a verità effettuale da política consiste em um sem-número de armadilhas, traições, simulacros e intrigas que permitem aos atores políticos conquistar, assumir e sustentar-se como protetores dos habitantes da cidade-Estado. Sendo assim, para Maquiavel, a verdadeira virtú que devem praticar os condottiere que inspiraram a obra do Florentino, residiria na capacidade de leitura da realidade dos governantes para manterem-se no poder.
Contudo, sempre existiu no debate acadêmico a noção de que a Política é um espaço para debater ideias diferentes a partir das quais se pode chegar a acordos em que cada parte renuncia à integridade de suas propostas em benefício de um acordo comum que permita estabelecer as condições para o pleno exercício de um governo, a chamada governabilidade.
Tentando reivindicar a dimensão altiva da Política, o pensador sardo Antonio Gramsci fazia a distinção entre a Política com maiúscula e a pequena política, sendo que a primeira estaria associada à reflexão, ao estudo, à ponderação e à seriedade necessária para a construção de um projeto coletivo, base da dimensão estratégica orientada à fundação e manutenção do Estado. Já a pequena política se vê associada à vida cotidiana de complôs e confabulações que se realizam nos corredores do Congresso ou dos Palácios de governo, dos acertos e pactos efetuados nos bastidores do poder com a finalidade de obter benefícios materiais e políticos, sejam individuais ou de camarilhas.
Tristemente, na maioria dos debates que vem sendo realizados em função das próximas eleições municipais a realizarem-se no primeiro domingo de outubro, o que se pode apreciar por parte dos eleitores que assistem às transmissões, é a presença esmagadora da pequena política, na qual os candidatos dedicam mais tempo à exposição de mentiras e acusações mútuas do que à apresentação de seus respectivos programas para as prefeituras.
O episódio mais extremo e vergonhoso desta sequência decadente da política, foi a cadeirada dada por um representante da direita (José Luis Datena/PSDB) no ex coach e delinquente condenado pela Justiça, que é uma carta da extrema direita para as eleições presidenciais de 2026 (Pablo Marçal/PRTB).
Este gesto extremo em um debate de propostas de governo para administrar a maior cidade da América Latina (São Paulo), é um claro reflexo do baixo nível em que se encontra a política brasileira, expressando a simples vista que no último período vem se produzindo uma simbiose perversa entre sujeitos que se autodeclaram outsiders e inimigos da classe política e um eleitorado cada vez mais alienado de seus verdadeiros problemas coletivos. Tais cidadãos são bombardeados e influenciados sistematicamente pela profusão de fake news veiculadas pelas redes sociais. Há mais de três anos advertimos sobre este lamentável fenômeno em nosso artigo A mentira como forma de ação política.
Frei Betto | Em tudo há política, para o bem ou para o mal. Pense e vote com razão
É sabido que na base deste processo encontra-se o descrédito da dimensão política como espaço de debate e deliberação necessária para organizar a vida coletiva, a qual é descartada sem mais como uma grande aberração a serviço de uns poucos privilegiados que só buscam o benefício pessoal a expensas da população indefesa.
Certamente pode-se encontrar no país muito boas e valiosas experiências de gestão municipal, como os orçamentos participativos, os agentes comunitários de saúde, as escolas integrais, projetos de saneamento básico e programas exitosos de inclusão social. No entanto, os meios de comunicação que se alimentam das tragédias e constroem a sociedade do espetáculo, divulgam em profusão os casos de corrupção, obras abandonadas, malversação de fundos e projetos fantasmas que fortalecem a percepção da cidadania de que a política e os políticos expressam o pior da humanidade.
Disso se nutrem os que se dizem outsiders para deturpar ainda mais a atividade que eles mesmos encarnam, apresentando-se como figuras antissistema quando na realidade são a mais evidente expressão da degradação deste mesmo sistema. Valem-se das regras e dos códigos de convivência criados pela democracia para atacar e violar a mesma democracia quando consideram que esta não lhes convém para alcançar seus objetivos.
Por sua vez, as próprias sociedades retrocederam a uma situação em que a violência e o conflito dividem a população entre amigos e inimigos, permeando o conjunto de relações que as pessoas estabelecem desde a escola, passando pelas igrejas, pelo trabalho, pelas distintas organizações e culminando no ódio disseminado cotidianamente nas redes. Não é inusitado que uma porcentagem significativa de eleitores espere encontrar nos debates dos candidatos aquela dose de selvageria e de adrenalina necessária para animar suas vidas. São convocados por cavernícolas como Marçal que açula os telespectadores e seguidores com anúncios do tipo “vai correr sangue esta noite”.
O que nos expõe a uma grave crise civilizatória de respeito às etiquetas e normas de convivência social. Esta perspectiva foi introduzida teoricamente pelo sociólogo alemão Norbert Elias em seu livro A sociedade cortesã, em que expõe com meridiana clareza a importância da etiqueta e do cerimonial como elementos centrais na formação de um tipo específico de racionalidade que permite o controle das pulsões mais viscerais e a neutralização das reações afetivas mais endêmicas.
Tais controles das emoções e os contrapesos à livre expressão da irracionalidade permitiriam a emergência do processo civilizatório constitutivo de etiquetas sociais de convivência distintivas nas sociedades modernas. Estas relações se manifestariam nos espaços de negociação, diálogo e pluralismo existente no plano político. Precisamente, o rompimento destes laços de convivência e de aceitação da divergência característicos da dicotomia amigo versus inimigo expõe o rebrote de um mundo incivilizado movido pelos desejos e as pulsões más atávicas dos indivíduos.
De uma perspectiva psicanalítica, Sigmund Freud em seu notável ensaio O mal-estar na cultura, traça o choque que se produz precisamente entre a pulsão humana que aspira à busca do prazer e sua restrição, derivada dos limites impostos pela cultura. A pulsão de morte (Thanatos) leva as pessoas a desejarem a destruição do ser humano impelida por sua tendência inata de um retorno ao inorgânico. Ali radicariam os alicerces do espírito de devastação, da violência, da pretensão de superioridade e de prepotência dos seres humanos.
Frei Betto | Eleição de outubro é chance de fortalecer progressismo; isso, ou a volta do golpismo
Preferentemente, a extrema-direita soube explorar estes desejos de destruição dos outros, dos diferentes, somando nesta cruzada ruinosa batalhões de indivíduos frustrados e fartos do sistema, estimula-os a unirem-se a suas fileiras sem nenhum objetivo mais perceptível do que derrubar o sistema. Personagens sinistros e astutos como Trump, Erdogan, Meloni, Orban, Bukele, Bolsonaro, Milei, Kast ou o próprio Marçal nutrem-se da impotência e da vulnerabilidade de milhões de pessoas que não encontram um lugar digno na vida contemporânea. São os marginalizados e precarizados do mundo do trabalho, mas também os excluídos de uma convivência social sadia e fraterna, que incubam um ódio desmedido e crescente das minorias e dos “privilegiados” do sistema, especialmente da classe política que não é capaz de solucionar seus problemas e ansiedades.
Todos eles em sua insanidade de sociopatas encarnam o universo incivilizado que nos acomete e nos arqueja. Em escala global representam um sério risco para o futuro da democracia. A falha dos sistemas políticos que cada vez se encontram mais ensimesmados e de costas para os cidadãos estimula o surgimento destas figuras neofascistas.
Talvez resida na própria política a solução deste desafio atual que supere sua degradação e deslegitimação. Por isso, ela deveria regressar à vida cotidiana das pessoas, vincular-se às necessidades concretas delas, assumir o protagonismo urgente para que a população a vislumbre como uma parte fundamental do fazer coletivo da humanidade que lhe permita criar possibilidades de melhorar sua qualidade de vida.