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ToggleA cada 11 de setembro, quando um novo aniversário do golpe de Estado contra o presidente mártir Salvador Allende no Chile de 1973 nos convoca, surgem desde o mais diverso do pensamento socialista latino-americano, a interrogações e reflexões.
Elas tentam decifrar e, em situações mais ousadas, despachar com assombrosa ligeireza um fato histórico que teria precipitado e, em termos dialéticos, aguçado as enormes contradições de uma velha ordem mundial que evidenciava sintomas inequívocos de desgaste, de rachas em consequência direta de conflitos geopolíticos de grande intensidade.
No Oriente Médio, por exemplo, isso se deu em busca do controle da energia fóssil, a iminente vitória na longínqua Ásia de movimentos de libertação nacional — que posteriormente deram passagem a governos de esquerda —, disparando desta maneira os alarmes no tabuleiro geopolítico mundial que obrigou a um reposicionamento da Otan para impedir a expansão na Europa, Ásia e África do fantasma do comunismo sino-soviético desde o início da Guerra Fria, após a Segunda Guerra Mundial.
Apesar deste sombrio panorama, ocorreu na América Latina, no final dos anos 1960 e princípio de 1970 — depois do triunfo armado dos “anjos barbudos” da revolução cubana com Fidel Castro e a escassos 100 km das costas estadunidenses —, o surgimento da luta armada em Colômbia, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Brasil, Peru, México, Venezuela, América Central, entre outros, que ameaçava estender-se a todo o continente. Se instaurou como elemento central da política de segurança nacional em todo o continente onde vigorava a Doutrina Monroe, isto é, a América para os americanos…
Cria-se o famoso Instituto do hemisfério ocidental para a cooperação em segurança com sede no istmo do Panamá, que mais tarde veio a ser a temível escola das Américas como centro de adestramento em contrainsurgência tutelada pelo poderoso Exército norte-americano para assegurar a promoção da oficialidade latino-americana alinhada na defesa dos interesses de Washington na região e neutralizar o avanço do comunismo na América Latina.
Para isso, foi planejada a instalação e utilização do território para a operação de bases militares estadunidenses com o pretexto de combater o narcotráfico, a articulação a partir do Departamento de Estado gringo das missões diplomáticas como grandes centros de espionagem e conspiração para desestabilizar e derrubar governos populares e progressistas.
De igual maneira foi criada a aliança para o progresso, o estabelecimento da OEA como um ministério das colônias, assim como o apoio a cruentas ditaduras militares no Cone Sul, América Central e o apoio a governos com democracias liberais e corruptas que serviam de fachada ao gigantesco roubo e apropriação de recursos naturais que abundam na região para saciar a voracidade das economias do então chamado primeiro mundo.
Soma-se a isso o jugo exercido pelo FMI e o Banco Mundial, obrigando e ameaçando os países da região a contrair dívidas externas impagáveis que se tornaram dívidas eternas em benefício das oligarquias ianques e em detrimento das imensas maiorias de uma espécie de exército de pobres que deambulavam como párias pelos países da região.
A situação interna que antecedeu o golpe Allende no Chile
Salvador Allende Gossens, eleito presidente do Chile em 4 de setembro de 1970 pela coalizão de esquerda denominada Unidade Popular com a maior votação (ainda que a diferença de votos em relação ao segundo colocado tenha sido de quase 40 mil votos), venceu o ex-presidente Jorge Alessandri do Partido Nacional e Radomiro Tomic do Partido Democrata Cristão.
Esta eleição foi precedida por uma importante radicalização da política interna do Chile, que se manifestou no aumento da tensão antes das eleições. Segundo a constituição vigente, se nenhum dos candidatos obtivesse a maioria absoluta (como de fato aconteceu), a eleição final deveria ser realizada pelo Congresso em plenária entre os dois candidatos que obtivessem a maior votação em 24 de outubro do ano em curso.
Antes da esperada decisão do congresso, o comando paramilitar do grupo de extrema-direita Pátria e Liberdade sequestrou e assassinou o comandante em chefe do exército, General René Schneider, a fim de evitar a iminente eleição de Allende. O atentado provocou uma grande comoção pública, ainda que não conseguisse evitar que o Congresso ratificasse a eleição de Allende como presidente do Chile por 153 votos contra 35 de Alessandri.
A situação política interna de governança para a esquerda chilena ver-se-ia muito comprometida, em primeiro lugar, pelos grandes investimentos privados internacionais que caracterizaram os dois últimos governos que precederam o de Salvador Allende e que seguramente, ante a ameaça de grandes nacionalizações, expropriações e políticas de subsídio e investimento social, fugiriam para o estrangeiro, afetando em boa medida a produção de bens e serviços nacionais.
Em segundo lugar, as feridas e fortes divisões internas na Unidade Popular representada pelo antigo FRAP (Frente de Ação Popular) de socialistas e comunistas, mais o Partido Radical (PR), o Partido Social Democrata (PSD), o Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU) e a Ação Popular Independente (API). Todos tiveram seus pré-candidatos, a saber: Salvador Allende pelo PS, o poeta Pablo Neruda pelo PC, Jacques Chonchol pelo MAPU, Alberto Baltra pelo PR e Rafael Tarud pela API.
Para Salvador Allende, que seria o candidato definitivo, não foi fácil conseguir a indicação como candidato da Unidade Popular, dado que pesavam sobre ele suas três anteriores derrotas em 1952, 1958 e 1964, e muitos na coalizão de forças não acreditavam em sua proposta da via pacífica ao socialismo. Finalmente, e apesar das fraturas internas, dada sua enorme popularidade e o apoio chave do poeta Pablo Neruda do PC, conseguiu ser designado candidato da UP. Tudo isso significou a assinatura de um pacto de governo para administrar o Chile por um comitê que teria representantes de cada organização e cujas decisões de Estado deviam ser tomadas por unanimidade. Isto sem dúvida tornava mais complexa e mais lenta a tomada de decisões por parte do presidente em temas sensíveis para a sociedade chilena, como se evidenciaria mais adiante.
Ainda que a situação política na candidatura da direita chilena — representada pelo ex-presidente Jorge Alessandri (3/11/58 a 3/11/64) do Partido Nacional e seu programa econômico liberal “A Nova República” — era mais previsível posto antecedida pelo governo de Eduardo Frei Montalva (3/11/64 a 3/11/70), segundo o informe Hinchey, desclassificado pela CIA, Alessandri recebeu quase 3 milhões de dólares de recursos provenientes do Departamento de Estado dos EUA por meio de Agustín Edwards — proprietário do diário El Mercurio e da ITT, dona de 70% da companhia de telefones do Chile — para sua campanha, com a intenção de deter o avanço eleitoral da via chilena ao socialismo, com cheiro de empanadas e vinho tinto.
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Chegou 4 de setembro de 1970 e com ele o esclarecimento da incógnita na equação e da incerteza que se prolongou até 1h25 da madrugada do sábado de 5 de setembro daquele ano de 1970, quando se soube que Allende vencera com quase 40 mil votos de vantagem, isto é 36,6% contra 35,3% do candidato Alessandri. Vencera contra todos os prognósticos o projeto da Unidade Popular.
51 anos depois, o passado volta à baila
Passaram-se mais de 50 anos do Golpe contra Allende e os contextos mudaram significativamente, mas existem aproximações destacáveis daquela experiência chilena ao socialismo e da Bolivariana atual.
Muitos são os fatores a analisar quando tentamos fazer um estudo comparativo ou pelo menos aproximar-nos de processos históricos continuados com esporádicos sobressaltos que levam a lugares-comuns, mas que devem gerar lições aprendidas para não repetir erros. Escreveu George Santayana em sua celebrada obra a vida da razão:
“A sociedade que não conhece sua história está condenada a revivê-la”.
Vejamos na sequência o paralelismo partindo de uma análise comparativa entre os dois processos históricos.
Aspectos Geopolíticos e Econômicos
No momento da vitória de Salvador Allende com a UP, há 51 anos, pela via eleitoral, começa a aplicação da doutrina de segurança nacional por parte dos EUA para enfrentar a ameaça do comunismo na América Latina. Cria-se a aliança para o progresso para fortalecer a cooperação econômica entre os EUA e a América Latina e evitar uma expansão da influência marxista na região. Muda-se a correlação de forças no continente por meio de golpes de Estado e invasões militares para proteger os interesses e a segurança dos EUA. De igual maneira, impõe-se a sangue e fogo o sistema econômico neoliberal para garantir o fornecimento seguro de matérias-primas e condenar milhares de trabalhadores latinos a subsistir e de alguma maneira forçando-os a emigrar de maneira ilegal em massa para onde serão explorados, escravizados e depois judicializados pelas leis sacrossantas do mercado e do capital.
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No plano econômico, a estratégia contra o governo da UP instrumentalizada pelo secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger desde a vitória de Allende foi fazer “chiar” a economia em aliança com a oligarquia chilena, desabastecer e acaparar produtos básicos das prateleiras do país (alimentos, víveres, medicamentos, bebidas, produtos de higiene e limpeza) apesar de que a produção, segundo as cifras do Banco Central do Chile para a época, mantinha-se alta. Boicote à produção nacional, ataque à moeda, bloqueio dos investimentos estrangeiros e do sistema financeiro nacional, planejamento e execução de sabotagem elétrica em 1972, que causou graves danos à infraestrutura e ao aparato produtivo.
Seguiu-se a depauperação do salário dos trabalhadores, a perda do poder aquisitivo e o financiamento mediante fundações e partidos da extrema-direita chilena de atividades insurrecionais e da greve nacional de trabalhadores do setor público e privado, do setor de transporte e de outras áreas sensíveis da economia do país. O efeito e as consequências sobre a economia não se fizeram esperar e produziu-se a queda da produção, importação, precarização dos salários, caos nos serviços públicos, paralisia generalizada, temor, desconfiança e ansiedade…
Aspectos midiático-psicológicos
Sem dúvida alguma, o plano desestabilizador levado a cabo pelo imperialismo ianque em território chileno não teria possibilidades de êxito se não fosse acompanhado por uma política de ataque e agressão permanente à psique de cada cidadão, à família e à sociedade chilenas em seu conjunto, desde as grandes corporações midiáticas transnacionais, como foi projetado, estruturado e se desenvolveu durante três longos anos para neurotizar, atemorizar e paralisar o povo chileno.
Isso foi feito por meio de exércitos pagos de jornalistas, mídia, partidos de extrema-direita, igrejas, fundações, sindicatos, empresários, universidades e todas as formas possíveis de manipulação da informação, falseando a realidade e apresentando os líderes da UP, civis e alguns comandos militares como corruptos, delinquentes, assassinos e covardes, parte do caos e da debacle que encarnava, segundo a narrativa, o projeto socialista abertamente satanizado de Salvador Allende.
Basta rever os documentos desclassificados pela CIA sobre a participação direta do governo dos EUA na derrubada do governo da UP e de seu presidente mártir Salvador Allende, que corroboram o gigantesco apoio logístico e financeiro dado aos donos de meios de comunicação impressos como o diário El Mercurio, de centenas de milhões de dólares para dirigir toda a campanha midiática de satanização que jamais se tinha estruturado contra governo algum da região.
Mas a experiência chilena nos anos 1970 não só é relevante pelo bloqueio e o golpe de Estado gestado, financiado e planejado pelos EUA, como porque a administração de Allende apostou em um projeto político, tecnológico e social paradigmático a nível regional e mundial: o Projeto Cybersyn.
O Projeto CYbersyn foi uma iniciativa de planejamento econômico e estatal promovido por Allende no Chile por meio da tecnologia, que buscava proporcionar um sistema de informação em tempo real que permitisse aos planejadores governamentais receber dados atualizados sobre a produção, distribuição e outros aspectos econômicos para administrar de maneira eficiente uma economia socialista na medida em que se iam nacionalizando empresas estratégicas.
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O projeto, criado para o Chile pelo jovem de 26 anos na época e engenheiro Fernando Flores, logo encontrou dificuldades criadas pelos EUA, que não só incluíram bloqueios tecnológicos e comerciais, como também operações de espionagem e sabotagem para impedir sua materialização.
Antes que o projeto pudesse chegar a sua plena implementação, o golpe militar de 1973 derrubou o governo de Salvador Allende e pôs ponto final na experiência do Cybersyn no Chile, nada mais e nada menos que utilizar a cibernética para integrar e centralizar a nova economia chilena.
Evidentemente, os EUA e a NASA não podiam permitir que em suas barbas tivesse êxito o modelo estatal planificado e centralizado da nova economia chilena, utilizando as ferramentas do conhecimento e da ciência que não fossem governadas pela visão neoliberal. Seria uma afronta direta a seus interesses na região e simplesmente inaceitável.
Do plano Condor contra Allende à guerra ciber-fascista contra Maduro
Basta extrapolar no tempo todo o projeto e a execução exitosa do plano desestabilizador que derrubou o governo da UP no Chile na década de 1970 e compará-lo com tudo o que se gestou em muito mais tempo e com o superlativo avanço científico tecnológico do momento, contra a revolução bolivariana para entender que só um povo que conhece e estuda sua história para não a repetir é capaz de salvar a si mesmo. SÓ O POVO SALVA O POVO!
Depois de analisar em sua justa dimensão o contexto que serviu de marco referencial para entender os antecedentes, as causas e as razões pelas quais o governo socialista do presidente Salvador Allende foi derrubado em 11 de setembro de 1973 pelo imperialismo estadunidense, assume-se que com esta derrota das forças revolucionárias e a consolidação da hegemonia unipolar dos EUA, seriam sepultadas, por mais de 50 anos, as esperanças de avançar em uma mudança favorável na correlação de forças no continente e de gerar melhores condições para viabilizar a transição para um mundo mais justo, mais humano, mais solidário. Décadas e décadas perdidas de governos neoliberais que se entregaram aos interesses do grande capital internacional.
Desde que este povo se fartou de pacotaços e overdoses de neoliberalismo e fez Hugo Chávez presidente, em dezembro de 1998, pela via eleitoral, os inimigos históricos não cessaram em suas tentativas de acabar com a revolução bolivariana.
Temos estudado e aprendido as lições para não repetir erros, nos apropriamos da doutrina bolivariana para elevar a consciência, construir nossa própria visão do socialismo do século 21, um novo modelo de democracia participativa e protagonista sustentada na poderosa união cívico-militar, na nova constituição, no plano da pátria para traçar um novo rumo que nos permitiu, em meio à mais brutal agressão, resistir e derrotar a versão 4.0 do plano Condor contra Allende.
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Derrotamos a revolução colorida, vencemos todas as guerras híbridas que nos aplicaram através das páginas dos manuais de tecno fascismo e ciberguerras que inventaram. Derrotamos a ditadura do algoritmo e, mais ainda, em 28 de julho último, em uma jornada épica e carregada de elevados sentimentos patrióticos, não só derrotamos a extrema-direita venezuelana, como desta vez a plutocracia mundial, que de luxuosos salões do clube de Bilderberg tomaram em suas mãos o controle da campanha contra o presidente Maduro: também lhes proporcionamos uma contundente derrota.
Todo esse complexo panorama anteriormente narrado, atravessado, como se não bastasse, por uma pandemia mundial que atemorizou, paralisou e dizimou a população mundial, nos situa como há 51 anos, em uma etapa de transição, da decadente hegemonia unipolar encabeçada pelos EUA e seus aliados da UE para o mundo dos Brics, o mundo multipolar.
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Dizia Antonio Gramsci que o velho mundo morre e o novo demora a aparecer, e nestes claros obscuros surgem os monstros, surge o fascismo, como expressão política da crise do imperialismo.
Pode-se afirmar sem medo de errar que as guerras de resistência mais importantes, que em meio a esta transição travam-se contra o fascismo em Gaza, na Ucrânia e na Venezuela, determinarão a sorte da humanidade inteira nos próximos lustros.
Finalmente, hoje rememoramos com elevados sentimentos latino-americanistas os 51 anos do golpe de Estado fascista contra o Presidente Mártir Salvador Allende e que seu exemplo de vida, de valentia, de dignidade junto a seu povo, e isso nos inspira para que mais cedo que tarde se abram as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.
VIVA O CHILE! VIVA O POVO! VIVAM OS TRABALHADORES! VIVA ALLENDE!
Caracas, 13 de setembro de 2024