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Cannabrava | Passada a deplorável festa, é preciso discutir verdadeiramente bicentenário

Data foi roubada dos brasileiros, mas antes de falar sobre independência, é preciso entender que a Pátria vem sendo vilipendiada pelas Forças Armadas
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Passado o furor das declarações improferíveis do inominável que ocupa a presidência da República, no bicentenário de independência do Brasil, compete a nós uma reflexão profunda sobre o significado desta data em um contexto de total violação da soberania brasileira e de atos de traição à pátria feitos por quem deveria defendê-la.

Abstraindo o fato histórico de a independência ter sido um arranjo familiar entre monarquias europeias, a data sempre foi uma festa cívica, política, apartidária. Todo mundo saía para ver as paradas militares e os desfiles da juventude das escolas. Os  maiores e mais tradicionais colégios disputavam classificação de melhor fanfarra ou a melhor banda da cidade. 

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Não se questionava se o Brasil era ou não independente, pois parecia que o era. Até o golpe militar de 1964 o país vinha em uma crescente de desenvolvimento e criação de bons empregos. Executava-se um projeto nacional que tinha como ponto central a educação e o investimento em infraestrutura e em indústria de base, com o Estado planejando os caminhos da nação.

Até então, as pessoas viam o armamento e aplaudiam. Era bonito de se ver. Garbosos militares das três forças: marinha de branco, aeronáutica de azul e o exército de verde-oliva junto aos Dragões da Independência com fardamento e elmo vermelhos, além da Esquadrilha da Fumaça.

A semana da pátria era de comemorações. Hoje, cadê a pátria? Está vilipendiada pelas próprias Forças Armadas, o que constitui um paradoxo.

Eis algumas datas emblemáticas e que revela o desalinho entre as Forças Armadas e seu povo, portanto, a pátria: 

Esses são marcos historicamente recentes, sem contar que no século 19, com a questão militar não resolvida, militares contratados para proteger a monarquia, em 1889, se insurgiram para implantar a República das Oligarquias, poucos meses depois de uma abolição da escravidão também não resolvida.

Sobre este período, escrevi a seguinte análise:
Das capitanias à sexta República, história do Brasil é marcada pela contínua ocupação militar

Disso se vê que transições não resolvidas foram pactuadas entre militares e oligarcas em todas as passagens traumáticas de nossa história, tudo no afã de preservar a velha ordem que se mantém e se agrava a partir da segunda metade do século 20 com a submissão aos Estados Unidos

Submissão que chega ao extremo, neste século 21, de ter o Exército brasileiro integrando o comando militar Sul dos Estados Unidos e de termos grupos de defesa à democracia que vão a Washington pedir ajuda para que militares brasileiros respeitem o resultado das urnas e sua previsível derrota eleitoral.

Data foi roubada dos brasileiros, mas antes de falar sobre independência, é preciso entender que a Pátria vem sendo vilipendiada pelas Forças Armadas

Brasil de Fato / Minas Gerais
Só há alternativas com independência e soberania




Fome e descaso

Nunca é demais lembrar que o Brasil tem 110 milhões de pessoas em insegurança alimentar, 33 milhões passando fome, 180 milhões endividados, desemprego, desalento, inflação e fome: essa é a pátria dos militares contra a soberania nacional. Desestatização, desnacionalização, precarização, desemprego, desesperança, em um cenário de estagflação, que é a paralisação da economia com inflação.

Não há saída dentro desse sistema dominado pelo capital financeiro, em meio à economia do dólar hegemonizado pelos Estados Unidos. Só há alternativas com independência e soberania.

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Enquanto o Brasil se submete ao comando dos EUA, Rússia e China seguem avançando no projeto para superar o dólar e fortalecer o BRICS, grupo do qual os três fazem parte, além de Índia e África do Sul, e que tem uma longa lista de países na fila querendo integrar a iniciativa.

Por aqui, não dá para falar em independência sem que tenhamos o controle sobre os centros de decisão e decidamos os rumos de um projeto de nação e de uma estratégia de desenvolvimento. Não poderemos ter soberania se não caminharmos em direção à autossuficiência em todos os aspectos do desenvolvimento.

Sociedade civil precisa cobrar dos militares discussão sobre soberania nacional

Poucos países no mundo têm a condição de, com suas próprias forças, encarar o desenvolvimento autônomo e autossustentável em harmonia com a vida: humana, das florestas, dos rios mares e ares. O Brasil, sim, tem essa possibilidade, mas como sabemos, não tem um líder à altura dos desafios do século 21. 

Trata-se de uma questão de retomada de um projeto que estava dando certo e que precisa, portanto, de vontade política. Essa é a questão.

Em séculos de dominação colonial, as pessoas perderam o senso de liberdade. É preciso descolonizar o pensamento de cada um. É difícil o ser humano aceitar ser livre. Tem que descolonizar a escola, em todos os níveis, a escola em que se aprende a olhar crítica e criativamente a realidade, como queria Zumbi dos Palmares, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Getúlio Vargas, todos nossos próceres.

Paulo Cannabrava Filho, jornalista latino-americano e editor da Diálogos do Sul.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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