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Edificação destruída na cidade de Deir al-Balah, em Gaza (Foto: UNRWA)

Lavender: a inteligência artificial de Israel e a automação do extermínio palestino

O genocídio em Gaza constitui a primeira aplicação em grande escala do uso de inteligência artificial para destruir alvos, sejam mulheres e crianças inocentes
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
Florianópolis (SC)

Tradução:

Notícia da Imprensa: “Um bombardeio israelense na cidade de Khan Yunis, na Faixa de Gaza, atingiu neste sábado (30/11) um veículo que transportava funcionários da World Central Kitchen (WCK), oito meses após outro ataque israelense ter provocado a morte de sete funcionários da mesma ONG”. Segundo a agência de notícias palestina Wafa, pelo menos cinco pessoas morreram no ataque deste sábado, incluindo três funcionários da WCK que viajavam no veículo. Horas depois, a ONG anunciou que estava suspendendo suas operações Gaza. A WCK é uma iniciativa do chef espanhol José Andrés com o fim de fornecer refeições a áreas de catástrofe”. (Folha de S. Paulo).

Foram todos mortos graças à tecnologia do “Lavender”, praticamente sem a ação direta humana!

Há 110 anos, o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau inaugurava seus fornos crematórios para propiciarem a incineração em massa dos milhões de “seres de raças inferiores”, assassinados pelo veneno para ratos, o Ziklon B, produzido pela fábrica IG Farber. Assim os nazistas do século 20 introduziram a tecnologia do genocídio em massa, tentando não deixar rastros. Não conseguiram.

No enorme campo de concentração em que os israelenses transformaram toda a Faixa de Gaza, temos, sob custeio, supervisão e insumos dos U.S.A., a uma nova estratégia de genocídio massivo e com um mínimo de exposição do exército assassino. Já pouco importam os rastros… afinal, dentre as centenas de mortos, “poderia ter um terrorista”.

As guerras nunca mais serão as mesmas

A IA para o genocídio, desenvolvida pelos EUA e Israel, pinça, nas redes sociais, suas vítimas. E a partir de agora, as guerras nunca mais serão as mesmas.

As guerras do século 21 são cada vez menos combatidas por seres humanos. Os humanos na imensa maioria são as vítimas, mas quem executa o extermínio são máquinas. Máquinas que, por sua vez, são cada vez menos controladas por seres humanos, pois a tendência implícita nos sistemas de inteligência artificial, dotados de capacidades de autoaprendizagem e de “deep learning”, é liberar, sob o comando dos senhores da guerra, a soldadesca da tarefa de torturar, mutilar, matar e exterminar, deixando essa função nas mãos de sistemas dotados de inteligência.

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A palavra “inteligência” denota a capacidade de realizar uma tarefa, independentemente de sua utilidade social, licitude ética, etc., e, acima de tudo, independentemente das emoções. Inteligência sem sensibilidade, inteligência sem consciência: a máquina inteligente exterminadora é o produto geral do sistema capitalista na era da automação inteligente.

O nazismo do século 20 teve que considerar os limites da inteligência emocional, como mostra Jonathan Little em seu terrível romance Les bienveillantes (2006; “As Benevolentes“, 2019). O tecno-nazismo do século 21, do qual os sionistas são o símbolo e a vanguarda, emancipa-se desses limites.

Quando matar é exaustivo

Afinal, o trabalho de matar é exaustivo, como aprendemos ao ler este romance a respeito da fadiga psíquica de um membro da SS: o organismo humano tem limites físicos e psicológicos dos quais a máquina inteligente se emancipa. Segundo reportagens do Haaretz e da CNN, a fadiga psíquica do extermínio estava desgastando os nervos dos exterminadores israelenses: suicídio, transtornos psíquicos pós-traumáticos e autodesprezo afetam os soldados do exército de Israel (as “FDI”).

O drone tornou-se a figura dominante nesta nova fase do nazismo: a guerra na Ucrânia e o genocídio em Gaza são o palco de experimentação dessa nova fase de extermínio, processo que se desenvolverá plenamente no século 21. O drone é uma aeronave caracterizada pela ausência de um piloto humano a bordo. Seu voo é controlado por computadores que podem ver, ouvir e executar o extermínio. Dos primeiros modelos de grande porte, que apenas alguns exércitos possuíam, a tecnologia evoluiu para a construção de modelos muito pequenos, operados em grupo (enxame de drones), a baixo custo.

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O genocídio israelense constitui a primeira aplicação em grande escala dessa automação do extermínio. Não devemos pensar que se trata de um episódio isolado, nem que, após este acontecimento excepcional, a guerra retornará aos seus antigos traços desumanamente humanos.

A desumanidade finalmente se emancipou do humano e pode, enfim, proceder automaticamente. Na competição techno-militar, as máquinas de extermínio estão destinadas a se generalizar. E a partir de agora, todos os conflitos armados, sejam guerras nacionais, religiosas ou civis, recorrerão cada vez mais às técnicas do extermínio inteligente.

A Revista Israelense “972”

A revista israelense “972” publicou em abril de 2024 um relatório aterrorizante!

Descreve a estrutura epistêmica e pragmática de um sistema de inteligência artificial projetado para detectar e atacar alvos hipoteticamente hostis. Esses alvos podem ser transeuntes inocentes, crianças voltando da escola, mulheres indo buscar água na fonte. Não importa. O extermínio automático funciona. O sistema de extermínio israelense, que leva o pomposo nome de Lavender, é, como informa o 972:

“Uma máquina especial que pode processar enormes quantidades de dados, com o objetivo de gerar alvos potenciais para realizar ataques militares durante uma guerra. Essa tecnologia resolve o que pode ser descrito como o gargalo verificado tanto na identificação de novos alvos quanto na decisão de executá-los”.

Os seres humanos constituem, portanto, um gargalo, um elemento de incerteza e de lentidão. Por mais impiedosos e fanáticos que sejam, continuam sendo máquinas indeterministas: a emoção, a incerteza e a fadiga podem limitar sua competência para matar.

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É necessário que a máquina inteligente absorva progressivamente toda a sequência de ações que tornam possível o extermínio: detecção visual e auditiva, catalogação, seleção, eliminação. E, finalmente, autocorreção e aperfeiçoamento em busca do objetivo superior: instaurar a ordem onde os seres humanos representam o caos, eliminando, consequentemente, todo elemento humano.

“O Lavender desempenhou um papel essencial no bombardeio da população palestina […] sua influência nas operações do exército israelense foi tão grande que os militares trataram as informações da máquina dirigida por inteligência artificial como se fossem decisões humanas […]. O sistema inicialmente identificou 37 mil palestinos como supostos militantes e considerou suas residências como alvos de bombardeios aéreos […]. O exército israelense atacou sistematicamente os indivíduos selecionados pelo Lavender em suas casas, especialmente à noite, quando famílias inteiras estavam com eles […]. Segundo duas fontes que entrevistamos, o exército decidiu que, para cada membro do Hamas indicado por Lavender, seria permitido matar até quinze ou vinte civis […], já se o alvo fosse um oficial do Hamas, seria permitido eliminar até cem civis […]”.

A solução para o problema, acrescenta o oficial, é a inteligência artificial: “Temos um guia para construir uma máquina de criação de alvos, baseada em algoritmos de aprendizado de máquina. Neste guia, há muitos exemplos de características que permitem identificar uma pessoa como perigosa, como estar em um determinado grupo de WhatsApp, trocar de celular com frequência ou mudar frequentemente de endereço […]”.

Margem de erro

Na guerra, não há tempo para discriminar cada um dos alvos. “Então temos que aceitar uma certa margem de erro no uso da inteligência artificial”; “precisamos correr o risco de provocar danos civis colaterais ou de atacar alguém por engano e temos que aprender a viver após sermos informados sobre isso”. Este oficial, cujas declarações são registradas pelo “972”, conclui dizendo que, após matar centenas – na verdade, milhares; na verdade, dezenas de milhares – de crianças, mulheres e inocentes, é preciso aprender a “live with it” (“viva com isso”, em tradução literal).

Viver com a consciência de ser um exterminador. Uma expressão assustadora que, por si só, nos diz até que ponto chegou a degradação ética e quão profundo é o abismo de cinismo assassino no qual se afundou toda a população de Israel.

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“B” (outra fonte do “972”) disse que era normal que essa automatização gerasse um número maior de alvos a serem atingidos. Se em um dia não houvesse muitos alvos, devido a critérios de definição insuficientes, tínhamos que reduzir o limite de definição. Uma vez após a outra, os soldados nos pressionavam dizendo: “Dê-nos mais alvos”. Na verdade, eles nos diziam isso aos gritos. “Já terminamos com todos os alvos que vocês nos deram ontem […]”.

Lavender e sistemas similares, como o chamado Where’s Daddy, combinam-se para obter o efeito de matar famílias inteiras.

Supremacia tecnológica

Os órgãos oficiais do exército israelense comentam com satisfação esses resultados da máquina de guerra inteligente: “O Estado de Israel é um ator de alta competência tecnológica e utiliza isso como parte de seu leque de ferramentas diplomáticas para se tornar líder no projeto do sistema internacional de governança tecnológica. A necessidade de supremacia tecnológica para Israel deriva das ameaças que enfrenta […].”

A eliminação seletiva e a multiplicação de assassinatos colaterais são o resultado de um aperfeiçoamento técnico do qual Israel é vanguarda, mas não devemos pensar que se trata de um fenômeno isolado e pontual. Todo o Ocidente deve se equipar com uma governança tecnológica guiada pela inteligência artificial exterminadora.

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O trabalho de matar, que é o trabalho mais importante da atualidade, o investimento mais importante da economia terminal, torna-se tanto mais produtivo quanto mais a inteligência (homicida) se emancipa da consciência (ética). Desde que o sionismo transformou a população israelense no coração das trevas do supremacismo contemporâneo, Israel se tornou a Endlösung-Machine [máquina da solução final dos nazistas do século 20]. Por isso, sabemos que nunca haverá um pós-guerra. Ninguém mais pode acreditar que haverá paz em algum momento no futuro, pois o extermínio foi incorporado a uma máquina que se autocorrige, se aperfeiçoa, se conecta e se expande, uma máquina que ninguém tem a capacidade de desativar.

Guerra de micromáquinas

Aviv Kochavi, chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel, declarou que a metodologia bélica israelense se inspira na proliferação assimétrica da guerra de micromáquinas: existe uma melhor definição da ideia de transformar objetos cotidianos, como pagers e walkie-talkies, em armas de destruição em massa?

A ideia de alinhar a inteligência artificial com os valores humanos é exatamente o oposto do que tem acontecido e está acontecendo no mundo da pesquisa e aplicação desta tecnologia: nossas faculdades cognitivas se alinharam ao formato digital do mundo, o que vem ocorrendo nos últimos 50 anos, um processo que agora chegou à etapa final: alinhar a inteligência artificial com o imperativo do extermínio, que domina o inconsciente e a ferocidade da seleção natural.

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Em seu todo, os discursos sobre a ética da inteligência artificial são imbecilidades, pois se baseiam na eliminação e no esquecimento do uso militar da mesma, que domina a pesquisa, o financiamento e o uso desta tecnologia: inteligência movida pela demência, pela psicose, pelo horror.

Referência: Franco Berardi, em “Il disertore”.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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